A Menina e o Cometa

Esperei até que papai dormisse para poder pegar sua lanterna na caixa de ferramentas. Já era tarde quando levantei. Era madrugada. Lembro que acho que nunca estava tão tarde acordada. O máximo que cheguei perto da madrugada foi no dia de ano novo. Mesmo assim fiquei na sala somente uns vinte minutos. Naquela noite, não. Eram mais de três, tinha visto quando passei pela cozinha. Mamãe e papai não estão muito bem. Eles estão dormindo em quartos separados. Estava preocupada porque meu pai havia dito que se as coisas continuassem do jeito que estavam ele iria embora. Só que não sabia de que coisas ele fala. Também não sei para onde ele iria. Esse é um dos motivos que me levou a estar acordada tão tarde. Era por uma causa nobre. Minha maior duvida era se o céu estava limpo. Cedo havia chovido e estava nervosa.

A lanterna estava no local de costume. A caixa de ferramentas estava aberta. Foi fácil. As pilhas eu havia guardado na dispensa já tinha quase um mês. Pensei nisso tudo assim que meu pai falou sobre o cometa. Na hora mesmo que ele contou, fiquei impressionada. Vi na Barsa uma foto de um cometa e achei lindo. Perguntei a meu pai se ele já tinha visto algum cometa. Ele riu e disse que era muito raro e afinal ele não era tão velho assim. - Mas que neste ano o cometa mais famoso iria passar bem perto da Terra. – Ele disse sem muita cerimônia e sem dar muita ênfase a esse maravilhoso evento. Era o Cometa Halley. Em março ou abril seria possível vê-lo, bastaria olhar para o céu de madrugada. Seria lindo, meu pai nunca tinha visto um cometa e eu poderia ver um direitinho.

Uma semana antes de minha empreitada solitária eu vi na televisão que o cometa estava se aproximando. Pessoas estavam pagando passagens de avião para subir das nuvens e chegar perto do cometa para tirar fotos. Esperei muito tempo meu pai chegar. Ia pedir a ele para ficarmos acordados a noite para ele me mostrar o cometa. Ia ser tão lindo. Ele chegou muito tarde e notei que ele estava estranho. Sua roupa estava suja, ele estava com a barba feia. A cara estava suada e ele estava com cheiro de cigarro. – Pai “vamo” ver o cometa hoje de noite? – Perguntei me aproximando para abraçá-lo. Foi quando percebi que ele não estava normal. – Que porra de cometa! Eu quero é tomar banho e ir dormir. – E desse jeito saiu. Entrou. Passou. E eu... Chorei por dois dias. Ele nunca tinha falado daquele jeito comigo. E na manhã seguinte nem ligou. Foi como se não tivesse feito nada. E quando anoiteceu e ele voltou dizendo que tinha perdido o emprego, mamãe ficou chorando muito. Eu chorando muito também. Ele quebrou a TV e a radiola que era do tio Maciel. Ficamos eu e mamãe trancadas no quarto enquanto ele revirava tudo. Passou dois dias sem vir em casa.

Quando estava me recuperando daquele cena que do papai havia ganhado, ele apareceu. Estava todo ferido de uma briga. Mamãe o recebeu e as duas fizemos tipo enfermeiras. Quando vi papai lembrei do cometa, mas não pediria mais a ele. Eu decidi acordar sozinha numa noite e iria até o quintal olhar para o céu.

Uma vez meu pai contou que quando a gente faz um pedido para uma estrela cadente somos atendidos. Meu pedido ia ser para a mais linda estrela cadente que podia existir.

Quando cheguei à porta da cozinha, tirei a trava e a parte de cima abriu. Estava andando na pontinha dos pés. E nervosa porque meus joelhos às vezes estalavam. No quintal era muito escuro. Entre a coberta da lavanderia de mamãe vi um céu frio e estrelado. Sai descalça mesmo. Subi um pequeno degrau para a calçada e olhei pra cima. As estrelas, muitas delas, eram tão lindas que fiquei com medo. Fiquei meio tonta quando levantei a cabeça. Senti tristeza porque meu pai não estava comigo para ver aquilo tão bonito. Os muros das laterais eram altos e sobrava pouco céu para mim, mas era o bastante. Era medo e alegria ao mesmo tempo. Olhei para todos os lados e não vi nada que se parecesse com um cometa. Fui ficando triste e veio um frio, um vento, um medo maior. Procurava rapidamente para todos os lados, mas só via estrelas, tantas que ninguém poderia contar. Tantas que acho que não tinha cantinho de céu sem alguma delas. Sem cometa e sem estrelas cadentes não poderia fazer um pedido. Ou pelo menos não teria meu pedido atendido. Lá dentro de casa meu pai disse uma vez que iria embora se as coisas não melhorassem. Um dia antes ele brigou com minha mãe. Os dois gritaram muito e fiquei com muito medo dele bater nela. Ele era um homem muito forte, tipo aqueles de desenho animado. Até hoje não sei o que houve.

Quando ia entrar já com os olhos em pé de choro lembrei o que ele tinha dito uma vez. Que as estrelas estão muito longe. Que o brilho que a gente vê é de muito tempo atrás. Não entendi muito bem na época, mas ele disse que a luz sai da estrela e chega até aqui. Mas se a estrela é longe a luz demora a chegar. Segurei a lanterna e apontei para cima. Acendi e vi um facho, vi a luz saindo dela, subindo, indo embora. Apontei a luz para vários lados.

Naquele ano não vi o cometa. Meu pai foi embora de casa. Ele morreu três anos depois quando faltava uma semana para minha festa de 15 anos. Na última foto que tenho dele ainda vejo alguém que ficaria a noite inteira esperando um cometa. Alguém que acharia simplesmente linda uma noite sem nuvens para olhar para o infinito.

Talvez um dia a luz da lanterna chegue em outro planeta e alguma garota veja um brilho no céu e faça um pedido. Talvez a luz da lanterna passe bem no cometa. Talvez a luz acerte um espelho, volte e, um dia eu veja o mesmo brilho que eu mandei. Talvez ela dê a volta no espaço e me acerte. Talvez o que vejo pensando ser estrela cadente, seja o brilho da lanterna de outra criança.