A coleção de bolinhas de gude

Quando avistei minha filha naquela manhã com as pequenas bolas de gude não tive dúvidas. Um desenrolar de sentimentos quis tomar conta de mim. Poderia ter fugido do mundo naquele breve momento, mas fui forte. Fui eu mesma, na verdade.

Larguei os rascunhos do rascunho de monografia e desci o lance de escadas até pertinho do playground do prédio. Mudei o percurso de seguir direto para casa, depois daquele dia estressante com o senhor Idelm e resolvi sentar no chão, ali.

Lídia estava tão encantada, vendo aquelas bolinhas transparentes. Tão etéreas. Aparentemente frágeis. Nem viu minha aproximação. Foi melhor assim. Sentei no chão, coloquei a bolsa ao meu lado. Com oito anos, Lídia não parecia comigo quando criança. Sentia-me feliz por isso. Mas me sentiria mais feliz se ela não vivesse o que vivi. Não da forma como vivi. Um dia ela saberá. E aquelas bolinhas de gude serviam para eu lembrar aquele tempo que um dia quis esquecer e até esqueci mesmo. Mas que sustenta meus dias hoje. Fez-me tomar esta forma que tenho hoje.

Minha coleção de bolinhas de gude começou quando eu tinha dez anos. Meu pai era caminhoneiro e sempre trazia alguma coisa estranha quando de retorno de suas viagens. Não que as “bilas” fossem coisas estranhas, não. É que ele as trazia sempre de cores diferentes. Algumas tinham uns objetos dentro, umas coisinhas que ele dizia que eram sonhos, pensamentos, idéias presas ali. Eu sempre acreditava e passei a tratar minhas bolinhas como tesouros. Tanto por conta da lembrança que elas traziam de meu pai e outras pelo prazer de colecionar os tais “sonhos”. Entre os doze e os treze eu parei de colecionar. A morte de meu pai foi muito impactante e olhar para minha garrafa lotada de esferinhas brilhantes era cutucar a ferida. Arrolhei a garrafa e coloquei-a num dos cantos da casinha do quintal da casa onde morávamos em Vila Nova. Mas só durou um ano meu afastamento. Algumas dores saram mais rapidamente quando temos a juventude.

A garrafa empoeirada foi recuperada e logo estava trocando meus trocados por novas bolas de gude. Com o tempo, as pessoas que descobriam meu hobby passavam a trazer mais e mais novidades para minha coleção. Muitos diziam que era besteira colecionar as bolinhas, pois eram todas iguais. Nestas horas eu lembrava que todos diziam que os chineses eram todos iguais, mas tinha certeza que cada um deles tinha sua própria vida, interesses e dores.

Não demorou nem cinco anos e minha coleção possuía um cantinho só pra ela no meu quarto. Eu somente contava todas uma vez por ano. Tinha feito este acordo para não cair na tentação de sempre ter que fazer a verificação e ficar na dúvida se tinha sumido alguma. Na última contagem plena que fiz eu já contava 11253 bolinhas de gude. Uma quantidade tão grande que já preenchia todas as minhas gavetas da cômoda, um velho baú do meu avô e um velho aquário do meu tio Marcelino.

11253! O máximo que consegui.

Em Fevereiro de 1983 conheci meu primeiro marido. Voltamos das férias juntos em um ônibus e descobrimos lá mesmo que seríamos colegas de classe. Naquele momento ele não, mas ali eu também descobri que queria ter algo mais sério com ele. Começamos o namoro “oficial” no dia dos namorados. Ele trouxe-me um presente: um par de brincos. Eu dei-lhe o que tinha de mais precioso. A noite foi longa. Maravilhosamente longa. Parecia que não teria mais fim. Mas depois daquelas “provas” de amor, Adelis foi ficando cada vez mais possessivo. Ele era muito presente, mas muito ciumento. Adquiriu uma dívida por conta de ter sido meu primeiro homem, creio. Na verdade, foi esta a desculpa que inventei na época. A questão e que ele era muito violento e explosivo e até que eu contasse a alguém sobre o sofrimento que sofria, demorou três anos e uma filha. Em 1985 estávamos casados. Numa cerimônia sem cerimônia.

Saí de casa para morarmos juntos. Eu sempre com a esperança de construirmos uma vida simples e boa. Logo porque perdi os objetivos da casa dos sonhos quando era muito mais urgente que ele se recuperasse e abandonasse o hábito de descontar em mim suas frustrações.

A cena mais marcante de todo este tempo ocorreu no dia seguinte ao nosso casamento. Logo cedo no domingo ele encostou um caminhão em frente a minha casa. Levaria alguns móveis que mamãe estava nos cedendo: meu antigo quarto, um televisor National (aqueles de seletor rotativo), um armário para cozinha, um fogão novo e minha coleção de bolinhas de gude. Tudo foi carregado rapidinho, era pouca coisa. Subimos na carroceria e partimos. Estava ansiosa e um pouco excitada com a situação nova. Quando estávamos próximos ao local onde hoje é o cinema J.Fernades, Adelis abriu o baú, o mesmo que estava lotado de bolinhas. Abismado com o que viu, perguntou o que era e pra quê servia aquilo. Respondi que era uma coleção. Um antigo hábito que havia adquirido com meu pai e que me servia de lembrança dele. Adelis não falou nada. Segurou o baú por uma das alças e levantou. O som das bolinhas roçando uma nas outras era tão bonito, mas a imagem era assustadora. Todas elas estavam rolando e caindo do caminhão. Todas! Rolando pela rua, quicando, descendo, sumindo, sumindo, sumindo. Todas!

O aquário que ele havia visto cheio de bolinhas espatifou-se num brilho cegante bem na esquina do Mercadão. As gavetas esvaziadas. As mãos como pás atiravam todas para cima.

Lá embaixo na rua, uma porção de moleques surgida do nada estava enlouquecida. Tentavam catar as bolinhas de gude. Alguns caíam, carros buzinavam, as pessoas saíam das casas para verem aquilo tudo. Eu não estava acreditando no que via. Quando dei por mim, Adelis estava junto a mim. Deu-me uma bofetada que fez meu nariz sangrar.

- Não quero ouvir uma palavra! Pensa que é criança? – Foi a última coisa que ouvi sobre aquele caminhão.

Hoje percebo o quanto minha vida foi atrasada por ele. Mas ele era uma pessoa doente. Na verdade acho que esta é mesmo a desculpa que uso hoje. Um ano depois do evento sobre o caminhão, Adelis foi encontrado morto em um motel em Adroeiras.

Lídia me viu bem quando havia acabado de enxugar as lágrimas.

Vamos fazer uma coleção de bolinhas gude? Que tal? – Perguntei com uma alegria sincera devolvida ao olhar. Seu pai vai adorar. Sabia que seu avô me fez ter uma vez uma coleção enoooorme? – Lídia olhou-me demoradamente. – Não acredito que você saiba jogar bolinha de gude, mãe. – Ela respondeu quase rindo em sua habitual simpatia. – Eu não disse que sabia jogar... Vamos começar com estas cinco! – Apontei para o chão onde ela reunira as esferinhas. – Será que eu consigo juntar umas mil, mamãe? – E ainda controlando-me pra não chorar... – Consegue! Eu já tive quase isso...