O capoeirista !

Claudio dos Santos era um típico jovem carioca que trabalhava numa repartição pública após ter sido aprovado num difícil concurso, para o qual havia dedicado anos da sua juventude a se preparar. Gostava de praticar esportes e, a capoeira era sua paixão. Como todo carioca, Santos, adorava caminhar pelo calçadão da praia de Copacabana. Romântico, frequentemente era visto em companhia de Aline, sua namorada, a observar o pôr do sol num dos vários mirantes da orla marinha carioca. Era o quinto ano do falecimento de Antônio Cícero dos Santos, pai de Cláudio dos santos, que, se vivo, estaria completando seu octogésimo quarto aniversário.

Tudo começou há algumas gerações, quando o arredio escravo, o “negro fujão”, avô de Cláudio dos Santos, empreendia mais uma tentativa de fuga e, era perseguido pelos “capitães do mato”. Diferentemente das outras ocasiões, desta vez, seus perseguidores não conseguiram pôr as mãos no ‘fujão’ porque índios, profundos conhecedores dos segredos da mata daquela região, deram proteção ao negro que estava fraco, cansado e com feridas abertas pelo corpo. Após estar curado, Fujão formou o seu quilombo e constitui família, tomando como esposa uma linda índia, sendo Antônio Cícero dos Santos, pai de Claudio, mais um dentre a sua vasta prole.

Negros fujões costumavam formar quilombos onde manifestavam suas culturas e jogavam capoeira, que era mais que uma dança; enquanto os habitantes dos quilombos se divertiam, também usavam a capoeira como forma de exercitarem seus corpos e se aprimorarem para as necessárias lutas contra os capitães do mato e outros perseguidores.

Antônio Cícero, filho do Negro Fujão, era homem de temperamento tranquilo, porém muito desconfiado. Bem apessoado e de boa estatura – de pele bem escura - seu rosto tinha o formato redondo e expressivo semelhante aos dos nativos das matas brasileiras. Ele costumava deixar seus cabelos crescerem até à altura dos ombros e os amarrava na nuca no estilo rabo de cavalo.

Casado com Claudia Castanheiros - moça de tradicional família de fazendeiros – que ao completar vinte e dois anos de idade, num arroubo apaixonado, resolveu fugir com Antônio Cícero da pequena cidade fluminense de Paraíba do Sul, para a Capital do Estado, o Rio de Janeiro. Era o ano de 1947, quando Antônio Cícero foi trabalhar como estivador no cais do porto, enquanto sua dedicada e prendada esposa fazia bordados, doces e salgados para vender e ajudar nas despesas e no pagamento do aluguel do barraco apertado que conseguiram alugar na favela do Caju. Posteriormente, após anos de trabalho árduo, foram morar numa casa mais espaçosa. O casal tinha três filhas e sonhava com um menino. A menina Cleide Magdalena dos Santos foi o primeiro rebento do casal, enquanto Cláudio dos Santos foi o último. O nascimento do tão sonhado varão, depois de três meninas, fez renascer em Antônio Cícero as lembranças da tradição familiar de passar aos meninos todos os segredos da nobre arte que é a capoeira. Animado com o nascimento do seu filho homem, Antônio Cícero voltou a ser o Mestre Águia, e Santos cresceu vendo e aprendendo todas as acrobacias do pai.

Ao se tornar adulto, Cláudio dos Santos conheceu Aline, uma bela negra recém chegada à cidade, e não resistindo aos encantos um do outro, logo tornaram-se namorados. A moça que trabalhava na mesma repartição pública que o namorado, alugou um apartamento no bairro Peixoto em Copacabana e acabou sendo contagiada pela mania dos moradores da cidade e, começou também a se exercitar ao longo da orla marinha pela manhã ou à tarde. Interessou-se também em conhecer os pontos turísticos do Rio de Janeiro na companhia do namorado.

Meio ano já havia se passado desde que Aline chegara à cidade, tornando-se uma das moradoras do quarto andar de um prédio no bairro Peixoto. A moça conheceu Miro, seu vizinho, um rapaz de porte físico avantajado que passou assediá-la. Ele era o líder de uma gangue de cinco rapazes baderneiros e metidos a valentões, todos moradores do bairro Peixoto. Miro morava num apartamento do terceiro andar, exatamente abaixo do apartamento da moça. Aqueles rapazes se auto intitulavam “os bad boys do Peixoto”. Numa quarta-feira do mês de novembro, quando estava novamente vigorando o horário de verão. O romântico casal combinara de passar na praia para assistir ao pôr do sol. Ao chegarem à portaria do edifício, cruzaram com Miro que, ao vê-la acompanhada, não repetiu o mesmo comportamento inconveniente que ultimamente vinha tendo para com Aline. Ao chegarem à praia de Ipanema, seguiram o roteiro pré-estabelecido: compraram seus cocos, e se acomodaram em um ponto da areia para namorar e observar o belo pôr do sol. Santos resolveu dar um mergulho e convidou a sua namorada. — Aline; vamos entrar na água? Está calor e ela me parece muito refrescante. — disse o namorado. Mas, Aline resolveu continuar se aquecendo ao sol, enquanto o namorado foi dar o seu desejado mergulho.

Miro e sua gangue aproximou-se da moça. O líder dos ”bad boys do Peixoto” reconheceu sua vizinha deitada na areia. E, reparando que ela estava desacompanhada, ajoelhou-se ao lado da moça e, agarrando-a pelos cabelos, tentou beijá-la à força enquanto a insultava: — E agora, sua crioula metida a besta, diz que não vai dar um beijo na boquinha do Miro, diz!

Toda aquela ação iniciara poucos instantes após Cláudio dos Santos ter entrado na água, o qual, despreocupado que estava, não percebeu a ação covarde dos agressores da sua namorada e, tampouco conseguia ouvir os seus abafados gritos. O ódio fervia no interior de Miro, que não suportava a rejeição da moça e a agredia violentamente. Ao se dar por satisfeito no ultraje à moça, e em face a aproximação das pessoas que se revoltavam ao testemunhar as agressões infligidas a ela, Miro e seu bando abandonaram o local às pressas.

Ao perceber a aglomeração de pessoas em torno de Aline, Cláudio dos Santos deixou apressadamente a água e se aproximou da namorada. Aline, sentada na areia, cobria a face com suas mãos e chorava copiosamente. Ao tomar conhecimento do ocorrido e, em fúria, Santos saiu ao encalço dos agressores da jovem Aline. Miro, por estar acompanhado dos seus comparsas proferiu insultos ao namorado de Aline. Para Santos, o capoeirista, as palavras ofensivas dos seus oponentes não mais chegavam aos seus ouvidos. Tudo o que ouvia era o som dos atabaques, do berimbau, das palmas ritmadas e das cantigas entoadas nas rodas de capoeira.

Os mistérios da capoeira passados do negro fujão ao seu pai, Antônio Cícero, e posteriormente repassados a ele estavam vivos em sua mente naquele momento. Enquanto Santos gingava o seu corpo ao ritmo do som das cantigas e dos instrumentos de percussão que apenas ele ouvia. Um após outro, seus oponentes iam caindo diante dele ao tentarem, em vão, agredi-lo. Daquele dia em diante, Miro, que na verdade era um rapaz covarde, jamais ousou insultar a vizinha Aline novamente. Com frequência, fingia ignorar a presença da moça ao cruzar com ela onde quer que fosse.