FATOS EM CENA!... Um mundo que me assusta!...

Vamos falar, um bocadinho de mim?

Das passagens por onde andei, mas não se entusiasmem, pois nem tudo contarei, apensa algumas vivências!..

Nem sei se conseguirei, mas vou tentar!..

 

Não lembro o ano nem a escola, lembro que era um bairro muito carente no ABC paulista.

Estávamos em férias, mas como eu precisava de aumentar minha renda, fui trabalhar, aproveitando a chance que me surgiu por meio de uma diretora amiga… Os alunos ali, eram adolescentes daqueles que, nenhum professor quer em sala e, por estarem em recuperação e serem menos que uma sala normal, juntos era algo que poucos se atreviam a aceitar a incumbência de ensinar e, lá estava eu, dirigindo de uma cidade a outra, era longe de onde eu morava, mas, fazer o que, eu precisava…  

A escola era uma gracinha, um prédio muito bem estruturado e bem administrado, a diretora era esperta e fazia suas negociações de convivência com os "mandantes" da área para que pudesse trabalhar com uma certa Paz, não fosse assim, não teria condições… Chegue e fui logo para a sala!… Já no início do corredor pude ouvir a bagunça e correria no lugar, o que me deixava danada e meu cérebro a maquinar, como trabalhar, eu não estava ali, vinda do meu lar, para não fazer nada ou deixar aluno me comandar, ahhh isso que não!…  

Agora, vejam só!… Para vocês terem uma ideia!… Eu, que de uma senhora rabugenta de geografia, não tinha nada, era, sim, uma jovem muito bem da linda, linda com "força", bem vestida e montada num "baita" salto (por ter apenas 1,60 m, fazia questão do mais alto) e era elegantíssima e firme nesse andar no alto e como resultado, até meu chinelo (chinelinho de pelinho, do sul) de andar em casa, era de salto, não conseguia mais

caminhar de outra maneira… Pois bem!… Aquela lindeza de gaúcha do Rio Grande do Sul, bonita e brava, atravessou lentamente o corredor e parou na porta da sala de aula e ali ficou, olhando!… Eu poderia ter ficado ali, a vida inteira, o que eu não faria jamais, era entrar em meio a toda aquela indisciplina, e nisso eu era bem firme, em tudo eu era assim, em todas as relações e vivências, nasci assim!…

Agora vejam a cena, eu na porta, a bagunça na sala, mas, gradualmente, um a um foi me vendo e um a um, foi sentando e ficava me olhando pasmo!… Só, depois que todos sentaram, eu entrei! Bem devagar fui me acomodando e procurando ver a reação da sala, de verdade, eu não era fácil!… Depois de tudo pronto, com o giz em uma mão e o apagador na outra, me dirigi a lousa ou quadro negro que já não era negro, era verde!… kkkk, pois é!… Ainda sem dar importância a sala, escrevi, em toda a extensão daquele "objeto" que tinha o tamanho da parede e, juro, eu o achava magistral, e la escrevi em letras garrafais RESPEITO e mais devagar ainda, batendo uma mão na outra para tirar o pó do giz, virei para os alunos!… Gente, as expressões eram homéricas, nem uma igual a outra, todos expressando curiosidade e receio até a vontade de me expulsar dali, mas não podiam, e eu me aproveitei disso e comecei com um Bom Dia!… Mais se mexeram em suas cadeiras do que responderam e eu continuei, e fui falando de como eu trabalhava, de como eles tinham que decidir o que desejavam, se uma "maldita megera" ali na frente deles ou se a "melhor amiga" que eles já tinham tido!… Falei sobre isso e o que mais aprecio, até hoje, e que levarei comigo para a eternidade, essa figura imponente:  "RESPEITO"!… Garanto para vocês, jamais tive problemas com alunos, nem com os meus, nem com os de outros colegas, esses, sim, até vinham na minha porta e se punham a falar com meus alunos que estavam bem sentados e em fileira, com atenção à minha aula, e nesse momento fatídico mesmo que eu ficasse quieta, era para o bem de todos, mas, me incomodava, eles podiam ser antiéticos eu não, e nem nesses casos, os alunos abriam a boca, eles confiavam em mim e eu, não os decepcionava por nada no mundo… Essa era a relação com meus alunos que no final terminavam como meus amigos…

Assim fui testemunhando coisas que até Deus duvida!… Nessa turma, que eu estava agora, um dia eles chegaram um tanto que nervosos e claro que eu tinha sensibilidade suficiente para perceber que naquelas condições não adiantaria eu "berrar" que não conseguiria resultados positivos, e a experiência me mostrara que em outro dia, quando estivessem mais receptivos o aprendizado iria superar qualquer momento mal aproveitado então, "sentei em cima da mesa" e quando confortável, liberei para que viessem e se acomodassem perto, eles adoravam esses momentos e vejam, na verdade, eu não jogava fora um segundo de aprendizado que fosse, podia não ser geografia propriamente dita, mas ia desde aplicar uma psicologia, sociologia, até uma educação que seria dos pais de como sentar ou mastigar. E assim eu era com eles e me encantava o retorno que tinha!… Então naquele dia, ali na mesa, rindo e falando sobre as vivências de cada um, ouvindo o que eram seus dias, de repente me doeu o coração, tantas histórias tristes e com essa minha verdade que todos conhecem, falei:

 — Sabem, me doí tudo o que vocês passam, como sobrevivem, são, quase crianças, ainda e de bom coração, mas fazem muitas coisas erradas, coisas que eu não concordo, poderiam mudar essas atitudes… (falávamos das agressões entre eles e deles com os demais…)

E pasmem, uma jovenzinha franzina que aos olhos de quem visse não tinha mais que uns 11 anos e tinha 15, se virou e o que ouvi calou tão fundo dentro de mim que eu jamais esqueci, ainda me vem lágrimas aos olhos: 

— Professora o que a senhora quer?… Não espere mito de nós!… Quase todos os dias precisamos empurrar a porta de casa com força, todos juntos, para afastar o morto que jogaram ali ou não podemos vir para a escola…

Agora, imaginem o que vi dentro daquele olhar e como me senti!…

 

É fato!... Uma realidade enfrentada diariamente por nosso povo, por nossas crianças!...

Essa não era a escola onde eu fora designada então, as férias acabaram e eu segui em frente, nunca mais voltei lá, mas não esqueci aquela jovenzinha e nem aquele olhar… Sempre penso nela com carinho, me pergunto o que teria sido da sua vida, qual teria sido o seu futuro!…

Aposentei, mas, tenho muita saudade dos meus alunos, eu os amei de verdade, sinto por todas as oportunidades que lhes foram tiradas!…

Mas, enfim, é vida que segue!…

 

Carmen Cristal

Botucatu - SP