Bonifácio

Ele apareceu do nada. Eu estava ao telefone, falando com minha mãe lá na fria República do Brasil.

De repente eu o vi unhando a minha janela. Eu bati espalhafatosamente no vidro para assustá-lo (foi uma reminiscência da minha infância peralta: um diabrete ainda vive em mim e se manifesta nessas ocasiões), todavia ele não se assustou; aparentemente ele sorriu miando com um miau longo e cheio daquelas manhas e doçuras que partem o coração da gente.

Essa impressão de suscetibilidade e carência que ele me vendeu nesse primeiro contato, desapareceram imediatamente quando ele sem sobreaviso saltou e agarrou com as unhas poderosas a minha cortina, desfiando algumas linhas e fazendo uma grande ginástica para passar para dentro do meu quarto.

Como a dona Chica da ciranda, admirei-me com o salto de acrobata do gato, preso pelas garras na minha cortina tão pobrinha e assustado pelo inesperado, gritei xô fechando a janela antes que o fedelho derrubasse minha cortina dos trilhos ou invadisse meu quarto.

Ele caiu com destreza e lançou-me um olhar decepcionado de cima do muro e se foi embrenhando pelos quintais da vizinhança. Foi sem ir. Foi para retornar em 5 minutos. Voltou com uma estratégia variada: miou e unhou a janela, fazendo um ponto de interrogação com o rabo no ar. Seus olhos verdes amarelados pareciam que pediam no silencio de suas profundidades por uma xícara com leite, a qual ele pagaria com um daqueles chamegos que somente gatos interesseiros sabem dar, enroscando nas pernas de suas vítimas, levantando o dorso e empinando a cabeça -esse é o "muito obrigado" na linguagem corporal dos gatos.

A janela reaberta, o apelo irresistível, o olhar doce, inquisitivo -temerariamente verde, associados a minha falta de juizo concordaram:

-Entrai, eu consenti!

E ele entrou. Passou por mim como se eu fosse uma cadeira velha, um guarda-chuvas num balde, um peso de segurar porta, enfim ele me ignorou superlativamente e em dois segundos já estava miando na sala. Inspecionou o banheiro com relativo desdém. Voltou ao quarto, olhou-me de soslaio, miou, miou e miou. Deduzi que estava com fome e abri para ele uma lata de atum. Antes que me exigisse algo mais dei-lhe também leite e água fresca. Ele comeu e bebeu sem muito entusiasmo e continuou palmilhando cada polegada quadrada da minha casa. Parecia que procurava algo.

Mas eu queria já com impaciência que ele pagasse a despesa do atum, do leite, da água e da boa vontade, enroscando-se entre as minhas pernas, ronronando feliz e bem nutrido!

Ao invés disso, ele começou a unhar o veludo da minha poltrona e quando eu bati o pé no chão com força e indignação, ele correu para o meu quarto e entrou debaixo da cama. Fiquei chamando e depois de uns minutos ele veio. Lambeu meus dedos. Fez festinha na minha mão. Telepaticamente conversou comigo: ele me agradeceu o atum mas preferiria se fosse sardinhas. O leite estava ótimo, apesar de gelado e a água não era preciso. Enroscou-se enfim entre minhas pernas e como veio partiu num salto janela afora deixando pela casa uma quadrilha de pulgas famintas e bandoleiras que agora me atormentam.

Como uma Dona Chica moderna admirei-me outra vez com o gato e sua independência. Tão independente que lhe chamarei de Bonifácio, numa homenagem ao patriarca da independência do Brasil.

E agora só ficaram as pulgas, mas a que mais me incomoda é a que está atrás da minha orelha perguntando: "De onde veio esse gato e porquê ó néscio deixaste ele entrar?"

Marcos Aurelio Paiva
Enviado por Marcos Aurelio Paiva em 23/07/2013
Reeditado em 28/08/2014
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