O ESPALHA BRASAS - VIII PARTE

ESPALHA BRASAS

Ao outro dia, Julieta haveria de se decidir, afrontando todos os frustrados impulsos, para dar parte aos patrões e a D. Felícia, da decisão inabalável.

Ao chegar ao trabalho de manhã e incapaz de guardar segredo que horas mais tarde cairia como uma bomba, por inesperada, falou ao chefe de cozinha, Sr. Sousa, sobre o seu futuro.

- Sr. Sousa, hoje…

- Hoje, o quê, Julieta?

- Quer saber?

- Algo assim importante? Se achas que te mereço confiança…

- Antes de mais, peço-lhe que guarde segredo do que lhe vou dizer.

- Sou um defunto…continua, continua…

- Hoje vou anunciar ao Sr. Franklim, D. Cidália e D. Felícia, a minha decisão irreversível de me despedir e…

- O que estou a ouvir, Julieta? Que passou pela tua cabeça?

- Você, é talvez a pessoa que melhor me conhece…e fico-me por aqui.

- Percebo onde queres chegar…Eu já adivinhava que não irias aguentar…Já ando cá há muitos anos e na minha juventude, trilhei os caminhos da paixão não correspondida, vendo cair a mulher dos meus sonhos, nos braços do meu melhor amigo. Foi uma tortura vivida durante anos e de que ainda guardo boa memória, mesmo decorridos mais de quarenta. A paixão não é coisa vã e jamais se apagará em definitivo. Compreendo-te…

- Na verdade, fiz um grande esforço para me enganar e enganar D. Felícia e muito especialmente D. Cidália, pessoa de quem guardo as melhores referências e que não pode ser vítima do meu insucesso amoroso. Contudo, Sr. Sousa, não será este o motivo que levarei até eles, para justificar o meu despedimento.

- Pois não. Esse nunca…

- Não sou dada a hipocrisias mas, também não poderei abrir-lhes o coração e dizer-lhes toda a verdade. Esta, só você a sabe e …

- E?

- E Franklim, por razões óbvias…

- E o que vais dizer e como dizer? O que pensas fazer, quando saíres daqui? Tens de ponderar tudo isto, muito bem. Olha que a vida, é difícil de escalar mas, fácil a queda…

- O meu argumento para o despedimento, é de que me quero estabelecer e tentar a minha sorte, abrindo um restaurante numa zona litoral.

- Como argumento, é óptimo. Quem sabe, tu não venhas a ser afortunada na escolha… por vezes há males que vêm por bem…e mais, por mim faço votos sinceros que o adágio popular se cumpra: azar no amor, sorte ao dinheiro ou, quem muda, Deus ajuda.

- Mesmo que os motivos da minha retirada, não fossem os que assolaram o coração, creio que mais tarde ou mais cedo, iria tentar a minha sorte no mundo empresarial e neste ramo da indústria.

- Reconheci sempre em ti, capacidades que eu nunca tive, nomeadamente: coragem, ambição e aventura. Eu acomodei-me ao ramerrão e agora, também não acalento qualquer ambição. Tenho sessenta e cinco anos feitos e isso diz tudo…

- A si, também lhe agradeço do mais fundo do meu coração, toda a amizade e apreço que sempre senti da sua parte. O Sr. Sousa, foi para mim uma boa referência e um grande mestre, que me ajudou a ser a cozinheira, que hoje sou.

- Ora... limitei-me a passar-te, o que me foi ensinado. Ninguém é dono do conhecimento. Este, deve estar ao serviço da comunidade e lembra-te que, tudo o que temos e sabemos, fica deste lado do mundo. Para o Além, vai o corpo vazio de saber e bens materiais. Só a memória dele ficará e se perpetuará, se em vida tivermos conduta recta e nobreza de sentimentos. Quanto ao resto, são futilidades… por isso, de que serve o egoísmo? Acho-o até, um sinal de falta de inteligência…

Após esta conversa, em que o paternalismo de Sousa, promovido por Julieta e discretamente aceite pelo chefe de cozinha, não foi mais do que um acostumado conselho, na senda dos muitos que o bom senso e saber feito de experiências de vida simples, Sousa transmitia a Julieta.

A jovem cozinheira, programaria para a hora do lanche a divulgação do seu propósito. Antes, anseia por se encontrar com Franklim a sós, para lhe anunciar o seu desejo de rescisão de contrato laboral. Com esse fim, tem deambulado mais que o habitual fora do espaço da cozinha, ora para o encontrar, ora por o seu estado de espírito e ansiedade lhe darem intranquilidade.

Num desses momentos, é surpreendida por Franklim, que a interpelaria:

- Olá Julieta.

- Bom dia Frank. Ainda bem que te vi... A tua mulher?

- Porquê? Queres-lhe falar?

- Não, é que…

- Então?

- Quero ter uma conversa rápida contigo mas, não quero que ela se aperceba.

- Está descansada, ela ficou pela cama mais um pouco. Anda com a mania das leituras e talvez só se levante daqui a uma hora…Está a ler um romance chamado: “A Rosa do Adro”, de um autor quase desconhecido, chamado Manuel Maria Rodrigues e que foi levado ao cinema há muito tempo. – Á parte isso, o que me queres dizer?

- Olha Franklim, a nossa relação afectiva está a ganhar contornos cada vez mais acentuados e poderá até caminhar para uma situação incontrolada e do que me foi dado aperceber, Cidália nada sabe mas, a tua mãe… sinto-a desconfiada.

- Verdade. Minha mãe é extremamente intuitiva e tem da vida muitas lições retiradas, e por isso…Também já dei conta que ela nos traz vigiados. Tenho-me recatado. Melhor direi, temo-nos recatado. Mas, onde queres chegar com a tua conversa?

- Muito simples. Para que a minha honra e tua, não saia beliscada, decidi despedir-me. Os contornos exactos da decisão, abordá-los-íamos mais logo, à hora do lanche. Agora te peço. Esta conversa tida entre nós, é como não tivesse existido.

- Despedires-te! Estás certa do que estás a dizer? Não haverá leviandade da tua parte? Que diabo…não seremos capazes de domar a mente e …

- É desse “e” que tenho receio de não sermos capazes de…

- De?

- De refrearmos os ímpetos de desejo teu e da paixão e amor que te tenho.

- Muito sinceramente, isto me parece tudo tão surreal…

- Será, mas…a verdade é que também vejo muito surrealismo na hipotética ligação a três. Não te parece?

- Tens razão. Uma vez mais conseguiste revelar inteligência e maturidade. É nestas pequenas grandes coisas que o meu apreço por ti, cada vez mais se cimenta e sedimenta. Agora perceberás, porque não te quero perder como minha colaboradora.

- Percebo, percebo tudo mas…em nome da paz interior, da nossa paz interior, da minha e da tua, acho que não nos restará melhor alternativa do que aquela que te sugeri.

- Lamento. Lamento muito, mas se há destino e eu não sei se há, parece que se quer cumprir aquilo em que nunca acreditei. DESTINO…

Em fundo, pareceu ouvir-se passos, não se sabendo ao certo se de D. Felícia ou de Cidália. O certo, é que a desmobilização apressada dos dois aconteceu, deixando perceber que teriam ficado algumas coisas mais, por dizer.

Julieta, regressaria precipitadamente à cozinha e o Sr. Sousa notaria nela, ar preocupado. Não a questionou, aguardando que se houver matéria para desfiar confissão ou sugerir conselho, Julieta o faria desinibidamente. Quanto a Franklim, o disfarce é menos bem conseguido e o seu nervosismo é em regra notado pela inquietação geral.

Em fundo, D. Felícia percepcionou que havia um diálogo entre o filho e Julieta, sem contudo ter apanhado o assunto tratado. A sua desconfiança fá-la adivinhar que se eles se separaram ao ciciar dos seus passos, algo estaria a ser falado que ela não pudesse ouvir. Este caso, ajudaria a confirmar toda a desconfiança que impende sobre eles e nesta conformidade, a vigilância cada vez ganha foros de maior empenhamento. A si mesmo, imporá a estratégia do silêncio e da discrição, qual policia de investigação criminal. Sabe, que esta será a melhor maneira de poder chegar ao deslindar da trama urdida pelos dois corações.

Julieta é psicologicamente muito forte e sabe como lidar em situações de adversidade emocional, outro tanto não se poderá dizer de Franklim, o elo mais fraco desta corrente afectiva.

A hora do lanche decorre invariavelmente entre as 17. 00 e as 17.15 horas. Também, invariavelmente ao lanche se reúnem D. Felícia, Cidália e quase sempre, a companhia de Julieta. Desta vez, um protagonista se junta: Franklim, que mereceu positivamente reparo da mulher:

- Até que enfim marido…há sempre uma primeira vez e tu, não quiseste deixar que a regra se cumprisse…

- Nem eu sei explicar, mas…aconteceu e agora, até pode ser que fique a gostar. Como sabes, não tenho hábito de lanchar.

- Fizeste bem, penso que Julieta também goste de te ver aqui, não é? Esta meia horinha é muito agradável e serve para pôr conversas em dia. Futilidades, como sempre. Coisas de mulher…

Ao ouvir estas considerações, Julieta sentiu vontade de intervir, mas achou melhor protelar para o fim do lanche com o objectivo de o não prejudicar na degustação. Aliás, o tempo e o modo será Julieta a defini-lo.

A inusitada presença de Franklim, deixou de sobreaviso a mãe, que a relaciona com os factos percepcionados de manhã. A sua atenção e participação no que vier a seguir, terá em conta o que ela sabe ou julga saber.

As conversas havidas durante o lanche, levariam um encaminhamento que Julieta aproveitaria para introduzir o assunto que a traz ansiosa. Sendo uma mulher determinada, abordaria sem rodeios o tema que, embora ingrato, foi taxativo na explanação:

- Minhas senhoras e Franklim, é com profunda tristeza que vos anuncio a minha vontade de me estabelecer. Estou com vinte e quatro anos e transporto dentro de mim essa ambição. Estes anos passados aqui foram os melhores da minha vida, desde o companheirismo e profissionalismo do Sr. Sousa, a quem estou grata por tudo o que me ensinou, até à amizade e simpatia que de todos vocês recebi. Permitam-te destacar neste particular D. Cidália, um exemplo acabado de pessoa de bem.

Findas estas palavras, um pranto irrompeu nas duas jovens, perante o estatismo de mãe e filho que se olharam mutuamente, tendo ambos baixado os olhos enquanto aguardavam outra compostura das pesarosas Julieta e Cidália. A convulsão do choro parecia não ter fim e D. Felícia resolveu atalhar:

- Que é isso? Agora ficam as duas a aí a carpir indefinidamente! Eu sabia que mais tarde ou mais cedo isto poderia acontecer…Claro que Julieta também tem uma vida pela frente. Certamente quererá casar-se e alçar voo. É compreensível e legítima a sua ambição. Por mim aceito-lhe esse desejo e não me merece qualquer reparo. Enquanto fez gosto de estar connosco, nós retribuímos-lhe com afecto, simpatia e amizade. Aliás, de nada, nem de nós, deve ter queixa…

Perante estas palavras mais austeras de D. Felícia, as jovens susteriam o choro e Cidália faria as suas considerações.

- Na verdade, a mim, direi, a nenhum de nós assiste o direito de travar ou impedir a tua ambição. É tão legítima quanto a vontade de te ver continuar entre nós. Apesar de nos conhecermos há pouco mais de um ano, percebi rapidamente que estava diante de uma mulher invejável, que junta diversos atributos na mesma pessoa, tais como: Carácter, competência, inteligência, diligência e outras.

- Obrigado. Não sou nada disso, a essa dimensão, embora reconheça em mim, pequenos méritos.

- Modéstia a menos, é prejudicial Julieta. – Não sejas assim. O mérito que sabes ter, deverás assumi-lo sem constrangimentos. Ah, e voltando ao tema, lembro-te que para te estabeleceres é preciso dinheiro, muito dinheiro e quero lembrar-te que dentro do possível, julgo que não terei oposição de Franklim, poderás contar connosco. Já terás com certeza ideias definidas e localização para te estabeleceres ou estou errada?

- Já tenho ideias, claro, e para ser franca, é meu desejo fixar-me numa região litoral. Talvez Póvoa de Varzim ou Espinho. Não sei… É meu dever não rivalizar com o Espalha Brasas o espaço por este construído, com mérito.

- Em cada intervenção tua, nota-se uma maturidade que me faz, direi, que nos faz sentir por ti um apreço que uma vez mais quero registar e lembrar-te que, a tua saída da nossa casa só se fará por respeito à tua pessoa e não por vontade própria de qualquer um de nós.

- O anúncio que fiz não será para levar por diante de imediato. Aliás, quero tranquilizar-vos de que será um processo que respeitará a minha substituição atempada. Por falar em substituição, se vocês tiverem alguma dificuldade em prover o lugar, eu conheço um cozinheiro experimentado com bons desempenhos em unidades hoteleiras de Lisboa e que agora regressou definitivamente à terra.

Ao ouvir esta achega, Franklim daria especial atenção e quis saber “coisas” sobre esse cozinheiro.

Informalmente, Julieta falou-lhe que se trata de um indivíduo casado com uma filha do Sr. António Maria, uma tal Filomena que havia ido para Lisboa em pequena e que agora regressaria à terra por via da aposentação, para cuidar do pai. Do marido, disse saber que tem larga experiência hoteleira e não adiantou mais nada para se não comprometer.

A dica sugerida por Julieta, haveria de ser aproveitada por Franklim, que em devida oportunidade interpelaria o recém regressado cozinheiro, de nome Abílio, sobre eventualidade do mesmo poder preencher a vaga criada pela futura saída de July, como o patrão a tratava ultimamente e de modo carinhoso.

O aproximar inexorável do distanciamento físico de patrão e empregada, fez nascer entre eles um sentimento exacerbado de afecto, sendo a nova forma de tratamento, testemunha disso mesmo. No passado, sempre se dirigiram com tratamento do nome próprio e só muito excepcionalmente alguma vez Julieta o terá tratado por Frank. Agora virou regra e ele retribuiria, tratando-a de July. Este novo tratamento mereceria a indiferença de D. Felícia e a atenção de Cidália. Aliás, esta viria a adoptar o mesmo tratamento afectivo para com Julieta e jamais veria da parte do marido qualquer relação entre a nova forma e a ligação do esposo à cozinheira. Nunca Cidália se questionou sobre a relação que já se faz entre eles, desde tenra idade e muito menos exerce desconfiança. Este capital de familiaridade é tido e aceite como normal. Jamais, no passado ou presente, se questionaria sobre a perigosidade de uma ligação com matriz na puerilidade. Para Cidália, nada de anormal existe na relação.

Outro tanto, não é a opinião de D. Felícia, que continua vigilante, observadora e avaliadora da evolução da ligação germinada nos dois corações. A si mesma, promete guardar sigilo do que vir, para não afectar a paz de espírito da sua adorada nora. A experiência de vida, diz-lhe que este tipo de ligações têm de ser tratadas com acuidade, responsabilidade e sensibilidade particulares, porque, no seu entender, acha que melhor que matar um casamento, será mantê-lo vivo e resguardado da infidelidade.

As pessoas a quem mais quer: filho e nora, no dizer dela, jamais poderão ser vítimas da sua inconfidencialidade e de tudo o que vir ou souber, promete levar consigo para a cova, na certeza de não ter desfeito um casamento, que vive exteriormente num mar de amor, onde nem as tempestades do dia-a-dia ocupam lugar.

O certo, é que Julieta congrega paixões de diferente natureza, ora de Franklim, ora de Cidália e este triângulo, cujo vértice assenta na jovem cozinheira, está a ser sustentado na base pela confiança de marido e mulher, agilizada por Franklim e aprovada por Cidália.

O imbróglio em que se acha metido Frank, tem sido gerido longe da suspeição à custa da inteligência de Julieta, que soube controlar os sentidos mais primários, de contrário, o seu casamento já se teria inflamado, qual tocha, com a presunção de que os três teriam ficado a perder e quiçá, o negócio. Sobrelevar os valores da paz, da amizade e do amor tripartido não tem sido fácil e só uma mente superior e amadurecida e contida, como a de Julieta, tem conseguido esconder a sua própria hipocrisia e a de Franklin, nunca nela existindo em fundo a sede de usurpação ou conquista para o seu lado, do homem da sua vida. Pretende coexistir no coração de Franklim e colher dele, tudo o que não desmorone o seu casamento. Estes limites, que até hoje Julieta tem conseguido e sabido balizar, são uma incógnita que o tempo se encarregará de esclarecer.