MARTA MARIA

O homem parou na porta do bar e olhou o movimento. Dois pedreiros tomavam cerveja enquanto discutiam sobre futebol. Um era vascaíno. Outro são paulino. “Foi pênalti”. “Não foi pênalti. A falta foi fora da área. O juiz roubou”. No balcão ao lado, onde o dono do bar montara uma pequena mercearia, a babá uniformizada comprava cigarros para o patrão. Sentada em um dos tamboretes do balcão estava Marta Maria.

O homem lá de fora olhou para as pernas cruzadas de Marta Maria e deu um sorriso. Resolveu entrar no bar. Dirigiu-se ao balcão ao lado de Marta Maria. Pediu uma cerveja e um maço de cigarros. Puxou conversa: “Tudo bem?”. Marta Maria não respondeu. Não que não falasse com estranhos. Os homens não eram estranhos para ela. Ela os conhecia bem. Quando era mais jovem e mais bonita tinha vivido com três. Um de cada vez. Às vezes namorava escondidinho dos maridos. Teve muitos namorados. Todos eles bem escondidinhos. Mas, antes de dar confiança, queria fazer charme. Sabia que ele iria insistir! “Toma uma cervejinha comigo?” “Obrigada, vou aceitar”. O homem encheu o copo de Marta Maria e depois o seu. “Você não me é estranha. Conheço você de algum lugar!” Marta Maria sabia que era mentira, mas respondeu que o homem também não lhe era estranho. Conversavam enquanto os pedreiros ainda discutiam o pênalti em voz cada vez mais alta, por causa da cerveja. Garrafas vazias indicavam já terem bebido quatro, fora a que estava pela metade.

“Você vem sempre aqui?” Perguntou o homem! “De vez em quando. Moro aqui perto, mas freqüento outro bar”. Respondeu com firmeza. O homem sorriu. Gostava de mulheres que se faziam de tímida. Pela firmeza da resposta o homem sabia que por trás da falsa timidez de Marta Maria havia uma mulher ambiciosa. Por dinheiro e por homens. Dinheiro ele não tinha muito, só uns trocados. Mas, como homem, ele sabia que poderia corresponder à ambição de Marta Maria. Disse algo incompreensível, gargalhou e, propositadamente, apoiou uma das mãos no joelho de Marta Maria. Ela disfarçou. Agiu como se aquilo fosse natural e o estranho não fosse um estranho. Riu também, meio sem entender porque estava rindo.

Assim era Marta Maria. Os homens não eram estranhos para ela. Ela os conhecia bem. Quando era mais jovem tinha vivido com três. Um de cada vez. Fora os namorados escondidos no armário. Os cabelos eram lisos e escuros. Os olhos esverdeados, as coxas magras e morenas.

Ainda apoiando a mão no joelho de Marta Maria o homem pediu outra cerveja. Retirou a mão e cheirou a palma. O perfume era doce: parecia alfazema. “Perfumada! Adoro este perfume”. Comentou.

Marta Maria sorriu da gentileza. Gostava de homens gentis. Seus três maridos também eram assim no início. Depois tudo mudou. Um pedia conselhos à mãe, para tudo. Ela o abandonou. Não gostava de homens fracos. O outro era mais interessante. Malandro de parar a gafieira quando dançava com ela, que mal sabia dançar. Batia nela de vez em quando. Dizia que mulher tem de apanhar. Ela sabia porque apanhava. Não gostava de apanhar, mas não resistia à sua lábia. Prenhou duas vezes desse marido. Duas meninas. Lindas como ela. Ele a deixou. Trocou-a pela cantora da gafieira. Deixou-a na rua com as duas meninas. Ela voltou para a cidadezinha onde moravam seus pais. Mas, não queria que as meninas ficassem longe do pai. Tinha dúvidas se deveria voltar para a cidade do pai das meninas. Não voltou. O terceiro marido era amigo de infância. Tinha um sítio e dava mais importância aos animais que criava que à própria mulher. Viveram juntos por três anos. Ela o largou. Achava que valia mais que as cabras da criação.

Outro homem entrou no bar. Viu Marta Maria sentada e passou perto dela. Sorriu. Ela retribuiu. O homem foi ao fundo do balcão e comprou qualquer coisa. O dono do bar embrulhou. Não dava para saber o que era. Voltou-se para sair. Caminhou em direção ao tamborete de Marta Maria e cochichou algo em seu ouvido. Marta Maria sorriu. O primeiro homem ficou atônito. Seus ouvidos escutaram algo estranho. Pareceu-lhe ouvir de Marta Maria a seguinte frase: “Sinto saudades de você em minha cama”. Fingiu que não tinha ouvido. O segundo homem, ainda sorrindo, saiu do bar e foi embora. O primeiro homem levantou-se, pediu a conta e fez menção de sair. Marta Maria segurou-o pelo braço. “Aonde vai? É cedo!”. O homem respondeu meio sem jeito. “Não quero problemas, você tem um caso com esse cara”. Ela disfarçou. Escolheu uma cara chorosa e disse. “Não tenho nada com ele. É só um amigo”. O homem perguntou: “mas que estória é essa de você ter saudades dele em sua cama?” Ela fez cara de surpresa. “Ah! É isso? Liga não! Esse cara é paquera da minha irmã. É só uma brincadeira que a gente tem. Para botar ciúme em minha irmã”. O homem não entendeu a brincadeira. Mas, não queria perder o peixão à sua frente. Sentou-se novamente e continuou a conversa.

Ficaram no bar algumas horas. Tomaram outras cervejas. Já estavam mais à vontade. Agora era Marta Maria quem tocava o homem. E ele se deixava tocar. Na verdade, tinha simpatizado muito com ela. Fazia tempo que estava sozinho. Se tudo desse certo, Marta Maria poderia ser uma boa companheira. Ambos contaram a parte boa das suas vidas. Marta Maria se encantava com o homem. Ria feliz e dizia: “Você não existe! Me belisca para eu acordar”.

Saíram cada um para o seu lado prometendo se encontrar. Marta Maria tinha que pegar as meninas na casa da vizinha. Era tarde. O homem era simpático, gentil, de conversa agradável. Marta Maria conhecia os homens. Os homens não eram estranhos para ela. Ela os conhecia bem. Quando era mais jovem tinha vivido com três. Um de cada vez. Fora os namorados escondidos sob a cama.

Voltaram a se encontrar nos dias que se seguiram. Ficaram íntimos. Trocavam carícias em público. Só não faziam na frente das meninas. Marta Maria dizia que era tímida e que aquela situação era nova para ela. E para as meninas.

As meninas: o homem gostou das meninas. Seus filhos não viviam com ele. Gostava de crianças. Tinha tido três com a mulher. Agora vivia só. Convidou Marta Maria para viver com ele. As meninas seriam bem cuidadas como se fossem suas filhas. Marta Maria estava quase empregada. Começaria na semana seguinte. Até que a proposta lhe era conveniente. O homem era um homem bom. Era gentil e falava bem. Chamava Marta Maria de “meu amor”. Marta Maria estava encantada com o homem. Mas achava que ele era muito sonhador. Ela não. Tinha os pés no chão. Marta Maria conhecia a vida. E os homens! Os homens não eram estranhos para ela. Ela os conhecia bem. Quando era mais jovem tinha vivido com três. Um de cada vez. Fora os namorados escondidos atrás das cortinas.

O homem fazia planos de viver com Marta Maria. Contou aos parentes, aos amigos e, por último, à mãe. Chamou um pedreiro para ampliar a casinha de quarto e sala. Queria fazer um quarto só para as meninas. Não ficava bem as meninas que não eram suas filhas dormir no mesmo quarto deles. Marta Maria ficou mais encantada ainda com o caráter do homem. Dizia para o homem que ela estava apaixonada. “Me belisca! Você não existe! Devo estar sonhando”.

Marta Maria apresentou o homem para a família. Fez um almoço gostoso: arroz, feijão e frango! Ficou surpresa quando o homem pediu a seu pai permissão para se relacionar com Marta Maria. Na cozinha, a irmã de Marta Maria dizia: “me belisca, esse homem não existe”. Mas uma coisa naquele dia intrigou o homem. Ele se lembrou da brincadeira no bar. Marta Maria disse que era para enciumar a irmã. O homem queria perguntar para a irmã de Marta Maria que diabo de brincadeira era aquela. Mas, não era assunto para aquele dia. A família de Marta Maria foi embora. Os dois ficaram em casa com as meninas. Quando elas dormiram, Marta a Maria dormiu com o homem. Quase chorou de felicidade. O homem tinha boa pegada. Quando ele acordou de manhã ela não estava na cama. Dormia no colchão com as meninas. Não queria que as meninas pensassem mal dela. Marta Maria dizia que era tímida e que aquela situação era nova para ela. E para as meninas.

O homem se foi. Combinaram se encontrar no dia seguinte num dos bares que freqüentavam. Marta Maria não apareceu. Mais tarde contou ao homem que não gostava daquele lugar. Tinha muita gente bisbilhoteira. O homem sabia que Marta Maria conhecia muita gente e não via mal em freqüentar aquele lugar. Mas, respeitava o desejo de Marta Maria. Estava apaixonado. E assim foi com outros lugares que freqüentavam antes. Marta Maria não aparecia. Uma hora dizia que o lugar era mal freqüentado. Outra hora que era longe de casa. Fazia dias que o homem não via Marta Maria. Quando se encontraram, brigaram. Marta Maria disse que no novo trabalho a patroa lhe estava pressionando. Se não limpasse toda a sujeira deixada pela empregada anterior seria demitida. Marta Maria ficava no trabalho até tarde. Deixou de encontrar o homem. Estava sempre cansada. O engraçado é que muitas pessoas que Marta Maria chamava de bisbilhoteiras freqüentavam a casa de Marta Maria. Eram todos seus amigos. Ela não ia aos bares para não encontra-los, mas não via nada de mal que eles continuassem a amizade em sua casa, longe dos olhos do homem.

O homem também conhecia as mulheres. Aquele repentino desinteresse lhe era familiar. Só não sabia o que tinha feito de errado. A obra do quarto das meninas estava pela metade. Não dava para desfazer. Mas, o homem não sabia se devia concluir. Tinha só uns trocados no bolso. Dava para terminar a obra, mas iria ficar em dificuldades. Antes não tinha pensado nisso: nas dificuldades. Arranjou um bico na casa da patroa de Marta Maria. Era exímio marceneiro. A patroa de Marta Maria elogiou o trabalho. O homem, além de competente era atraente, disse a patroa. Marta Maria não gostou do comentário. Disse isso ao homem. No dia seguinte o homem disse para a patroa de Marta Maria que a amava muito e que era amado por ela. Por isso pediu para que a patroa não fizesse comentários como aqueles. Pelo menos não na frente de Marta Maria. Podia até elogiar o trabalho. Só o trabalho. Disse que Marta Maria era ciumenta e achava que um pouco de ciúme era bom para temperar o amor. Marta Maria não gostou que o homem dissesse que ela era ciumenta. Brigou feio com o homem. Disse palavras duras para ele. Não se importou com os seus sentimentos. Marta Maria conhecia os homens. Os homens não eram estranhos para ela. Ela os conhecia bem. Quando era mais jovem tinha vivido com três. Um de cada vez. Fora os namorados escondidos atrás do sofá.

O homem não entendeu aquela reação. Marta Maria, tão doce, suave, carinhosa e tímida jamais tinha usado palavras como: detesto isso, odeio aquilo, não suporto aquilo outro. O homem aproveitou para questionar porque Marta Maria estava se distanciando. Por que não queria ir aos bares que antes freqüentavam e, ao mesmo tempo, continuava a amizade com os freqüentadores. Eles não eram bisbilhoteiros?

Marta Maria raciocinou rápido. Escolheu a face que lhe parecia melhor àquela situação: ofendida! Marta Maria brigou ainda mais. Elevou o tom de voz. Voltou a proferir aquelas palavras tão incomuns aos lábios de Marta Maria: detesto, odeio, não suporto.

O homem teve paciência mais uma vez. Fingiu que nada ouviu. Amava Marta Maria o bastante para contornar a situação, até que ela se acalmasse. Mas, no calor da discussão, cobrou de Marta Maria por todo aquele distanciamento. Lembrou a estória mal contada sobre o outro homem. Aquela estória da cama! Ela se acalmou. Seu tom de voz voltou a ficar doce como antes. Marta Maria prometeu encontrar o homem no dia seguinte em um local que ambos gostavam.

O homem compareceu. Marta Maria, não! O homem foi à sua casa. Marta Maria não estava. Nem as meninas! O homem passou a noite em claro, do outro lado da rua, esperando Marta Maria chegar. Ela não veio dormir em casa. No dia seguinte, ele ligou para o trabalho de Marta Maria. Ela disse que estivera trabalhando e, por estar cansada, dormira por lá mesmo, no quartinho dos fundos. Ela disse mais. Disse que estava cheia daquelas desconfianças do homem. Ela era uma mulher direita! Não se envergonhava de seu passado. Nada tinha feito de errado. Nada mais tinha a explicar! Disse que admirava o caráter do homem. Mas, era melhor que se separassem. Sentia pelos planos. Sentia pelo que ainda não tinham vivido, embora combinado. Ele era sonhador. Ela, não. Tinha os pés no chão. Viver com um homem desconfiado não era o que queria. Mesmo que este fosse o homem sonhado por ela. Que lhe prometera felicidade.

O homem conhecia as mulheres. Já tivera uma, fora muitas namoradas e casos, naturais para um homem livre como ele. Alguma coisa estava errada. Marta Maria não gostava mais dele. Tinha certeza disso. Perguntou a ela se o amava. Marta Maria não respondeu. Disse ter dificuldade para expressar esse tipo de sentimentos. Mas, o homem percebeu que ela não tinha dificuldades para odiar, detestar e não suportar. O homem disse isso a ela. Disse que ainda a amava, mas não suportaria aquela indiferença.

Marta Maria conhecia os homens. Os homens não eram estranhos para ela. Ela os conhecia bem. Quando era mais jovem tinha vivido com três. Um de cada vez. Fora os namorados escondidos no quintal. O homem estava em suas mãos. De quatro. À sua mercê! Só não contava com uma coisa: o homem conhecia as mulheres. Já tivera uma, fora muitas namoradas e casos, naturais para um homem livre como ele. O homem virou as costas e se foi, para nunca mais voltar.

Marta Maria ainda escreveu uma carta. Disse que era melhor assim. O homem era muito desconfiado. Logo ela, que nunca tinha passado uma situação como essa? Não devia explicações. A vida que levava era dela. Marta Maria conhecia os homens. Os homens não eram estranhos para ela. Ela os conhecia bem. Quando era mais jovem tinha vivido com três. Um de cada vez. Fora os namorados escondidos no jardim.

Mas, aquele ela não conhecia. O homem procurou o segundo homem. Aquele do bar. O mesmo que cochichou no ouvido de Marta Maria e que ela disse que estava com saudades dele em sua cama. O segundo homem soube que estava sendo procurado. Escondeu-se por uns dias. Até que o encontraram morto. Sem as partes. Um ferimento de faca no peito.

O homem conhecia as mulheres. Já tivera uma, fora muitas namoradas e casos, naturais para um homem livre como ele. Marta Maria não teria paz. Marta Maria conhecia os homens. Tinha medo deles. Vingava-se deles. Os homens não eram estranhos para ela. Ela os conhecia bem. Quando era mais jovem tinha vivido com três. Um de cada vez. Fora os namorados escondidos em suas lembranças. Agora, só nas lembranças! Até que um outro homem chegou. Já estivera com ela antes. Escondeu-se em armários, sob a cama de Marta Maria, atrás das cortinas, atrás do sofá, no quintal e no jardim. Tinha ficado na lembrança. Chegou perfumado, mas trazia um buquê de flores na mão. Marta Maria conhecia os homens!

Comentários do autor:

Espero que você não tenha se cansado. Há uma explicação para o mantra que se repete exaustivamente (Marta Maria conhecia os homens...). As pessoas, de uma certa forma, criam as armadilhas em que elas próprias caem e delas se tornam prisioneiras. Como dentro de um círculo vicioso, repetem exaustivamente suas experiências até amadurecerem e encontrarem suas próprias saídas. Quando não há mais saída, a saída do ser humano é a loucura ou a morte. Essa é a máxima falência de uma vida: quando, dentro de seu próprio referencial, descobre-se prisioneira de si mesma, dos condicionamentos que criou para si própria ou permitiu que outros estabelecessem.

A psicanálise tenta em vão compreender o ser-humano. Os motivos que nos levam a sermos como somos. A Marta do conto, no fundo, odeia os homens embora os conheça bem. Psicanaliticamente poder-se-ia dizer que seu ódio foi impresso em sua psique na mais tenra idade. Em sua própria pele ou na pele de outra mulher (sua mãe?) sentiu desprezo pelas coisas que vêm dos homens e, na fase adulta, vinga-se, atraindo-os, seduzindo-os, para depois usá-los, traí-los e abandoná-los. Vinga-se, assim, do primeiro homem que lhe serviu e serve de referência, como se todos os homens fossem representar a mesma ameaça e merecessem ser indefinidamente punidos. É claro que o leitor deve examinar sob o ângulo inverso: o homem em relação à mulher.

Quantas pessoas conhecemos, homens e mulheres, que deixam de ser felizes porque ainda não descobriram a saída para suas armadilhas?

Note que o terceiro homem, enquanto era apenas um instrumento para a vingança de Marta, não tinha muita importância em sua vida e era aquele que, na realidade, fazia de Marta uma mulher real e verdadeira. Por isso já estivera atrás de sofás, de armários, etc. Quando aparece com as flores esse homem passa a ter um novo significado para Marta. O mantra, para ela, se reinicia.

Conheci muitas "Martas Marias". A última delas é que me despertou esse insight sobre a armadilha em que eu próprio havia me aprisionado. Já achei a saída!

Outras armadilhas: bens materiais, religiões (e não religiosidade, esta é diferente), fama, vigor sexual, etc. Note que, como tudo, duram apenas um instante. O que restará depois desse instante?

Certas armadilhas, no entanto, são importantes para nossa evolução. Daí a questão: o que é evoluir?

Paulo Sergio Medeiros Carneiro
Enviado por Paulo Sergio Medeiros Carneiro em 05/10/2006
Reeditado em 20/02/2007
Código do texto: T256607
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