Tia Julia, feijoada e buzão.

Domingo, 22 horas, no ônibus a caminho de casa, alguns minutos depois que subi no coletivo, embarca uma nobre família: pai, mãe, filho, filha e por último a tia da matriarca da família. O veículo estava silencioso até então. Mas, à entrada triunfal da tia Julia, o ambiente se transformou. Ela carregava consigo uma vasilha do tipo “tuppeware” abarrotada de feijoada, arroz, couve e farofa. Certamente saíra às pressas do lar em que havia passado o domingo e o tempo restante da noite na casa visitada não havia sido o suficiente para que a anciã saciasse a fome, fruto de uma sadia bebedeira de domingo.

Outro detalhe interessante era a aparência da digníssima senhora: calças capri pretas, blusinha de alças finas, deixando de fora a parte de baixo da barriga soberbamente saliente, cabelos despenteados e, a “cereja do bolo”, um pequeno arroz no canto inferior direito da boca. Sua voz era alta, ululante e revelava que alegre senhora havia ingerido mais ou menos uns três litros de “suco de cevada” ao longo do dia. Ao se deparar com os passageiros, comportadamente sentados, desferiu a primeira pergunta:

- Cumê? – e olhou acolhedoramente para todos.

Os entes queridos se entreolharam e soltaram risinhos contidos diante daquela cena majestosa.

- Ué, tenho que sê educada, vô comê e num oferece pu zoto? – defendeu-se tia Julia.

O pai não conteve a risada e soltou-a largamente.

A tia Julia dirigiu-se a um banco vazio, tentando equilibrar-se enquanto o ônibus balançava, provocando fortes emoções na família.

- E vocês acha que o povo nunca viu feijoada no buzão, não, é? Óia, tá uma delícia! Eu tava c’uma fome danada e tu queria que eu ficasse sem cumê?! Ah, mai de jeito nenhum – apontou a vasilha para mim e perguntou: Cumê, moço?

A sobrinha logo advertiu:

- Tia, uma coisa é brincar entre a gente, outra coisa é ficar envolvendo as outras pessoas que não tem nada a ver!

- Oxi, eu só tô ofereceno! Num tem nada de mais nisso, num é não moço? Hum... tá gostoso! Qué, moço? – perguntou-me a persistente senhora, ao que respondi:

- Não, obrigado! – e ri, demonstrando que não me incomodava com a oferta.

- Tia, para! Você sabe se o homem está gostando disso? – manifestou-se o pai em tom de sensata autoridade, mas logo caiu na risada.

A tia respondeu:

- Qué que tem?! Cum fome é qu’eu num vô ficá! Se tivesse uma cervejinha ficava melhó ainda!

O pai levantou-se e com o aparelho celular fotografou a tia, que ainda fez pose, mostrando um sorriso banguela, que carecia dos “laterais direita” superior e inferior.

Era lindo ver a alegria daquela família, mesmo numa situação tão constrangedora para alguns passageiros. É isso mesmo, caro leitor, alguns passageiros estavam se sentindo constrangidos. Olhavam torto, falavam de lado, à boca pequena sobre os modos daquelas pessoas. Houve até quem dissesse; “Tinha que ser de cor mesmo” – só por que eles eram negros. Mas, a família não se intimidou e a tia Julia logo retomou a liderança das estripulias:

- Óia, ainda bem qu’eu truxe essa feijoada, viu, porque se não eu já tava morta de fome!

E continuou comendo.

As crianças se divertiam com tudo aquilo e comentavam:

- A tia é móu doida, né?! E ela tá comendo tudo sem nem ter vergonha – falou a menininha.

- Ixi, me deu até vontade também, mas eu tenho vergonha! – respondeu o irmão, que caiu na gargalhada.

E a tia terminou sua janta, guardou a vasilha numa sacolinha dessas de supermercado, cruzou os braços, encostou a cabeça à janela do ônibus, e dormiu como um anjo após o banquete celestial. Era possível perceber o quanto estava satisfeita com aquele momento. E toda a família estava satisfeita. E com essa saciedade, penso que também parte do mundo que gosta de feijoada e alegria estava satisfeita.

E o buzão, como diria a tia Julia, voltou à calmaria do início. Só alguns altivos não tomaram parte no sabor daquela refeição, que mesmo sendo tomada por apenas uma pessoa, distribuiu sabor a muitos naquele coletivo e em tantos outros lugares em que há solidariedade e desejo de refeições felizes, sejam elas à mesa ou dentro de buzões, em meio a pessoas desconhecidas.