Na torre da igreja

A praça estava lotada. Gente de todos os cantos do Município. Padres de todos os lugares também. Finalmente chegávamos às comemorações dos cento e cinqüenta anos da Paróquia de Maranguape. Era a oportunidade de renovarmos as imagens dos aniversários anteriores. Aliás a única imagem cultuada sobre os aniversários da Freguesia de Nossa Senhora da Penha é uma antiga fotografia em preto e branco datada de 1949 quando a população se reuniu para o “Centenário”. Naquele ano a festa teve início ainda durante o dia e se estendeu até o comecinho da noite. Agora não! Tudo ocorreria no espaço de três horas, onde uma celebração “vaticânica” tomaria a praça em frente à Matriz.

Como na época era fotógrafo fiquei interessadíssimo em registrar o evento. Quem sabe teria uma fotografia escolhida como símbolo do evento e que pudesse subsistir por mais uns cinqüenta anos?! Cheguei no ápice do evento. Gente pra todo lado, sendo muito difícil andar. No altar montado à Praça um sem número de Padres e Coroinhas lotavam o tablado. A noite estava clara e agradável. Munido com minha monoreflex tinha tudo para me fazer. Todas as atenções estavam voltadas para o “palco” principal e vi a oportunidade de tirar umas belas imagens a apartir das janelas frontais da Igreja. Atravessei o mar de gente com alguma dificuldade e adentrei na Matriz praticamente vazia. A cantoria enchia o local como se o mesmo fosse uma caixa de ressonância e distribuía um som fantasmagórico por todos os lados. Segui para a Torre esquerda onde uma escada levava-nos ao balcão. De lá teria acesso às janelas. Subi sem esforço pois me aproveitei de minha juventude a época. Tão logo debrucei-me, projetando a máquina fora pra captar o maior ângulo possível, percebi que uma multidão voltou-se para mim. Se não fosse o barulho do som (muito alto naqueles cânticos católicos) teria sido capaz de ouvir o barulho de uns quinze mil pescoços virando pro meu lado quase simultaneamente. Ao primeiro flash notei que era uma peça extremamente indiscreta naquele local. Mas fazer o quê? Teria o excelente argumento de que era fotógrafo oficial do evento? Ninguém duvidaria e até que tirassem a prova seria tarde.

Acontece que acabei dando idéia para quase vinte fotógrafos que estavam lá embaixo. Em pouco tempo as antigas escadas de madeira da torre estavam congestionadas com tantos curiosos. Todos querendo um ângulo privilegiado. Meu sossego acabara. As três janelas estavam disputadíssimas e não havia cristão que conseguisse uma foto tranqüila.

Mas também meus planos haviam fracassado. Cada uma das quinze pessoas ali sairia como cópias das fotos. O mesmo ângulo retratado. Não haveria como distinguir uma imagem da outra. Não haveria porque minha foto ser escolhida como a imagem do evento. Assim o que eu poderia fazer era sair dali...

Quando estava de passagem pelas escadas, descendo do balcão. O sino tocou. Era o ofertório. O som era denso ali no miolo da torre e ao olhar pra cima tive uma idéia brilhante e terrível ao mesmo tempo. A partir do piso do balcão um novo lance de escadas de madeira seguia até o alto da torre. Confesso que não era uma escada convidativa, mas acreditava que meus cinqüenta e cinco quilos passariam por ela. Aproveitei o silêncio dos sinos e a distração dos fotógrafos e segui minha empreitada. Subir dez metros na escuridão. A escada era tão íngreme e oscilava tanto com meu peso que subia mais que lentamente e me apoiava usando pés e mãos. Depois de infinitos minutos estava eu uns dois metros abaixo do maior sino, justamente aquele que balançava para badalar. Se ele tocasse naquele instante ficaria surdo por dias. Por sorte ele somente viria a tocar após eu estar na praça novamente. Quando ultrapassei o último lance já podia ser atingido pelas luzes das ruas. Estava a mesma altura dos sinos. Dali somente precisei passar pela janela lateral que dava acesso ao telhado da Igreja. Sai da torre e pisando com muito cuidado cheguei a borda da frente da Igreja a uns quinze metros do chão. Quando pude olhar o mundo lá embaixo fiquei maravilhado. Era alto, seguro. Tinha uma visão privilegiada. A Praça cabia na objetiva. As fotos seriam únicas, exclusivas. Quem chegaria até ali? Mais ninguém. Era só ajustar a máquina tirar umas seis fotos e pronto sair dali.

Mas no momento em que fui ajustar a máquina, notei que aquele esforço me deixou com muito calor e suado. Minha testa pingava e quando passei a mão no rosto percebi que estava coberto de poeira. Claro, estava pegando nos degraus enquanto subia. Além do que eles oscilavam aquele movimento contribuiu para sujar-me inteiro. Passei uma mão na outra tentando melhorar o estado delas. E aquele gesto foi fatal. Ali acabara de lançar no ar milhões de esporos de fungos ancestrais. Alguns deles talvez até participantes da festa do “Centenário”. Boa parte deles foi direto para meu nariz. Mas não percebi isso naquele exato momento. Ainda tinha uns trinta segundos. Tirei a proteção da objetiva, ajustei a abertura e velocidade. Estava procurando o melhor enquadramento quando espirrei. Distraí-me e recomecei. Um novo espirro. Meus olhos embaçaram com lágrimas. Outro espirro e mais outro e outro. A coisa desenvolveu-se para algo incontrolável. Meu destino era encontrar o caminho de volta. E teria que passar novamente pela escada. E em descida o que era bem pior. Mas tinha que ir. Mal mantinha os olhos abertos espirrando. Peguei na escada. A testa pingando, o nariz também. Nem sei como desci tão rápido. Estava preto de poeira. Tão logo estava de volta a calçada corri em direção a minha casa. Era insuportável a sensação de arranhado na garganta. A tosse os espirros. Tinha que tomar um banho e mudar aquela roupa. Ainda teria que retornar para conseguir a foto.

Quando adentrei em casa minhas costas foram iluminadas pelos fogos de artifício lá da Matriz. Era o fim da festa. Ainda pude ver brevemente a luz avermelhada de uma imensa esfera que tomou o espaço.