A VIÚVA INCONFORMADA - III PARTE

A Viúva Inconformada

Da conversa franca, aberta e sem constrangimentos tida com Ivone, Felizbela sairia reforçada na vontade de dar materialidade à relação com A. Jorge. Ao contrário do habitual, desta vez seria ela a convidar o namorado para uma saída pós dia de trabalho, seguida de jantar num restaurante panorâmico com vista para o mar. Na sua mente estava o desejo de se surpreender. Afinal, segundo ela, estaria a viver num equívoco. Este dia, pretendeu que fosse um marco na relação entre eles e para tanto programá-lo-ia metodicamente de modo a causar impacto no coração de A. Jorge. Pensaria tudo ao pormenor, desde uma prendinha, ainda que singela, a oferecer ao namorado, até ao menu a ser servido no restaurante. Pensaria também em si e na apresentação e aparência com que se iria apresentar. No trabalho pediria folga à última hora, alegando necessidade de tratar de assunto inadiável. Aproveitaria essa hora para passar no cabeleireiro e fazer lavagem e secagem do cabelo. Ao passar ao shopping entraria na loja de prendas para homem e compraria um cinto, um bonito cinto para oferecer ao namorado. De seguida iria a casa e vestir-se-ia com um vestido lindo que usava tão poucas vezes pelo prazer de não o ver banalizado aos olhos dos outros mas que para ela tinha um significado ímpar, pois havia sido o último que Tiago lhe oferecera, três meses antes de morrer.

A elegância do vestido tornava-a ainda mais apelativa e quando vestida, ainda se lembrava das palavras que Tiago lhe dirigia: “ com esse vestido tu não és mais Felizbela, mas a rainha do mundo, a mais bela mulher que Deus criou, a Eva dos novos tempos”. Felizbela adorava quando o marido lhe chamava:”Eva dos novos tempos”, associava-a a um amor sem limites, sem constrangimentos, puro, livre e estreme e que deseja ver retomado na sua segunda experiência afectiva.

O vestido da marca YSL do estilista Yves Saint Laurent, com recorte discreto no decote e ligeiramente à altura do joelho, na cor predominante preto com discretíssimos motivos estampados à mesma cor, fazia de Felizbela uma apetecível mulher. Ela sabia disso e certamente Artur Jorge iria corroborar em pensamento e palavras o que a namorada transparecia. Os sapatos de salto alto e a bolsa pretos, completariam o quadro. O perfume e a maquilhagem não foram ignorados, tendo sido aplicados discretamente de modo a enaltecer a beleza dos olhos e sorriso. Este, imagem de marca da jovem, caracterizava-se por ser rasgado, aberto, franco, pujante de energia. Dos olhos, sublinham-se a cor negra e o rímel nas pestanas acentuar-lhe-iam o encanto e sedução. O batom à cor labial enaltecia-lhe a boca e punha brilho no sorriso. Pequenos brincos e uma bonita gargantilha completariam o painel com que se iria apresentar ao namorado.

Antes de sair de casa remirou-se no espelho e sentir-se-ia a “Eva dos novos tempos”. Finalizado o ritual de cuidado da imagem enviaria uma mensagem para o telemóvel de A. Jorge, avisando-o de que estava pronta. Entretanto, um misto de nervosismo e ansiedade tomá-la-iam e só o vislumbre do carro de A. Jorge a fazer a aproximação, a libertaria e lhe conferia à-vontade. O desejado primeiro momento estaria prestes a consumar-se, e após estacionamento, o namorado sairia do carro e viria recebê-la junto ao passeio que dá acesso à casa e surpreender-se-ia com a apresentação cuidadíssima de Felizbela.

Constança, a anterior namorada de A. Jorge era uma mulher dada ao culto da imagem e sem excepção, fazia-o desde que se levantava até se deitar. Felizbela, pelo contrário, dava-lhe prazer preservar a imagem dos excessos e desmesurados cuidados que escravizam, trocando-a pela discrição. Prefere roupa informal à clássica. Este estilo, apenas em dia de especial atenção lhe merece reparo, como o dia de hoje e que haveria de deixar A. Jorge algo surpreendido.

- Mas que linda! Parabéns. Ainda não tinha visto esse vestido!

- Este vestido tem um significado muito grande para mim. Por isso, só o uso em momentos que considero especiais.

- Deduzo então, que este dia é especial, é isso?

- Sim, é…

- Porquê?

- O porquê, nem eu sei bem. Apenas sei que te queria surpreender e este dia ocorreu sem que eu saiba, o porquê. Talvez o crepúsculo matutino seja o responsável. O sol amanheceu lindo, cheio de brilho, céu sem nuvens, a profetizar um final de dia romântico. Não estás a gostar?

- Estou, e estou mais satisfeito por se tratar de uma agradável surpresa, com a qual hoje não contaria. Sabes como ninguém construir os caminhos da sedução.

- Sou uma mulher simples, mas hoje quis dar uma sapatada na minha fama de discreta. Acho que não me basta ser bonita como tu tantas vezes dizes, é preciso também reforçar a beleza, quando em vez.

Felizbela entraria no carro e A. Jorge obedeceria aos gostos da namorada, afinal, o dia é dela. À pergunta, até onde vamos, Felizbela responderia: fazer a marginal. Quero sentir o cheiro do mar, das algas, a maresia a ser sugada pelas narinas. Quero sentir e interiorizar a força das ondas, qual vaga de amor a invadir-me a alma. Quero sentir o domínio da natureza sobre o homem, quero vencer barreiras e obstáculos e invadir o teu coração. Quero enfim, ser a onda que te abraça, como o mar aos penedos que junto à costa recebem diariamente, noite e dia o abraço, o afago, o beijo num movimento impetuoso e que ao vazar como que acaricia a pele, o rosto, os lábios, o corpo, todo o corpo, com suavidade. Eu quero ser como essa onda, como essa onda que te submerge diariamente, qual penedo e que te fará sobreviver ainda mais feliz.

- Muito inspiradinha!!!

- Gostaste? Hoje deu-me para isso…Não sei o que se passou comigo …!!!

- Estou sem palavras!!! Como é gratificante ouvir da boca da minha mais que tudo, palavras tão lindas e tão prenunciadoras de um amor infinito.

No fim destas palavras, trocaram-se sonoros beijos. Este momento, quiçá o primeiro e mais avançado em ousadia, jamais será esquecido, olvidado ou ignorado no imaginário de Felizbela e marcará definitivamente a sua trajectória de mulher nos braços de A. Jorge.

Em momento algum, Rodrigo lhe apareceria em mente, tudo levando a crer que os passos do esquecimento se teriam iniciado firmes, determinados e irreversíveis. A fantasia daria lugar à realidade e aquele que parecia não fazer o seu género, passaria a ser o centro das suas melhores atenções.

Artur Jorge irradia felicidade para dar e vencer e o dia de hoje seria para ele definitivamente, o dia “D” de uma nova vida. A anterior ligação a uma mulher com quem vivera durante quinze anos e de quem ele gostava e cujo casamento se havia dissolvido por causas que não são do domínio público, mas que se suspeita enraizarem em perdas de confiança e ou de expectativas, fizeram-lhe aumentar estas, com a mulher que agora abraça. Felizbela fez-lhe construir um imaginário diferente, para melhor, mais realizado e comprazido, pleno e à sua medida. A. Jorge investirá tudo no amor e pelo amor. Acredita ser a melhor e talvez a última oportunidade que a vida lhe oferece para tornar o seu coração feliz, após a mágoa de uma separação mal digerida e mal compreendida.

Quer um, quer outro, têm memória viva das anteriores relações. Ele, expia mágoas vivas, ela, mágoas de saudade. No “terreno” em que viviam, comungavam de algumas semelhanças e a comum vontade de ultrapassar e vencer o passado de cada um, fá-los investir no esquecimento.

Este quadro psicológico potenciar-lhes-ia renovada vontade de amar e hoje Felizbela, daria um sinal claro, nunca antes tão expresso, de que está na trilha do amor.

Antes de se dirigirem ao restaurante para jantarem, fizeram um passeio vespertino a pé pela marginal atlântica num vaivém, trocando afectos e olhares insinuantes. Artur Jorge extasiava-se com a disponibilidade nunca vista pela parte da namorada e fazia-se crer um homem amado. Constança depressa cairia no esquecimento do empresário. A. Jorge viveria a separação com tristeza e ainda se pergunta porque ela o terá deixado. Aparentemente, não tem nada que o explique e a verdade é que a vizinhança também não achou ou lhe constou razões aceitáveis. Sabe-se que Constança se mantém livre e disponível para amar, conforme confessaria a uma colega íntima, que num momento de distracção deixaria cair o desabafo, em conversa no cabeleireiro. Artur Jorge amava-a incondicionalmente. Apreciava-lhe o bom gosto de vestir, os sentimentos, a organização e a inteligência. Constança também lhe apreciava alguns atributos, nomeadamente a perspicácia empresarial, contudo, em surdina lamentar-se-ia por ele dar mais ao trabalho que à vida familiar, apesar de reconhecer que o fazia por bem. O certo é que A. Jorge se realizava vendo crescer a sua empresa de moldes industriais, ainda que à custa de quinze horas de trabalho diário, em que até muitos fins-de-semana eram preenchidos. Não tiveram filhos ainda que em idade fértil. Constança nunca os desejou, talvez por egoísmo mas também e sobretudo porque achava que a vida a dois, obrigaria à disponibilidade de ambos para a educação dos mesmos. Constança nunca quis trabalhar na sua própria empresa para não se escravizar à qualidade de patroa. . Constança nunca os desejou, talvez por egoísmo mas também e sobretudo porque achava que a vida a dois, obrigaria à disponibilidade de ambos para a educação dos mesmos. Constança nunca quis trabalhar na sua própria empresa para não se escravizar à qualidade de patroa. Quando entraram em crise conjugal, fizeram psicoterapia de casal tendo melhorado os comportamentos e condutas, ainda que temporariamente. As várias sessões acabariam por se tornarem insuficientes e a vontade de Constança na separação condicionaria o sucesso da terapia. Esta vontade assentava num pressuposto indecifrável e que Constança guardaria apenas para si. O psicoterapeuta achava-se impotente face à pré decisão de Constança para a rotura. Se numa primeira fase, ela quis parecer ajudar à terapia, quando reflectia sobre achava que a solução para o problema seria insanável. Definitivamente, achou que não se deveria manter enganada e enfrentou a decisão sempre difícil da separação. A. Jorge, que sempre se julgou um homem de família, não perceberia a decisão dela, mas civicamente aceitá-la-ia sem conflituarem judicialmente. Terminariam assim, quinze anos de vida conjugal. Os três anos seguintes até conhecer Felizbela seriam acompanhados de momentos animicamente baixos, alternados com momentos mais bem conseguidos e que as viagens, nunca antes tidas, ajudariam a mitigar. Agora, com a descoberta de nova paixão a felicidade voltaria a instalar-se no coração. O dia de hoje seria o ponto mais alto desde que o namoro com Felizbela se iniciou e Constança deixaria de ser saudade e pesadelo, antes passado morto.

O passeio junto ao mar seria estrategicamente preparado e permitiu criar um pressuposto para o jantar romântico à luz da vela. Felizbela sugeriria um churrasco de camarão tigre selvagem e o namorado permitiu-se sugerir a escolha do vinho. A abrir, seria servido um creme de marisco.

Há hora a que decorria o jantar, a lua espreitaria os namorados e far-se-ia presente nas águas tranquilas do oceano, reflectindo-se. Ao contrário do que sugeria o nome do restaurante ”Lua Nova”, a lua estava plena e prenhe de luz. A curiosidade das estrelas, tanta foi que também vieram testemunhar o momento romântico que os namorados estavam a viver. Antes de ser servida a sobremesa, Felizbela tiraria da bolsa a prenda de A. Jorge, um bonito cinto de pele genuína, à cor castanho-escuro que surpreenderia o namorado. Trocaram-se singelos beijos de gratidão.

Após o jantar, que decorreria em ambiente acolhedor, onde ao redor não faltariam outros casais de namorados, sugeria que a selecção do restaurante fora acertada. Felizbela fez questão de suportar as despesas do jantar, contrariando a insistência do namorado. Seguiram depois até casa, tendo A. Jorge feito o convite para finalizarem o encontro na casa dele, no meio de uma cerveja e um sumo e cafés, ao som de música romântica. Felizbela declinaria o convite respondendo-lhe que o dia havia sido preenchido com tudo o que dele tinha esperado. Acrescentaria metaforicamente que o quadro desenhado tinha sido pintado a seu gosto e que outros quadros viriam a ser pintados, sendo que espera do pintor, também bom gosto. A. Jorge não evidenciaria vontade de a contrariar nos seus desejos e deixá-la-ia onde horas antes, a tinha pegado. Despediram-se, já os ponteiros do relógio trilhavam a primeira hora de novo dia com promessa de repetirem outros encontros e se possível inopinados, por serem mais apreciados e poderem guardar-se no arquivo mental das memórias boas.

Já com cada um em sua casa os pensamentos rolavam e atropelavam-se e se em Artur Jorge, jamais Constança aparecesse em fundo, Felizbela perguntava-se como teria sido o encontro se tivesse sido com Rodrigo. Esta questão ficaria em aberto e sem resposta. Felizbela preferiu não produzir resposta mental para não ofuscar o encontro acabado. Seja como for, a jovem tem feito esforço de contenção para não se encontrar no MSN com Rodrigo, e verdade seja dita, tem-no conseguido. Neste particular, o “homem proibido” tem feito da sua parte tudo para não a perturbar depois que ela assumiu namoro com A. Jorge.

Rodrigo além de excelente comunicador é um viciado em sites de conversação e o facto de não se conectar com Felizbela não o tem impedido de fazer visitas a um desses sites. Recentemente tomou conhecimento com uma moça cujo sugestivo nick de identificação era “ Estrela Cadente”. Curiosamente, quis saber quem se escondia por trás e se o nick reflectiria isso mesmo, ou seja, se poderia estar associado a alguém que já foi feliz e agora não o era. Rodrigo é um cavalheiro, que sabe que o bom uso da palavra poderá ajudar a minorar as fragilidades dos estados de espírito de quem muitas vezes procura na net o que à sua beira não tem. Timidamente, solicitaria para conversa “Estrela Cadente”, que responderia de imediato.

- Olá, boa noite.

- Boa noite.

- Tudo bem?

- Sim, tudo e você?

- Também estou bem, obrigado. Poderemos conversar?

- Sim. Um pouco. Vim só um pouquinho de tempo...

- Certo... Será o tempo que quiser. Por mim esteja à vontade. Quando quiser sair…sai e não terá de se justificar.

- Ok. Ainda sou novata nestas coisas…mal sei usar.

- É fácil e verá que irá gostar. O mais importante é encontrar pessoas credíveis. De contrário…

- De contrário, o quê?

- A Internet tem os seus perigos, que os mais incautos não descortinam. Pelo que me apercebo e disse, é novata a usar a net. Portanto, todos os cuidados deverão ser tomados. Há pessoas que se frustram com a experiência…

- Credo, já estou a ficar com medo…

- Não será o caso.

- E como poderei saber se há perigo ou não?

- A essa pergunta não saberei dar resposta, contudo, há alertas que é conveniente ter em atenção.

- Ok. Partirei do princípio que você não representa o perigo de que me fala e por isso, aceitarei o desafio para conversarmos.

- Não, não serei perigo algum. – Sabe, gostei do seu nick

- Sério? Porquê, posso saber?

- Acho-o sugestivo.

- Sugestivo? Talvez…achei que fala nas entrelinhas, de mim. - Posso dizer-lhe uma coisa?

- Sim, pode…

- O seu nick também é bem sugestivo! Onde foi buscar o nick “Soldado da Paz”?

- Tal como o seu, o meu nick também fala por mim.

- Espero…Então, parece estarem encontrados ingredientes para uma boa conversação. Será que não estarei equivocada?

- Espero bem que não…Poderemos ser amigos e partilhar as nossas experiências, saberes, vivências, sensibilidades, opiniões, eu sei lá…

- Que bom. Quem sabe me possa ajudar a ser mais feliz. Sabe, ultimamente tenho sido uma mulher muito triste com a vida. A solidão amargura-me e…

- E?

- Desculpe estar a falar de mim e das minhas frustrações, amarguras e solidão…O senhor não tem que me estar a ouvir mas, compreenda-me a necessidade de falar…

- Sei como essas coisas são…

- Porquê, também já se sentiu assim?

- Não, felizmente da vida guardo boas recordações. Não acho que tenha sido rejeitado pela sorte. Num futuro, não se saberá…

- Também pensei que não me aconteceria a mim. Fui feliz durante alguns anos…

- E agora não?

- Vai-me desculpar, mas hoje não irei poder ficar mais tempo. Foi um prazer. Quem sabe, poderemos voltar a falar num outro qualquer dia. Um abraço.

- O prazer também foi meu. Um abraço. Até…

No final da conversa, Rodrigo questionar-se-ia sobre quem seria a pessoa que estava no outro lado do computador. Certamente, dizia para si, alguém muito marcada pela tristeza ou frustração e concluía, a Internet tem sido um espaço que muitas pessoas encontraram para desabafar e se libertarem dos pesos de vidas mal conseguidas. Rodrigo acredita que essa pessoa terá muito para dizer e que não será a sua curiosidade a procurá-la mas, essencialmente pretexto para a ajudar. Reflectidamente concluía: dar ouvidos e atenção, é dever social e ninguém tem o direito de assobiar para o lado e ignorar os males que nos são fronteira de proximidade e se a cada um cabe a obrigação de dar ou partilhar alimento para o corpo, porque não dá-lo também ao espírito?

Certamente, que aquela “Estrela Cadente”, num misto de receio e coragem ainda irá procurar o amigo da conversação. Pelo modo como finalizou a conversa e se despediu é de crer que o voltará a procurar e desejar saber algo do “Soldado da Paz”. As relações pessoais e os encontros que acontecem fortuitamente deixam-no de o ser, sempre que a empatia e a comunhão de interesses ocorrem e se fazem solidários. Muitos encontros, mesmo virtuais, criariam laços afectuosos de amizade e até casamentos ocorreram como resultado dessas oportunidades. Na cabeça de “Estrela Cadente”, não se sabe o que lhe passa. Só o tempo se encarregará de desmistificar o propósito.