UMA HISTÓRIA SEM FIM



Ele era menino quando a viu pela primeira vez. Estava sentado sobre a soleira da janela e ela passou vestidinha de branco no carro do pai que havia abaixado a capota para que todos a vissem no dia da primeira comunhão. No começo pensou que ela estava vestida de anjo. Foi o pai dele quem esclareceu sobre o sacramento e quem falou sobre o significado da comunhão.

Ela passou novamente e muitas vezes. Nem sempre a viu passar. Precisava estar sentado batendo sola, colando couro, ajustando fivelas. Era um trabalho de que acabara gostando. Mesmo considerando a quase ausência de remuneração e o estado deplorável de suas mãos em virtude de graxas e tintas infiltradas na pele, a profissão proporcionava a solidão de que precisava para estar consigo mesmo.

Vez por outra não precisava estar na janela para vê-la passar. Bastava levantar a cabeça e podia vê-la ali mesmo, do outro lado do balcão, conferindo o serviço. Era exigente. Uma vez reclamou dizendo que nunca mais usaria aqueles sapatos que ficaram horríveis depois que o salto original precisou ser trocado.

E houve um período em que nem precisava levantar a cabeça para vê-la em sua frente, também sentada sobre banquetas. Ela e a colega demonstrando curiosidades sobre solas e taxinhas. Querendo saber se ele sabia cortar o couro conforme modelos exclusivos. Uma vez ela perguntou se ele tinha sonhos. Foi quando ela e a colega riram de sua timidez. Nas outras vezes que vinham costumavam rir também, e também dele, mas riam pelas costas.

Sim. Ele a viu passar muitas vezes. E algumas vezes a seguiu com os olhos. Foi por isso que o pai dela apareceu para recriminá-lo. Para dizer que não admitia que a filha fosse difamada por quantos pudessem perceber aqueles olhos postos sobre ela. Afinal, quando é que ela lhe havia dado um dedo que fosse de confiança?

Ele a viu passar de braços dados com o namorado. Primeiro com o primeiro. Depois com o segundo e finalmente com o terceiro. E ele a viu passar, de novo em carro aberto, para o casamento.

Depois ela veio trazer os sapatos do filho para a reforma do solado. Um menino bonito de olhos grandes, cabelinhos em cachos. Loirinho igual ao pai. Um menino curioso que pegou no martelo e queria aprender a bater sola. A mãe riu. Disse que só podia ser praga a inclinação precoce do filho. A praga de sapateiro que a perseguia.

Os anos passaram.

E ele a viu passar de novo em um carro fúnebre. O filho já era homem. Homem forte, poderoso, cheio de amigos. Mas foi nos ombros dele que o filho chorou sem compostura.

Em seu mutismo de sempre continua batendo sola e sonha com ela passando em seu vestidinho branco para a primeira comunhão.

 

 

 

Lucas Menck
Enviado por Lucas Menck em 21/10/2008
Reeditado em 30/10/2009
Código do texto: T1239882