O Dinheiro da Velhinha Cega

Ainda teria tempo até o início do seminário. Então me levantei em meio aquela irritante impessoalidade dos quartos de hotel. Desci rapidinho aproveitando o café da manhã de cortesia. Demorei um longo tempo procurando alguma iguaria diferente. Não estava disposto a comer tapioca ou pão francês. Estava em busca de algo diferente, alguma novidade da região. Contentei-me então com suco de laranja e pão de queijo. Que grande novidade! Retornei ao quarto no décimo primeiro andar. Mesmo tão alto a visão que eu tinha da cidade não era tão boa. Nada de ver o mar. Apenas um bairro muito refinado em contraste com a pobreza extrema. Decidi então vestir uma roupa mais casual. Numa cidade diferente, onde tinha pouco conhecimento, não estava disposto a ser um farol chamando a atenção das pessoas. Assim, com uma roupa mais “comum” bastaria eu ficar calado para que ninguém ouvisse meu sotaque e pronto!

Desci para o saguão e entreguei a chave do quarto a uma recepcionista aparentemente antipática e meio ausente. Quando saí, uma multidão de taxistas veio me abordar. Só porque você se instala em um Hotel cinco estrelas não significa que se tenha dinheiro. Mas eles não sabiam disso e pude curtir o fato de “esnobar” o taxi. No dia anterior havia reparado nas linhas de ônibus que passavam na Avenida em que ficava o hotel e não estava em um pouco temeroso em me aventurar numa cidade desconhecida. Ora, tinha que aproveitar as poucas horas livres para fazer algum turismo. Na parada de ônibus aguardei pouco mais de dez minutos para que um ônibus que eu suponha ser o ideal viesse. Dei sinal e subi extremamente confiante. A passagem custava R$ 2,00. Consegui um lugar à janela e fui admirando o mundo. O contraste entre minha expressão e as dos demais passageiros era tão evidente que chamava a atenção. Enquanto todo mundo dormia, mostrava uma cara de desânimo, eu estava ligado olhando para os lados. Realmente naquela circunstância estava difícil não parecer “estrangeiro”. As largas avenidas contribuíam para me dar uma larga visada. O trânsito congestionado me oferecia tempo para observar desde pessoas passando pelas árvores. Grandes construções faziam contraponto com casebres. O perfeito asfalto era manchado pelo lixo. O sol era brilhante mas a temperatura não era alta. Não deixei de olhar os ônibus que vinham na mão contrária, avaliando como seria meu retorno. Calculando quanto tempo estava no percurso para saber quando deveria parar e retornar. Estava disposto a ficar no ônibus até o mesmo completar o circuito, mas uma loja chamou tanto minha atenção que fui “obrigado” a descer. Era uma ampla loja de aeromodelismo. Sou fã de aeromodelismo, simuladores de vôo e adjacências. Na verdade quando citei loja estava exagerando para menos. Aquilo era um empório, um armazém... Um Shopping. Tudo de tudo eu podia ver lá. Carcaças, motores, manuais, fotografias. DVD’s informativos, cursos interativos... Tudo! Fiquei longamente naquela loja. Comprei tintas e pincéis, esquemas de pinturas para aviões em miniaturas, um manual em português do Flight Simulator... Já estava lotado de sacolinhas quando sai de lá. Bem ao lado existia uma grande loja de departamentos. Estava com fome e resolvi fazer um lanche, um quase almoço. Não iria almoçar no hotel (muito caro). E ainda poderia comprar alguma besteira para comer depois. Iria ficar ocupado a tarde inteira e não sabia se teríamos algum tipo de refeição. Entrei rápido porque julgava estar sem muito tempo. Fui até a lanchonete, pedi um lote de alimentos industrializados e pausterizados. Quando procurei o cartão plástico para efetuar o pagamento... Puxa! Não estava na minha carteira! R$ 6,70 de lanche. Débito seria uma ótima pedida. O cartão desaparecera. Afinal ele estivera comigo? Abri as sacolas de bugigangas que estavam sobre a cadeira ao meu lado. Procurei pelas notas de compra. Pagamento em dinheiro! Afinal eu não tinha usado o cartão plástico. Droga! Perdi o cartão? Onde estaria? Sempre que tenho esta sensação de que perdi alguma coisa, por menor e mais insignificante que seja, fico maluco. Claro que um cartão de plástico para crédito e débito não é necessariamente algo insignificante. R$ 6,70. Olhei novamente na carteira e vi que tinha o suficiente para pagar. Quase somente o necessário. Sorri para a menina do caixa, mesmo sentindo uma dor no peito por estar entregando para ela o dinheiro do ônibus também. Ela sorriu de forma simpática e me devolveu R$ 0,30. Isto mesmo! Trinta centavos era o que eu possuía para retornar.

Meu Deus! Eu havia gasto mais de trinta reais com meu capricho por aviões. Devolver! Vou devolver estas coisas.

Inútil! Já havia aberto os pacotes, as caixinhas e os plásticos que envolviam os manuais.

Puxa! Quando me dei conta já estava de volta à calçada. O tempo estava bem mais quente. Aquela “magia” do turismo estava agora menos evidente. Só se eu bancasse o andarilho. Como fiquei por uns trinta minutos no ônibus eu deveria andar de volta por duas horas ou mais. Ainda sem ter certeza do caminho de volta.

Eu poderia pegar um táxi e pagar quando chegasse ao hotel... Mas não tinha certeza se o cartão estaria lá. Ir ao Banco não adiantaria, o feriado me amarrou. Atravessei a avenida. Aguardaria um ônibus de qualquer forma. Sei lá! Talvez eu subisse no ônibus e quando estivesse perto do hotel desceria correndo pela porta traseira. Não! Isso seria muito ridículo. Mas não tinha muita opção. Ah! Poderia pedir algum dinheiro a alguém até completar o dinheiro da passagem. Avistei uma parada de ônibus. Algumas pessoas estavam lá. Seria isso mesmo. Pediria algum dinheiro. Embora estivesse enormemente interessado em voltar ao hotel, aquele caminho até a parada me pareceu curto demais. Sob o abrigo estava um velho extremamente magro, usando paletó preto e gravata vinho. Sua cabeça careca parecia cheia de cascas, como que descamando. Sobre os ombros era possível ver uma camada generosa do que bem poderia ser caspa. Sentado ao seu lado, um garotinho segurando uma caixa de pastilhas de menta. Bem ao meu lado, estava uma velhinha de óculos escuros, provavelmente cega, sentada num banquinho. A sua frente, uma pequena bacia de alumínio com diversas moedas. Aguardei aparecer mais alguém. Estava aflito, as horas estavam passando, o sol esquentando e não tinha como voltar. Vários ônibus passaram e não tive coragem de embarcar em nenhum deles. A idéia de descer pela porta traseira era convidativa, mas o orgulho estava me maltratando demais. Aproximei-me do velho e comecei a falar: - É... senhor...? Sabe... Eu fui assaltado... É... Não... Na verdade eu gastei o dinheiro... É... Eu to precisando de R$ 1,70 pra pegar o ônibus e voltar pra casa... – Iniciei com esforço mas depois já estava mais confiante. Ele olhou pra mim, levantou um canto do bigode. – Eu não tenho nada pra dar pra ninguém. – Fiquei desolado. Envergonhado, olhei para o menino. Ele falou: - Não olhe pra mim não. – E riu. Levantou-se e saiu da parada. Cansado, resolvi sentar. O pior que a cada minuto que passava ficava mais quente, mas perto do seminário, voltava a fome e as coisa não melhoravam. Ninguém mais apareceu. Fiquei por minutos calado, olhando as sacolas e detestando as compras. O velho depois de um tempo balbuciou algumas coisas e saiu andando todo de preto no meio daquele calorzão. Ficamos eu e a velha. Isso! Olhei meio que disfarçadamente para a velha. Ela estava imóvel o tempo todo. Devia estar dormindo. Pelo canto dos óculos eu podia ver fundas cavidades que pareciam não abrigar olhos. Com a cabeça para trás e boca entreaberta, mostrava fragilidade e paz. A pequena bacia estava bem sortida de moedas. Não podia contar exatamente, mas tinha mais de 1,70. Até mesmo uma cédula de um real estava lá. Era uma pedinte. Era a pessoa mais rica do mundo! Era dinheiro fácil para mim. Resolvi olhar para adiante, na Avenida. Como podia pensar em tirar dinheiro daquela cega e não tinha me disposto a descer pela porta traseira de um ônibus. Tirar dinheiro da bacia era roubo, descer do ônibus sem pagar era... Mais aceitável. Devia ser mais de onze da manhã.

Uma olhada a mais e tinha certeza que eram quase oito reais que a velhinha tinha. Eu poderia pegar o dinheiro, iria até o hotel, voltaria com dinheiro suficiente para compensá-la.

Senti-me um verdadeiro peru, fazendo roda. Aproximava e distanciava. Andava, revirava os olhos. Sacudia as sacolas. Mais ônibus passavam e nada.

Foi mais de uma hora de agonia. Desisti. Passei uma última vez diante da velha que dormia silenciosa e quase imóvel. Olhei para o dinheiro ali, evaporando naquele calor todo. Apressei o passo quando senti o peso da luz do sol. Estava já distante uns dez metros da parada quando escuto: - Hei? Rapaz? – Olho pra trás e vejo que era a velha quem havia falado comigo. Se ela tivesse olhos por trás daqueles óculos diria que ela estava me encarando. Parei de andar e voltei lentamente. Desconfiado.- É muito longe onde você vai. – Ela abriu um sorriso sem dentes, que me pareceu de certa forma até infantil. – Sim. É longe. Vou andar por duas horas ou mais. – Disse, já retomando o caminho. – Hei, Rapaz? Espere. – Ela disse com uma voz doce de avó. Erguendo um pouco o corpo da lateral do abrigo de ônibus ela esticou suas mãos ossudas e apanhou de dentro da bacia exatamente R$ 1,70. Estendeu a mão para mim. – Tome. Pegue seu ônibus! – Disse enquanto sorria. – Eu... Não sei o que dizer... Vai fazer falta pra senhora... – Não vai fazer falta. Já tenho tudo o que preciso. Tome. Você ainda precisará muito disso até descobrir que já tem tudo o que precisa. – Dessa vez ela falou num sério tom maternal. Recebi o dinheiro, sentia certa vergonha e certo prazer em ter podido ouvir aquilo. Agradeci sinceramente, mas mesmo assim segui andando por um tempo que não soube avaliar com precisão, até que apanhei um ônibus.