OS SONHOS DE UM HOMEM

Tinha sonhos e eram todos sonhos santos: amar para
sempre aquela esposa; ver os filhos crescerem fortes
e sadios, transformados no futuro em doutores com
diploma e tudo.

Gostava do trabalho, da função que exercia pilotando
aquele monstro articulado a avançar pelos sulcos
cavados na terra, dia e noite solitário sobre os trilhos.

Estimava os colegas, dois deles aparentados. Um deles
quase irmão, pois cresceram juntos correndo pelos
campos, caçando as perdizes, varando os rios a nado.
Depois, quando mocinhos, rondando juntos casas de
mulheres de onde voltavam a pé cortando a
madrugada, contando prosa.

O namoro os separou por um período em que os
momentos de sonhos o levaram aos beijos e abraços
que o afastaram das mesas de bar e do prazer de ouvir
as piadas sujas. E veio o casamento remendando às
pressas as consequências das urgências que
inevitavelmente dominam dois seres que se amam
loucamente e entre beijos e abraços atiçam seus
instintos.

Veio o primeiro filho.

Um menino bonito com os olhos da mãe, o nariz
copiado dos antecedentes do pai e os olhinhos
brilhantes como estrelinhas em festa no céu. Com o
coração em chagas, a mãe em pouco o deixou nos
braços de um e de outro até encontrar vaga na creche,
porque não havia como trabalhar como doméstica
levando o filho no colo.

E veio o segundo filho. O herdeiro do berço, das
roupinhas descoradas, das mamadeiras encardidas e
o despertador dos ciúmes do irmão, que mal aprendera
a andar sobre as próprias pernas.

E vieram em seguida os dias ainda mais difíceis com
os quais um homem pobre e amoroso já devia estar
mais do que acostumado. Vieram as demandas pela
presença no lar, as cobranças por ajudas na realização
de tarefas domésticas para as quais não dispunha de
tempo nem de habilidades desenvolvidas.

Vieram de parte dele as promessas de emendar-se.
Promessas vãs que fazia retirando argumentos dos
arroubos dos desejos que o transformavam por milagre
em dono de seu próprio nariz, capaz de alterar escalas
e de amenizar os rigores dos horários. Desejos
intensos que o transformavam em onipresente,
podendo ao mesmo tempo pilotar a máquina sobre os
trilhos e manobrar o cabo do escovão sobre o
vermelhão da sala.

Promessas que ela recebia alimentada por uma vã
esperança. Esperança que a fazia misturar desejos e
realidades numa vala comum de decepção, amargura,
amor e ódio, ao notar que ele vendia boa vontade e
lhe dedicava o amor sem o qual ela não teria mais
vida, mas ao estar certa também de que, infelizmente,
não suportava mais aquela carga e que ao lado dele
não era realmente feliz.

Nas longas noites e nos dias intermináveis, ele se
mantinha alerta pilotado o trem que lentamente
transportava as riquezas nacionais. Era para ele um
grande prazer e ao mesmo tempo um martírio. Um
prazer porque era tudo o que ele gostava de fazer e
porque era a fonte dos poucos recursos financeiros
que lhe permitiam ajudar um pouco em casa, cobrindo
as despesas mais pesadas. Um martírio porque a
função pouco exigia de seus braços e o obrigava a
manter-se inativo por muito tempo. Tempo de sobra
de um nada fazer, permitindo comparar seu sacrifício
com o da esposa, cuja labuta exigia o emprego de
suas forças. Intermináveis horas de um nada fazer
além de observar que a máquina engolia, lentamente,
dormente após dormente em seu avanço por caminhos
solitários. Intermináveis horas de um leve trabalho que
lhe consumia as forças pondo-o de volta no lar
sentindo-se esgotado, pendendo de um sono que
precisava aplacar a despeito do olhar quase de
desprezo de uma esposa insatisfeita e resmungona.

Tinha sonhos. Claro que os tinha. Sonhos que muitas
vezes vestiam as roupas negras dos pesadelos, na
medida em que pensava nos filhos crescendo à mercê
dos mal formados que podiam pervertê-los abanando
aos olhos deles os falsos brilhos de uma vida fácil,
que podiam sem nenhum esforço buscar nos antros
forrados de drogas.

Tinha sonhos e pesadelos quando ocorreu o acidente.

A morte que o caçou inutilmente entre as ferragens
retorcidas resultantes do encontro entre dois monstros
na escuridão da noite sem lua, o namorou por dias de
inconsciência sobre um leito de UTI.

Namoro macabro. Ela tentando convencê-lo a desistir
daquela vida sem prazeres e com ela seguir para o
esquecimento eterno de tudo e de si mesmo. A morte,
dissimulando amizade, prometendo descanso, e, num
cinismo extremo, realçando sua fragilidade, sua
covardia, sua base ao rés do chão da pobreza e o
pecado cometido ao conceber um sonho de amor
pondo os filhos no mundo.

— Desiste. Vem comigo. Descansa. Já foi muito mais
longe do que o previsto para um pobre tolo.

Inerte no leito, impotente, sem forças sequer para abrir
os olhos, dado por morto, vegetou ali por muitos dias.
A despeito dos cuidados recebidos, dos tubos e das
ferragens que mantinham aquele corpo mutilado
pendurado ainda por um esgarçado fio de vida, quase
desistiu. Quase se entregou aos braços gelados da
morte.

Mas eis que em razão da gravidade de seu estado, os
médicos permitiram a entrada da esposa e dos dois
filhos na UTI, para que pudessem vê-lo antes que fosse
imperioso entregar o corpo à funerária.

Não os viu, não deu o menor sinal de alteração em
seu estado de inércia. Mas a visita levou energias
adicionais e, num último esforço, o coração que ainda
batia foi recuperar seus sonhos. Alguns dias depois,
surpreendendo os próprios médicos, abriu os olhos.

Lentamente ao longo dos dias recuperou os
movimentos, conseguiu falar de novo e teve a coragem
necessária para aceitar o fato de não ter mais uma
parte de seu corpo.

E vieram os dias de seguidas intervenções cirúrgicas.
Longos meses de dor física, dias inteiros marcados
por cansativas esperas por atendimento nas
enfermarias. Não tinha mais uma das pernas e a que
lhe restava ameaçava apodrecer.

A esposa já não trabalhava como diarista. Não seria
mais possível cuidar dos filhos, carregá-lo de um lado
para outro dentro de casa e ao mesmo tempo limpar
casas dos outros.

Mas a família estava feliz.

O primo, aquele quase irmão, deixou incontinente o
emprego na ferrovia e veio a ele com aquele mesmo
espírito de camaradagem do passado.

Com o dinheiro da indenização recebida eles abriram
uma lavanderia onde a esposa e o primo assumiram a
direção.

Nas tardes em que ele se sentia melhor, ela o levava
na cadeira de rodas para a frente da lavanderia. Ali,
de prosa, confiante em que o futuro lhe poria sobre
pernas mecânicas, ele percebia que em pouco bastaria
erguer os braços para colher os frutos de seus sonhos.
Os filhos tendiam a crescer amparados por seus
exemplos e encorajados pela fibra da mãe. O primo
provara que a amizade é uma oferta sem preço.

E eles dois brincavam ao entardecer, contando prosa.

— Vamos lá, primo! Cuida de se pôr em pé o quanto
antes. A gente vai caçar codornas, a gente vai varar
os rios.

— Quem sabe, primo...

— Você sabe. Você ancorou seus sonhos em uma
família.

— E você, primo?

— Eu?

E o primo, olhando com o canto dos olhos preocupado
em confirmar que estavam sozinhos sorria. E com cara
de malandro confessava.

— Eu ainda me encanto com elas.

Dizem que passavam horas conversando e rindo.

Lucas Menck
Enviado por Lucas Menck em 24/11/2009
Reeditado em 24/12/2010
Código do texto: T1941718
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