A mamãe cão e seus astros acrônicos

Era um fim de tarde de verão. As crianças se entretinham em conversas, em brincadeiras solitárias. Os adultos davam vigília diante da televisão –esperavam um gol, dois, enfim, uma vitória. Outro estudava, outra, talvez, ‘alfaiatava’, e eu, bem, eu não sei bem o que fazia no momento que um senhor gritara avisando-nos da novidade, mas apenas um par de ouvidos escutara o senhor meu sogro. Logo depois, mediante o tumulto de vozes uníssonas, eu me aproximei para atestar a tal novidade –que lhes adianto, tratava-se de um imprevisto.

Estávamos em número de três, o sol desvanecia seu brilho por debaixo dos meus óculos e sub-rogava-se por um brilho diferente, pelos brilhos de um par de olhos cansados, todavia felizes, agradecidos, contudo penhorados pela necessidade de manterem-se a “sós”. Tudo aquilo, para mim, deixou-me, enfim, entusiasmada, afinal, fui arrebatada por aqueles olhos e gestos articulados de afagos, carregados de uma meiguice incomum. Tudo ali era tenro e fugaz, piscava-se os olhos e pronto, acabou.

O que eu vislumbrava, meus caríssimos, era uma cadela e, ao seu redor pequenos seres, que mais se pareciam com ratos e ao seu derredor fustigavam o seu dono e parentes humanos. O cenário era, simplesmente, esquisito de tão especial. Os pequenos seres eram, inicialmente, em número de quatro. A mamãe cão, que apesar de cansada, parecia dar-se conta de toda a situação, e eu, até já a qualificara como boa mãe, quando notando os seus pequenos gestos. De estatura mediana, corpo malhado de marrom pardo com cor de fagulha e o pai, ah, o pai -grande e negro como a noite-, juntos, tiveram fortes e frágeis pequenos cãezinhos, uns que encobriam-se entre si, outros que –na tentativa de achegar-se da sua genitora- perdiam-se, outros que alcançavam seus peitos -fartos de leite. Depois, vimos nascer mais dois. Eu, neste momento, entalhava os olhos naquela cena, tão noviça e encorajadora para mim e para uma certa futura mamãe, e então pensava: Santo Deus, parece mágica!, quando...

Nasceu o quinto ser, fagueiro até demais por sinal, não se incomodava mesmo com a luz do dia, e nem mesmo o calor dos humanos ao seu derredor lhe derretia a vontade de engatinhar por ali, e foi então se acomodando às ‘linguadas’ da mamãe cão e se comportando como um bom e recém-nascido que foi ganhando espaço, ali, naquela maternidade. E sabe, eu vi no olhar de quem já deu a luz, umas cenas transpassando dos seus olhos até as telas dos nossos. Foi quando a plenitude do ser humano, afinal, me fez entender que este, se locupleta com a concretização do sonho de uma gestação, pois, afinal, um ser gerar outro ser é, destarte, uma quimera.

Pois então, depois da cena que me imobilizou a capacidade bípede, parecíamos mesmo angustiados, irrequietos. A mamãe cão estava metida em um buraco e seus filhotes não pareciam muito confortáveis, além do quê, toda a ideia de higiene e segurança estava fora daquela cena. Então, resolvemos ajudá-la, mas, o coração arritmado confundia-nos os ticos com os tecos, de tal forma que, mesmo com uma casinha seca e arejada diante de nossas ventas, optamos por um tabuleiro que, sentado ao chão de terra desnivelado demonstrava toda a insegurança daquele esteio improvisado. Eu, era a mais buliçosa. Tinha medo de acontecer com aqueles pequenos seres o que já acontecera com meu gatinho –pelo qual tinha muita estimação-, o meu Sushí que morrera envenenado sabe Deus lá por quem e por quê, e eu nunca soube direito o que fazer enquanto ele estava perdendo os movimentos até findar sua respiração, pondo fim em sua vida, sei que depois disso, eu consegui berrar até não aguentar mais enquanto meu noivo –à época do fato- e minha mãe tentavam me acalmar dizendo que não havia mais o que fazer... Eu nunca tive coragem de olhar pra ele depois do episódio final, nem tão pouco de enterrá-lo.

Mas, enfim, que Deus o mantenha em um excelente lugar, sempre olhando por mim; ficaram, afinal, boas recordações, as quais agora relembrando-as me fazem precipitar umas gotas e me pressionam o coração como com duas mãos impiedosas. Ah, como eu o queria de volta, Deus! Então, voltando ao assunto, mais parentes haviam chegado, todos se importavam com aquele acontecimento, constatação que me fez mais apaixonada por todos. Minha cunhada menor se contorcia comovidamente ao ver mais um ser vir a este mundo de meu Deus e cintilante seus olhinhos incompreensivos tentavam adivinhar o que aconteceria depois, é que o pequeno filhote da mamãe Tigresa estava preso na placenta. A mamãe tão só lambia, e eu já estava mais que angustiada, todavia, tentava lançar olhares clínicos, buscando uma provável solução de êxito se a mamãe cão não superabundasse sua inteligência animal, e aqui, abra-se um parêntese, não é um paradoxo, os animais são sim inteligentes, a gente que tem uma visão diferenciada sobre as coisas e a instigamos como a verdade absoluta. O que chamamos de animal irracional tem esta qualidade anulada pelo vetor instinto, compreendeu? E então, vocês devem estar se perguntando: o que a mamãe Tigresa fez? Caríssimos, de uma singularidade espetacular, de uma mágica exuberante, a lenda se estende à seguinte atitude: as mandíbulas da mamãe cão abocanharam a placenta compreendida à cobertura da parte inferior do feto nascente e rasgou-a até que se descobrisse toda aquela cria! Im-pres-sio-nan-te! Todos ficamos fascinados, boquiabertos, estarrecidos.

Mendigávamos, ainda, a paz daquela colheita que demonstrava-se faminta, contudo, parecia inútil. A nossa atitude rasante e derradeira foi quando envolvemos 2/4 do esteio com tecidos e já se encontravam os seres aconchegados no quente e cálido corpo da mamãe cão.

Depois do calor dos nascimentos, uma ideia sem melhores precedentes furtou-se da timidez e insegurança e entalhou-se na boca de meu marido. As crias e mamãe Tigresa foram guarnecidos em uma humilde casinha. A casinha era do Bike -o cachorro do meu amor-, que tinha insculpida no chão de cimento o nome do antigo dono, era pequena, coberta com telha de barro e gradeada com tranca e tudo o mais, como casa de gente. Ali, mamãe Tigresa contava com água e ração a seu alcance e a grande maioria mamava como nunca, enquanto um ou outro tentava um peito livre. Tudo ficou bem e a casa foi comer, conversar e sorrir.

Mais tarde, a noite já latejava seu manto negro sobre o céu quando minha cunhada, com semblante preocupado pediu que meu amor fosse até a casinha e ‘curiasse’ os recém chegados. Fomos até lá, munidos de duas lanternas que não ajudavam tanto quanto a visão noturna, mas acompanhava bem a nossa missão. Encontramos um negro pequeno distante e sonolento, que, nem o enjoo da esguia pata da mamãe Tigresa estirada sobre o tal preguiçoso filhote parecia desanimá-lo de cair de boca no sono. Os demais pareciam lutar por comida, apesar de nenhuma resistência oferecida pela mamãe cão que, de repente se levantou e recostou-se em outro canto da casinha, cansada. Assustada, não consegui pensar em mais nada, além de abrir a portinhola do abrigo, ação gerida e realizada por meu marido. Foi quando, depois da última olhada em sua ninhada, mamãe Tigresa direcionou-se para efetuar sua fuga. Tranquilamente ela saiu, depois, lépida e fagueira saltava timidamente pelo quintal misto de gramado e areia. Pensamos que ela não ia mais voltar ao seu posto, mas, depois de reservar-se às necessidades fisiológicas, mamãe Tigresa, serenamente, tornou a seu ninho e acomodou-se junto aos pequenos cãezinhos, carinhosamente. Eu fiquei –mais uma vez- meio alucinada e ao mesmo tempo feliz com o tamanho caráter daquela mãe, inteligentemente, cão.

A casa estava calma, um já estava dormindo o sono dos justos, uma outra assistia televisão, outra acompanhava o ofício da madrinha, outra deveria estar em seu quarto aguardando seu sono e eu e meu marido, ah, eu assistia ao Fantástico e ele também, entremeando sua atenção para com os estudos, de frente para seu laptop. Os demais já estavam mais serenos e a paz abotoara-se à camisa do amor.

No dia seguinte, o sol já despontava havia uma hora e meia, quando ouvi comentários de que mais dois hóspedes foram prêmios de mamãe Tigresa, porém, logo em seguida a nota triste: um deles havia nascido morto. Não sei como se deu, não sei também aonde puseram o infeliz cãozinho natimorto, mas sei da Tigresa, há pouco tempo visitei a mais nova mamãe da casa e ela estava com um olhar cabisbaixo, triste, todavia, aveludado pela meiguice do poder de ser mãe e enriquecia uns dois pequeninos com mimos afocinhados. Eu entendi sua tristeza e não quis ocupar seu olhar com minha visita um tanto que intransigente, apenas disse: você teve lindos filhotes, admirei mais um pouco os pequeninos agora secos e mais lúcidos que dialogavam um colóquio surdo-mudo-cego entre si e seus movimentos rítmicos circulares balbuciavam suas fragilidades diante da coruja-cão-mãe Tigresa. Girei, então, o pé direito, ergui para distante pouco, o esquerdo, e passei a compassá-los assim até que entendi porque eu resolvi contar-lhes toda esta estória e vou lhes compartilhar a descoberta, esse acontecimento, seja quem for a protagonista, se trata de uma ufania muito bem cabida às mamães a bordo e uma delas me passou as emoções, as contraídas e as pestanejadas, tudo, pela arte de dar à luz. Ruaaaaaaaaaauuuuuuu!

Nathanaela Honório
Enviado por Nathanaela Honório em 29/11/2010
Reeditado em 30/11/2010
Código do texto: T2643650
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