A VIÚVA INCONFORMADA - I PARTE

A Viúva Inconformada

Havia ficado viúva bem jovem, a bela morena. Quis o destino ou o sortilégio, mau sortilégio, que o desígnio de viver sofresse um corte irreparável.

O falecido, em vida havia sido a paixão de Felizbela e agora, a saudade maior que vivalma não gostaria de sentir. Dois anos se passaram desde aquele fatídico desenlace e de que a memória das coisas boas trocadas entre os dois esposos, jamais se olvidarão, em Felizbela. Da ligação palpável, sobraria o jovem Nico, diminutivo de Nicolau e que a mãe, orgulhosa, exibia para reforçar a ideia de que a morte não havia passado por casa. A viuvez nunca seria aceite como facto consumado e os rituais de vida continuariam dentro dos mesmos padrões. A aliança de um casamento de amor continuaria no dedo anelar, a cama com o seu lugar vazio tinha a travesseira para o morto se deitar, à mesa não faltava o prato e respectivo talher. As conversas continuavam partilhadas e chegava a pedir e a receber conselhos do querido morto. A morte não entraria em casa e o morto apenas havia feito uma viagem, onde aguardaria os “próximos” para o abraço da saudade.

Os sonhos aconteciam vertiginosamente e os projectos de vida continuavam a buscar realização. Nada havia mudado. Quando um dia lhe falaram do marido e disseram, referindo-se a ele: teu falecido marido…responderia não haver falecidos, só presentes e ausentes. Gostava de se enganar. Reforçava-lhe a vontade de superar e viver e dizia muitas vezes: no cemitério só está o caixão, o morto está vivo e de tão vivo, tudo o que faço, tenho-o em consideração.

Felizbela superava-se e só ao fim de ano e meio de viuvez, começaria a questionar-se sobre o engano em que estava a viver. Perguntava-se se valeria a pena não assumir a viuvez na plenitude. O coração jovem e vibrante não queria resignar-se à realidade e o vazio que a solidão lhe passava passaria a ser a próxima dificuldade a vencer. Tiago, o bom morto não a quereria ver infeliz e triste. Pudesse ele, segundo ela, dar-lhe-ia conselho para se organizar ou reorganizar. Pensa mesmo, que se voltasse a ser feliz o homenagearia de modo superior. Este juízo poderá estar a mudar a sua vida, quiçá o primeiro de outros que questionará sobre a sua solidão, carência ou afectos.

Doravante, para ela o morto está bem morto e nada mais restará, que a memória das coisas boas e saudade. Assim, o seu coração parece querer abrir-se, qual corola floral em tempo de Inverno, timidamente à luz de um sol parco de brilho e energia. Vontade de ser feliz e insegurança compartilham o mesmo espaço, com vantagem para aquela.

Um dia, conheceria um homem com o qual havia trocado conversa durante uma viagem de comboio. Das palavras dele, sentiria fascínio, que vinha de exposição convincente, verbalizada por sentimentos nobres que lhe prenderiam a atenção. À medida que a conversa divagava, a confiança aumentava-lhe a disponibilidade para se abrir e falar de si e da sua solidão.

Rodrigo dar-lhe-ia redobrada atenção e perceberia que a sua hora de falar, daria lugar à escuta. O fascínio de Felizbela acentuava-se desmesuradamente pelo homem que em frente a si, lhe proporcionava uma oportunidade nunca antes tida. Diante de si estava um homem que além de saber falar, sabia ouvir e ainda dava dicas para suprir a ausência e solidão até aí vivida. Do fascínio à sedução seria um passo. O homem que a escutava havia-a marcado definitivamente e na hora da despedida trocariam números de telemóvel, reforçando-lhe disponibilidade para continuarem a conversar despretensiosamente. A estação do amigo circunstancial apeava-o e cortar-lhe-ia a felicidade, que espontaneamente nasceria no coração de Felizbela, qual semente lançada ao vento na incerteza de germinar. Poderiam nunca mais se verem, mas o telemóvel permitiria continuar a conversa iniciada. A felicidade da jovem viúva agarrava-se a este moderno meio de comunicação e alimentava-lhe a esperança de continuar a ter um ouvido para a escutar.

Sobre o passageiro nascia-lhe involuntariamente uma panóplia de juízos, formulados na impressão que lhe havia deixado. Em cada um deles, uma auréola de magia. Num momento de reflexão esotérica, perguntava se o bom morto não seria o mensageiro de tão boa companhia para a aliviar da dor e da solidão. Queria acreditar e este querer crer, dava-lhe uma força, uma energia vinda da alma, que lhe alimentava o desejo de voltar a ser feliz. Esta convicção, assentava numa súplica feita a Deus, pela salvação da alma de Tiago e pela força pedida para vencer a solidão. Rodrigo poderá ser a resposta ao pedido, segundo ela e a sua fé.

Entretanto uma avalanche de questões que gostaria de pôr ao companheiro de viagem, esfumar-se-ia com o fim da mesma.

Quem é este homem que parecia feito à minha medida? Solteiro? Casado? Terá filhos? O que faz na vida? Estas questões ficariam sem resposta e a esperança de as ver respondidas residiam no contacto telefónico agendado para um futuro ainda sem data definida.

Rodrigo personificaria um ideal de homem com que havia sonhado, pós viuvez. Felizbela não mais voltaria a ser a mesma. A ficção daria lugar à realidade.

Numa altura não esperada, o telemóvel de Felizbela tocaria e o número aparecido no visor, identificava-o com Rodrigo. O coração da jovem aceleraria a ponto de querer-lhe rebentar com as paredes do peito.

- Alô, Felizbela?

- Sim, sim. Que saudades…

- Tudo bem?

- Óptimo. Agora melhor que nunca…

- Que bom. Tenho pensado muito em ti. Quis saber como têm sido os teus dias.

- Ah, meus dias não voltaram a ser iguais desde aquele dia em que nos conhecemos.

- Não? Porquê, posso saber?

- Sei lá…a tua companhia fez-me tanto bem, que nem sei explicar. Foste uma dádiva divina, numa hora e momento em que me achava em baixo. Estarei grata para sempre…

- Que bom saber que te fui útil. Poderás contar com a minha amizade. Para te ser franco, também me senti cativo da tua simpatia.

- Obrigado. Muito obrigado pelo prazer de te ter conhecido e pela disponibilidade para seres meu amigo. Era disso que estava a precisar e tu soubeste como ninguém, perceber-me. Vieste na hora certa.

- Minha querida amiga, o sentimento da amizade é algo tão nobre que não deverá fechar-se sobre nós. Ela só se valoriza se a espalharmos, se a dividirmos. Tu também tiveste o mérito de me saberes extorquir afectos.

- Será que nos voltaremos a encontrar? Eu, por mim adorava…

- Quem sabe…O futuro não está nas nossas mãos. Mas, eu tenho uma sugestão…

- Sim? Qual? Diz, diz…

- Tens Internet?

- Tenho.

- Então…

- Então o que?

- Instalas o MSN e poderemos usar esse meio para nos comunicarmos e consolidar a amizade.

- Sério? É fácil?

- Facílimo. Se não souberes, qualquer técnico de informática te instala. Verás que irás gostar. Parece tudo tão real…

- Ok. Irei providenciar. Quero conhecer essa realidade.

A sugestão de Rodrigo seria levada a termo e dois dias depois já esse poderoso meio de comunicação estava instalado. Disso daria parte através de uma mensagem para o telemóvel do amigo. Trocariam os seus endereços e adicioná-los-iam. A realidade virtual permitir-lhes-ia estarem mais próximos e Rodrigo, racionalmente, usaria esse poderoso meio para fazer chegar até Felizbela a solidariedade, a simpatia e o afecto de amigo. Tendo consciência da perigosidade que a net e particularmente o MSN poderia representar, Rodrigo apresentar-se-ia sempre com discurso cauteloso para não iludir a identificada carência da amiga.

O primeiro contacto MSN aconteceria e Felizbela confirmaria a semelhança com a realidade, ao amigo:

- Sem dúvida, que parece que estou a reviver a viagem no comboio! Tu tão pertinho de mim…! Que boa sugestão, Rodrigo... De ti, só poderia esperar qualquer coisa de bom…

- Verdade. Não sou teu amigo para te enganar. Nunca o faria.

- Que bom, ter um alguém em quem poder confiar. Tu tens muito a ver com o homem que aprecio. Teu carácter faz de ti um homem singular.

- Não, nada disso. O homem, que tu estás a ver é igual a tantos com quem tu te cruzas todos os dias. Não tem nada de especial. Apenas se disponibilizou para te ouvir e deixar-te desabafar as penas que a solidão de uma viuvez provoca.

- Tu és especial. Leio isso em ti. Ninguém escolhe qualquer pessoa para se abrir e depositar confiança. Foste escolhido por mérito.

- Ok. Se o dizes…não quero deixar de te agradecer a confiança depositada na minha pessoa. Para mim, esse sentimento é algo que valorizo e julgo não o vir a desiludir.

- Já sabes algo de mim. Eu de ti, ainda nada sei. Poderei saber um pouquinho? Diz o que achares poder e querer dizer. A minha curiosidade não vai além daquilo que queiras dizer. Acho um acto voluntário falar de ti. Não entendas a minha curiosidade como um questionário de trajecto e vida pessoal.

- Não tenho nada a esconder. Sou casado e pai de filhos. Talvez seja aquilo que mais curiosidade gostarias de ver satisfeito.

- Que pena! Ainda pensei que poderias ser solteiro, ou divorciado ou até viúvo…

- Que pena? Porquê? Ser casado? Eu sempre disse que era teu amigo, e não que poderia ser teu namorado. Um homem por ser casado fica sem possibilidade de fazer amizades?

- Não, não fica. Mas…, não sei como cheguei a pensar que eras disponível. Talvez, o meu desejo…

- Por certo. Mas, enganar-te, fazia-te feliz?

- Não, nunca. Seria o pior que me poderia acontecer. A esta hora estaria arrependida da confiança depositada em ti.

- Pois. Mais uma razão para continuar a ser como sou e do qual não me arrependo. Já afirmei que o que me traz até ti é um princípio que se estrutura na amizade. Eu não posso ir além dos meus limites.

- Compreendo. Então talvez nem faça sentido continuarmos a falar. Não sou uma mulher vulgar e como tal também não me quero ver mal interpretada.

- Por mim está à vontade. Reafirmo-te amizade e só isso. É tudo o que posso dar. Para mim seria fácil, muito fácil enganar-te e a esta hora estarias a ficar iludida com a tua sorte. Se te tivesse dito que era solteiro ou divorciado…estarias receptiva a dares liberdade ao teu coração carente. Em consciência não devo, não posso, não o farei.

- Isso mesmo. A tua vida já está traçada. Quem tem de procurar resolver a minha carência e solidão, sou eu e não tu, nem contigo. Mas ainda assim, não devo abdicar da tua boa companhia. Fazes-me bem. Não me sinto só e o teu jeito de me dares atenção, cativa-me. Se estiver na minha mão poder eternizar a tua amizade, fá-lo-ei. Já não me consigo ver sem a tua presença, no MSN. Ensinaste-me o caminho para a sedução…desculpa-me o atrevimento.

Mais logo despedir-se-iam, com promessa de se voltarem a encontrar. Definitivamente Felizbela se sentiria marcada pela amizade de Rodrigo e nele depositaria confiança, fidelidade, simpatia e lealdade. Aquele homem, doravante seria o fiel depositário das preocupações, desejos e aspirações e o centro e atracção de imanente paixão proibida. A cada dia, Felizbela se sentia mais e mais sedada. A consciência e a razão não a faziam recuar e nem aos alertas de Rodrigo para não tomar a árvore pela floresta, se fazia eco. Sem querer, todos os pensamentos iam na direcção do amigo, e nem o facto de se sentir assediada por um candidato ao seu coração carente, lhe desviava as atenções.

Artur Jorge, era um empresário de sucesso e que há longo tempo, mesmo em vida de Tiago, a admirava. A relação entre eles não se fazia de proximidade, embora quando em vez se encontrassem por força da amizade com dois irmãos de Felizbela. Seria num desses encontros que A. Jorge lhe dissera que gostaria de aprofundar amizade com ela, ou quiçá namorar. A jovem aceitaria alguns, os quais lhe dariam uma perspectiva da personalidade do candidato. Conquanto não se sentisse totalmente satisfeita com a impressão deixada, não quis ter para com ele uma postura indelicada, perante a insistência para iniciarem namoro. Respondia-lhe que ainda não havia feito o luto e que tivesse paciência para aguardar até que a maturação da saudade e esquecimento se fizesse no seu coração. Esta resposta evasiva estaria condicionada pelo novo amigo a quem não hesitaria um segundo, para aceitar namoro. Apesar de saber que Rodrigo era um homem casado, o seu imaginário ficcionava-o livre para amar, para desejar. Quando era tomada de exacerbada fantasia, pensamentos maquiavélicos ocorriam-lhe para satisfazer desejos. Estas ocorrências deixavam-na infeliz sempre que reflectia na fantasia que estava a construir. Achava injusto e pouco sério. Em consciência estava a faltar ao respeito a um amigo e a si própria. Decidiria dizer não, não à fantasia, não à mentira em que se via envolvida. Uma força vinda da alma levá-la-ia a enviar uma mensagem a Rodrigo, convocando-o para uma conversa no MSN.

- Rodrigo, tenho pensado muito na relação que criei em teu redor. Sinto-me enganada, não por ti, que sempre tiveste conduta séria e exemplar carácter, que sublinho, mas um engano de alma que só a mim imputo. Jamais poderei satisfazer desejos que a minha mente desenhou contigo. És um amor proibido. Tens a tua vida e embora não a equacionasses nunca, construí falsamente um idílio que me levaria à felicidade na tua companhia. Esse idílio não existe mais. Serei doravante a mulher que conheceste no comboio. Voltarei a ser mulher livre e só, como até àquele dia em que nos conhecemos. De ti guardarei eternamente tudo o que de bem me fizeste. Meu coração irá colocar uma lápide a recordar nossos momentos felizes, particularmente os que tu me proporcionaste.

- Que queres dizer com isso? Vais romper nossa amizade? A mim resta-me a consciência de sempre te alertar para a perigosidade de te deixares envolver, mais que o devido. Dizias-me, que bastava de te lembrar que era só amizade. Afinal, nem por tanto te lembrar…

- Sei que num momento em que a paixão me sufocava, irritava-me a palavra amizade. Eu queria mais, muito mais. Não me conformava em ser tua amiga e tu meu amigo. Agora, percebo o alcance das tuas palavras. Tua sensatez e seriedade ficaram provadas.

- Se queres aceitar um conselho meu, não vinculativo, dir-te-ei que entre as pessoas podem-se estabelecer relações de amor e amizade. O amor terás de o procurar num coração disponível para se entregar a ti, na amizade não precisarás de entregar o coração, mas a confiança. Eu de ti só reclamei confiança e essa, tu a depositaste na minha pessoa e por isso te estou imensamente grato.

- Sinceramente, senti-me conquistada por esse teu jeito sensato de falar, da tua exposição, da articulação de ideias, da inteligência e também do teu sorriso sedutor e maroto. Que fazer? Esquecer-te…e fingir que tu não existes.

Terminaria deste modo mais uma conversa, das muitas que se haviam iniciado há meses. Felizbela irá procurar esquecer o amigo, sem contudo saber se ficarão reminiscências de tão gratificantes momentos vividos. A si mesma pergunta: como foi possível criar a ideia de uma realidade, onde só o virtual existe? Como foi possível não ter percepcionado a ficção em que me vi envolvida? Apetece-me dizer: maldita Internet e maldito MSN. E eu a pensar que as outras pessoas que se deixavam envolver, o faziam por tolice. Também me acho tola. Agora vejo que a Internet nos faz criar a ideia de que as distâncias não existem e que o coração não é capaz de distinguir o perto do longe, o real do irreal. Lembro-me, dizia, que a minha avó contava que se correspondia com o namorado por cartas e que se havia apaixonado por ele. Certamente se ela tivesse vivido neste tempo, também não deixaria de se apaixonar, tanto mais que tudo é mais real, do que através de cartas, acrescentava.

A vontade de se ver livre de Rodrigo era muita, mas a força pouca. Percebeu isso quando teve um sonho avassalador com o amigo e que redigiria para o guardar como memorial.

Assim:

Estava a dormir, e senti uma pessoa sentar-se na beira da cama. Só poderia ser Tiago, meu falecido marido que num gesto de amor me quis visitar em viagem do Além. Chamei, Tiago, Tiago, e uma voz respondeu: Olá bela morena. Estranhei o tratamento. Tiago não me tratava desse modo. Quem seria então? Olhei, era Rodrigo, o amigo que eu queria esquecer. Perguntei: que estás aqui a fazer? Respondeste: venho-te trazer uma rosa negra para colocares no túmulo de Tiago e fazer-te ver que o teu marido não existe mais. Pertence ao passado. Como amigo sincero, aconselho-te que deverás olhar o futuro e encontrares uma saída para a tua solidão. Só um novo amor te fará feliz. Depois olhei-te, demos as mãos, as minhas estavam frias como o meu coração e disse-te: o amor que me fará esquecer definitivamente Tiago é o que tu e só tu me podes dar. Respondeste-me: só te posso dar amizade. Sou comprometido. Sei, sei que és comprometido, por isso pedirei a Deus para me esquecer de ti. Depois disse-te: deita-te aqui ao meu lado. Deitaste-te e conversamos até adormecermos. Despertei, e enquanto dormias profundamente, beijava-te com suavidade para que não acordasses. Foi então que Tiago me apareceu e disse: tu serás só minha.

O sonho terminaria com esta lapidar frase que o falecido pronunciaria à sua morte. O despertar, fá-la-ia verter um choro convulso sob o efeito de um sentimento de culpa para o qual ainda não encontrou explicação.

De Tiago, guardará infinita e boa memória, mas também a consciência de que a morte tudo lhe roubou, até mesmo a auto estima.