A Analista Literária

Tempos depois.

...e desde quando o Sr. vem sentindo esses sintomas?
— Há bastante tempo. Muito tempo mesmo — respondeu fazendo o tradicional gesto estalado entre o polegar e o médio.
— Em termos de anos eu quero dizer — questionou ela cruzando as pernas.
— Bem, acho que há quase uns três. Não sei direito.

Certamente que uma resposta tão vaga assim não a deixaria satisfeita.
— Com quem mais tem falado a respeito deste fato que o deixa tão perturbado?
— Deus me livre de comentar uma coisa dessas com outra pessoa! Me sinto envergonhado só de pensar… Elas ririam de mim, tenho certeza — respondeu com um leve rubor no rosto, pois escondera a verdade.

— Eu por exemplo não vejo mal algum nisso. Aliás o Sr. deveria até se orgulhar porque isso é uma dádiva. E lembre-se sempre de uma coisa; o pessimismo é um mau que somente os medíocres o aceitam. Nunca se esqueça disso — comentou com razão apontando-lhe o indicador esquerdo quase em riste. 

Naquele momento um fio de coragem o animou, mas não o bastante para se revelar.

— Ainda não me sinto confiante para me expor. Preciso de mais tempo... coragem, quero dizer — concluiu no auge de uma respiração ruidosa.
— E até quando pretende continuar se escondendo? O Sr. estará se martirizando a toa, sabia?
— Eu sei, mas isso tem cura, né? — questionou preocupado se ajeitando na cadeira.

Antes que ela desse o seu aval alguém bateu à porta obrigando-a se levantar, interrompendo o diálogo por alguns instantes. Um bom motivo para ele ensimesmar-se.
“Era só o que me faltava, puxa vida! Por que as pessoas não sabem respeitar os direitos dos outros? Mas será que ela está me dizendo a verdade? Ou então é apenas para não… Oh Deus, que cilada me metestes!?”

Na volta retomaram a questão no ponto onde haviam parado.

— Não se preocupe porque pode acontecer com qualquer um — disse com naturalidade — E o tratamento, se é que podemos usar este termo, depende somente de sua autoestima. É só fazer um pequeno esforço que logo verás os resultados que muito em breve pretendo vê-los — concluiu.
Percebendo que não tinha muitos argumentos para dis-farçar ele desviou o olhar para um ponto qualquer na parede. Por alguns segundos permaneceu assim como um dois de paus. Depois disse envolvido pelas dúvidas:

— Pode até não ser, mas como eu já falei faz um bom tempo que entrei nessa cilada... Desculpe-me a franqueza, mas acho que não está entendendo a minha situação...
— Evidente que sim — atalhou ela. — E é por isso que estamos aqui, ora essa!
Foi um bom motivo para encorajá-lo, mas como o tempo havia se esgotado ele se desesperou. Não queria de forma alguma que aquele diálogo fosse interrompido.
— Por favor, vamos conversar mais um pouco!? Não me deixe na mão, eu imploro!?

Por muito pouco não ajoelhou-se. 

— Deixá-lo na mão!? — exclamou ela mostrando os lindos dentes. Tão brancos e uniformes que pareciam feitos de porcelana para enfeitar seus lábios sensuais.
— Mas... espere! E minhas mãos...?
— Ora, ora faça-me o favor! — e acrescentou logo em seguida com um belo sorriso. — Suas mãos, ou melhor, seus dedos não têm problema algum. E pelo que vejo o Sr. não sabe fazer outra coisa a não ser usá-los quase que sem pa-rar. Tenho notado isso desde quando passamos a nos...

Ouve um momento de indecisão entre eles culminando com a brandura de seus olhares que se cruzaram no ambiente quase silencioso.

— Fale Dra.! — inquiriu instantes depois revertendo a situação. — O que houve com a sua autoconfiança?
Voltando-se com elegância ela disse mantendo a mesma postura de sempre; uma atitude admirável que o deixou estático.
— Não queira ditar as regras porque as coisas não são assim... Amanhã retornarei aqui para darmos sequência no assunto, está bem? Isso faz parte da psicologia.
— Só amanhããã! — exclamou inconformado. Jeito de criança manhosa que não sabe bem o que deseja.

— Com certeza, porque você tem quase todo o tempo do mundo — confirmou ela quebrando o protocolo do pronome de tratamento. — Ao menos que...
— Que... — atalhou ele flechando o seu olhar no centro de suas pupilas protegidas por um par de íris mestiças cor de ébano.
— Que me mostre o que está escrito aí — completou ela com delicadeza após levantar-se da poltrona.

Em questão de segundos uma expressão de felicidade fez o seu rosto se transformar. Mas ele ainda se negaria, porém com bom humor.

— Ah! eu acho que hoje não vai dar não... — disse re-volvendo a sua auto-estima.
— Ora! mas porquê não?
Embora educada a pergunta transpareceu uma curiosidade acima do normal.
Num estalo buscou o mesmo subterfúgio que ela havia usado, e com outra dose de humor.
— Porque você, se me permite chamá-la assim, também terá todo o tempo do mundo, sabia? Afinal, amanhã será outro dia...

Essa resposta bem a altura dos fatos, temperada por assim dizer, a fez sorrir novamente com sinceridade. Logo depois ela deixou no local a deliciosa e inconfundível fragrância de sua colônia, e um imenso vazio que duraria cerca de doze horas, mas que pareceria uma eternidade. Seu olhar a seguiu durante alguns segundos. Por detrás da porta de vidro a mímica de um beijo sem malícia se perdeu no ar. 

Naquele momento o relógio na parede assinalava vinte horas e alguns minutos. A noite estava linda e com uma lua maravilhosa a espreitar através de nuvens brancas que mais parecia um imenso véu de noiva. Por entre as longas sombras das árvores do jardim milhares de pontinhos prateados riscavam lentamente a grama borrifada de orvalho. Era hora de partir.

Durante alguns minutos ele permaneceu estático, alimentando a sua mente e com o coração embriagado, transbordado pelo mais sublime de todos os sentimentos.
“Oh céus, como farei de agora em diante para disfarçar que estou encantado por esta beldade!? E eu que pensei que isso jamais fosse acontecer!”

Na página do Word havia uma frase digitada em negrito: 
 “O Coração do Digitador”

NB - Classificada para o concurso "Para Não Dizer Que Não Falei De Tudo"
Litteris Editora"
Milton Cavalieri
Enviado por Milton Cavalieri em 12/10/2005
Reeditado em 15/10/2009
Código do texto: T58939