A surra

Quando eu era pequeno eu falava besteira prá burro na frente de qualquer um. Mas não era vontade de falar besteira, não! Eu falava porque era criança, e achava que os adultos gostavam de ouví-las. Muitas vezes ficava escutando a conversa dos meus velhos com os amigos deles. Falavam bobagens prá burro! A conversa girava sempre em assunto de safadeza. Então eu achei que era muito normal falar bobagem pros adultos porque eu queria falar coisas de adultos.

Aí eu achava que para ser adulto era preciso dizer bobagem! Então, quando estavam na maior reunião lá em casa, eu procurava agradar e contava uma piada do papagaio, ou contava um caso qualquer desde que tivesse um pouco de safadeza no meio. Mas tudo que eu falava só servia para enfurecer minha mãe, que me dava cada beliscão de deixar minha pele toda roxa. Jamais consegui entender porque as safadezas deles eram melhores que as minhas!

A partir daí foi que eu comecei a sacanear mesmo, e não perdia uma chance de dizer besteira na frente dos outros só para aporrinhar os velhos, prá me vingar dos beliscões. Minha mãe tinha horror que a gente mostrasse para os outros que ela estava nos beliscando por debaixo da mesa... Pois foi só eu perceber isso prá começar a gritar na frente das visitas quando ela me beliscava: "Ai, mãe!". Até o Toninho, meu irmão mais velho, muito metido a machão desde fedelho, jamais se atrevia a fazer isso com a velha. O cara até passou a me olhar diferente uns tempos, porque eu tinha peito prá fazer aquilo e ele não. E eu achei que a coisa estava ficando como eu queria. Durante algum tempo fiquei por cima da situação, porque a velha sabia que eu daria um vexame tremendo se levasse um beliscão. Então, depois que eu dizia a besteira ela desconversava, ou oferecia qualquer coisa que estivesse à mão para que as pessoas não tivessem tempo de perceber o que eu dissera.

Até que um dia ela não aguentou, me pegou pelas orelhas e me arrastou para o quarto. Aí me comeu de pancada! Ela chorava que nem uma doida e me batia onde pegasse. Parecia tomada de fúria por todas as aprontações e vergonhas que sentiu por minha causa, e me surrou prá valer. Foram tabefes na bunda, nas costas, na cara, sem nem olhar onde, e só parou quando meu nariz começou a sangrar.

Eu fiquei estirado num dos cantos do quarto olhando bem para ela, sem soltar um só gemido, com o sangue descendo pelo meu peito. A mãe começou a gritar para eu não olhar para ela. Já estava quase em estado de choque por ter-me espancado daquele jeito. Foi o panaca do Toninho que entrou e se agarrou nas pernas dela,chorando, o covardão! Tava com medo que sobrasse para ele também.

Mas a velha foi ao banheiro e voltou com uma toalha molhada, e aí começou a limpar o sangue do meu rosto, do meu peito... limpava e chorava sem parar. Cheguei a sentir pena da velha! Minha raiva foi virando pena de vê-la naquele estado. Nunca a tinha visto tão velha, tão acabada como naquele dia. Suas mãos tremiam enquanto me limpava; seu rosto parecia o de um cadáver, de tão pálido, olheiras profundas, olhos fundos e vermelhos, os lábios roxos... Senti pena da velha prá caramba! Parecia até que eu é que tinha batido nela!

Daí em diante a coisa mudou. Eu me fechei prá todo mundo e só falava com os velhos quando me perguntavam alguma coisa. Minha mãe notou a mudança e percebeu que aquela surra fora diferente de todas as outras. Começou a me tratar com uma delicadeza fora do comum. Até quando o Toninho me aporrinhava as idéias ela vinha em minha defesa e dava um esculacho no cretino. Acho que a velha estava se corroendo por dentro de remorso.

Todo mundo de um modo geral, com exceção do tonto do Toninho, passou a me tratar como a um doente, um garotinho fraco e indefeso. Antes eu me aproveitaria da situação, mas desta vez não. Eu sentia que aqui dentro alguma coisa, realmente, estava diferente. Muita coisa em mim começou a mudar. Comecei a pensar num bando de troço que eu antes não pensava, e passei a observar mais às pessoas à minha volta!

Eu sabia que algo morrera em mim naquela surra. De repente comecei a perceber que fora estúpido muito tempo, e que precisava conhecer bem o mundo em que eu vivia. Durante um bom tempo eu parei de falar com qualquer pessoa das coisas que eu pensava. Era muito mais fácil ouvir o que os outros tinham prá falar e entrar na deles, simplesmente. Todo mundo gosta de falar de si mesmo. Se um começava a falar de música ou de dança, eu falava também. Se partia prá safadeza, e contava que andou bolinando todas as meninas do colégio, eu dizia que ele era um felizardo e o cara só faltava explodir de felicidade!... Descobri que essa era a forma de viver bem com todo mundo, sem criar muitos grilos!

Algum tempo depois aquilo começou a me incomodar. Eu sentia que o cara que concordava com os outros na verdade só fingia que concordava. O cara na verdade não era eu, mas um outro que eu criara só prá não se dar mal. Aos poucos fui retomando minhas próprias idéias e falando delas, quase sem perceber. Até que parei um dia e me dei conta que não me importava mais tanto com o que os outros quisessem que eu pensasse. Eu me dava por satisfeito de poder pensar por minha própria cabeça, mas de verdade - por dentro e por fora - e não apenas querendo desafiar alguém.

De qualquer forma eu estava me sentindo bem mais confortável. Notei que, também por parte de minha família, o tratamento mudara. Os velhos não mais faziam as coisas só prá me agradar: percebi que me ouviam de verdade. Reparei que não me repreendiam mais por qualquer coisa, como antes. Até o Toninho começou a me tratar com mais respeito, sei lá!

Compreendi que desta vez alguma coisa mudara de fato: eu estava me tornando um HOMEM!

Obras publicadas: www.lojasingular.com.br

Luiz Roberto Bodstein
Enviado por Luiz Roberto Bodstein em 11/07/2006
Reeditado em 20/03/2012
Código do texto: T191866
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