RECONSTRUÇÃO

Já não tínhamos quase nada. Quando a solidariedade alheia nos provia de algo (velhos rádios a pilha, televisores em preto e branco em estado precário, e similares) lá vinha o Nem destruir, com uma curiosidade que irritava profundamente os oito irmãos que sabiam: em pouco tempo voltariam a ver tevê pela janela de algum vizinho e ouvir de longe as músicas entoadas em algum rádio que nem saberíamos onde estaria.

Éramos (e somos) nove irmãos "escadinhas": um ano e dois meses, um ano e meio, no máximo um ano e nove meses de diferença de idade entre um e outro. Brigávamos à exaustão por qualquer sucata obtida, a exemplo de brinquedos e peças rotas de vestuário, e por pedaços de "mistura" (do que chamávamos carne), sempre que alguma alma boa sentia pena de nos ver mal alimentados, sem brinquedos e quase nus. Mas acabávamos sempre "de bem", porque éramos irmãos e só tínhamos um ao outro, além de nossa mãe, que trabalhava dia e noite em casas de madames e tinha pouco tempo para ficar conosco.

Todos os dias, nossa mãe acordava de madrugada. Pedia-nos carinhosa e apreensivamente que cuidássemos um do outro, deixava nosso arroz (ou angu) com feijão pronto, tomava um gole de café sem pão, porque o pão era pouco e não queria que faltasse para nós, e saía decidida a nos defender da morte por inanição dentro de quartos sem banheiro, nos quais nos amontoamos por uns bons anos.

Mas o caso é o Nem. Ele destruía os aparelhos mais ambicionados que entravam em nossas moradias, pelas mãos de vizinhos condoídos, simplesmente porque desejava saber o que tinham dentro e remontá-los depois, o que nos valeu anos de frustrações: um dia tínhamos, outro dia não mais, e voltar a ter levava tempo, se naquela época ninguém desfazia facilmente de um bem de consumo. Essa prática levou o Nem a ganhar uns bons cascudos e ouvir poucas e boas dos irmãos. Por se tratar de um dos mais novos, ele tinha essa desvantagem de não ficar impune, pelo menos durante a ausência materna, o que significava boas horas de sofrimento após a descoberta de cada nova destruição.

Ficávamos mais enfurecidos ainda com nossa mãe (na qual nunca demos nenhum cascudo), porque ela defendia o nem, dizendo com a maior naturalidade do mundo: "Deixem o menino, crianças... ele faz isso por algum motivo bom... eu até acho que é nisso que está o futuro dele!". Pulávamos de raiva, saíamos gritando palavrões, usávamos argumentos apelativos, mas nada: mamãe defendia mais ainda, pedindo que deixássemos o danado prosseguir com a destruição das coisas que correspondiam, na sua cabeça, ao futuro de nosso irmão.

Muita gente chegou a duvidar, mas vingamos... Conseguimos chegar à idade adulta, já estamos maduros e temos filhos que em pouco tempo terão os seus. A força e a coragem de nossa mãe, que também começou a contar com um pouco de nosso esforço quando chegamos à adolescência, conseguiu vencer o fantasma da inanição. Temos nossos empregos, moramos em casas normais, comemos dignamente e temos algum conhecimento entre o adquirido na escola e o imposto pelos percalços, e isso nos faz preparados para enfrentar sem medo, o mundo.

Quanto ao Nem, ele já não destrói mais aparelhos. É um profissional de primeira linha, que apenas conserta (e faz isso como ninguém) aparelhos de som e tevê, computadores e outros, e é muito admirado pela eficiência, rapidez e honestidade com que trabalha... Sobretudo, pela responsabilidade que exige de si próprio, sendo encontrado a qualquer hora dos dias úteis, na sua bem freqüentada loja de consertos.

Não preciso dizer que nossa mãe é uma vencedora. Tomou só para si a responsabilidade da criação de nove filhos que o pai abandonara ao deixá-la. Ela consertou nove vidas, que o destino quis destruir, sendo esperançosa e paciente...

Justo como pediu, durante anos, que entendêssemos a necessidade de permitir que o Nem construísse a sua carreira tendo liberdade para exercer essa esperança e essa paciência cuja finalidade nem ele mesmo sabia, quando começou.

Perdão; o coração de nossa mãe sabia.

Demétrio Sena
Enviado por Demétrio Sena em 09/06/2007
Reeditado em 02/12/2010
Código do texto: T519672
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