PERFUMES
 
     Ela não soube que ele voltou. Ela viu.

     Ele passou pela praça da igreja dirigindo o carro de dona Darcy. E dona Darcy, a linda mulher de Waldir, estava ao lado dele mais linda do que nunca. Naquela manhã de início de outono a cidade estava ainda mais bonita, as crianças brincavam na praça, as lojas se abriam para que as pessoas pudessem comprar e os entregadores conferiam pacotes e endereços carregando os carrinhos que em breve cumpririam os roteiros levando felicidades. A cidade estava de novo bonita, mas ela só percebeu isso quando o viu passar e compreendeu que o encanto era ele. 
 
     -- Como você é linda! – ele havia dito ao entrar no gabinete e dar com ela por trás da mesa grande em madeira trabalhada. Ali ela cuidava do cerimonial e fora para tratar de assuntos oficiais que ele foi procurá-la. Ela já o havia visto uma vez, enfrente da oficina, quando o Francisco foi receber o orçamento para o conserto do carro e o levou no banco do carona. Ele, entretanto, só tomara conhecimento de que ela existia naquele momento, no gabinete. 

     Depois ela soube que dona Cecília encarregara Zé Preto de apresentá-lo à pensão e que em pouco tempo tanto o senhor João quanto dona Arminda o queriam como se fosse um filho. E ela o viu ao lado de dona Darcy na mesma noite da recepção ao governador, depois do banquete, tocando piano na sala da casa de Waldir. Dona Darcy estava linda. Eles dois deram um show obrigando o governador a aplaudir em pé. E tia Cotinha, a guardiã incansável das virtudes de dona Darcy, percebera que ele e ela trocaram olhares quando dona Darcy saiu da sala com seu rico vestido fazendo frufru. As pessoas aplaudiam. Ela também batia palmas enquanto tentava decifrar a mensagem que vira nos olhos dele.

     E ela depois soube que Adriana, a filha do tabelião, se descartara do Zito quase sem mais nem menos para desfilar com ele nas tardes cálidas de Cereja. Adriana, a rainha da primavera, a rainha do algodão, a linda Adriana filha do Tabelião que comprara um apartamento no novo prédio em construção para presenteá-los no dia em que se casassem. Era linda a Adriana, mas os olhos dele estavam sempre procurando pelos olhos dela, onde quer que eles dois se encontrassem.

     Depois que Adriana deixou Cereja para residir em Santos e o namoro terminou, era olhando nos olhos dele que ela dançava com ele nos bailes do Recreativo.  João Carlos a deixava com ele no salão e descia para beber. Dançando, ela se sentia toda mole-mole nos braços dele e sabia que ele também sonhava intimidades ao dançar com ela.

     -- Não gosto de seu perfume. Ele me prende.

     Depois João Carlos, bêbado, a levava para casa pensando sempre  nos consertos que o esperavam na oficina e que precisariam começar bem cedo no dia seguinte. Ela se enchia de culpas, não se negava ao marido, mas não sentia prazer nem alimentava suas próprias fantasias temendo pronunciar o nome errado.

     Ela sabia ou ficava sabendo tudo a respeito dele. Sabia das festas que ele fazia para alegrar dona Esther, a riquíssima paraplégica, que abertamente dizia haver renascido depois que ele veio morar em Cereja. Ela, dona Esther, que nunca saia de casa, se deixava conduzir por ele que a empurrava na cadeira de rodas para levá-la ao jardim da igreja, onde tomavam sorvete.
 
     E ela sabia que ele nunca voltava de uma viagem sem trazer um brinquedo ao Vitor, o menino mongolóide que terminara no papel de elo que o ligava à mãe, a mulher pobrezinha que vivia de produzir mel e vender elixires.

     E ela soube da alegria de dona Açucena, a mulher do Kaissar dono do grande supermercado, quando os caminhos dele o levaram para Susana, a protetora local dos pobres e enfermos.

     E ela soube, sem saber se era verdade, que ressentida por ficarem noivos, ele e Susana, filha de Kaissar e Açucena, dona Darcy  sofreu horrores. Correram boatos abafados sobre pedidos ao governador no sentido de tirá-lo de Cereja. Talvez fosse verdade. Dona Cotinha era influente e o fato é que o governador o designou para o escritório no Rio de Janeiro e ela nunca mais havia visto os olhos dele em parte alguma na Cereja que desde então perdeu o colorido.

     Ela sabia tudo sobre ele. Só não sabia se ele ainda não encontrara outro lugar para pôr os olhos que não fosse dentro dos olhos dela. E ela queria saber mais. Queria saber se ele podia ler os pensamentos dela.
Emocionada, ela passou pela oficina para informar ao marido que passaria aquela tarde na chácara. 

      -- Volto no final da tarde, João Carlos. Talvez no começo da noite.

      Algumas horas depois ele saiu da estrada e ao começar a descer com os pneus sobre estreito caminho de terra batida, viu o arvoredo e adivinhou estar às margens de um riacho. Pouco a frente viu a casa de material, pequena e graciosa com flores no quintal. Sob uma das árvores, quase ao lado da casa, havia um balanço onde ela estava sentada sem se balançar. Usava saia plissada de boca larga, blusa de malha com frente em duas abas transpassadas saindo do pescoço e alargando na direção da cintura. Estava elegante em sapatos de salto, mantendo os cabelos impecáveis, com o pega-rapaz.

     Ele saiu do automóvel para sentar-se sob a mesma árvore, no chão, com os joelhos dobrados para cima.

     Chegar sem dizer ‘boa tarde’, sem ‘olá’, sem constrangimento algum fazia talvez parte do jogo. 

     -- Faz tempo que chegou? – ele perguntou com os braços sobre os joelhos e as mãos ocupadas com um caule de capim que fazia girar nas pontas dos dedos.

     -- Vim pela manhã. – respondeu a meio tom com a voz quase natural - A gente fica sem vir por algum tempo e você não imagina quanta coisa acontece. Quanta coisa precisa ser arrumada.

     -- Está ficando bom aqui.

     -- Ele gosta daqui. A gente está melhorando aos poucos. Por enquanto não queremos um caseiro. Aqui ele quase não bebe.

     -- Veio só porque ele bebe?

     Ela não respondeu e por um instante ele se arrependeu de ter feito a pergunta. Ouviu os pássaros chilreando nas árvores. Podia ouvir o murmúrio da água do riacho.

     -- Vai ficar muito bonita. A chácara.

     -- Tomara. Por enquanto há muito mato perto da casa. E você? Veio a Cereja em missão oficial?
     -- Não! Eu queria esquecer você, mas não consigo. Na verdade estava quase conseguindo, havia me convencido de que não pertencemos um ao outro. Mas aconteceu um incidente.
     -- Incidente?
     -- Sim. No shopping. Uma vendedora espargiu um líquido sobre um lenço de papel e me entregou sorrindo. E era o seu perfume.

     Ela riu. Ele se pôs em pé.

     -- Eu viria mesmo que ele não bebesse. – disse ela ainda sentada, olhando nos olhos dele que lhe estendeu a mão para ajudá-la a se levantar. 

     -- Quer ver como está ficando a casa? Não repare.

     Entraram pela porta da cozinha.
     Pouco depois, caso houvesse alguém observando veria aberta a janela do quarto. E pela janela a veria em pé, levantando os braços para tirar a blusa de frente transpassada. Nem seria necessário prestar muita atenção para notar a marca mais clara sobre os melões grandes e firmes com aréolas na cor de chocolate.
     Os mamilos crescidos denunciavam desejos reprimidos ao longo de cinco anos.

 
 
 
 
 

 

Lucas Menck
Enviado por Lucas Menck em 23/10/2008
Reeditado em 31/10/2009
Código do texto: T1244339