A MOCINHA E O VELHO CAPITÃO

 

 

 

Frustrada a mocinha pobre fechou a porta por fora e deixou a chave de ferro na fechadura. Antes de carregar sua frustração pela trilha sinuosa na direção da ilha dos pescadores, olhou uma vez mais para a rede vazia estendida no alpendre.

Deixara os pais há alguns meses na esperança de um futuro melhor. O pai reclamara aos amigos dizendo que ela não tinha sorte. A mãe não deixara por menos, acusara a menina de ser uma sirigaita.

-- Tá dando.

Ela ignorou as ofensas, os risos das mulheres à sua passagem e passagem dos homens rodeando o chalé. Queria progredir e quem deseja se expandir não se prende a cercadinhos. Inspirada pela visão daquilo que lhe seria possível, trocara a reputação pelo direito de escorar seus passos em suas próprias convicções. Como poderia imaginar que o velho Capitão logo seria chamado e partiria para novas aventuras nos oceanos do outro mundo?

Velho e cansado, destituído de familiares e apartado de seus bravos marinheiros, fixara-se o Capitão no chalé. Sentia-se disposto a aguardar ainda uma vez mais pela vinda de algum armador decidido a contratá-lo.

Solitário e irritadiço em sua rede, vez por outra imaginava estar de novo em alto mar e aos berros pilotava seu chalé. Conquanto já quase incapaz de dar um passo em terra firme, revivia em suas alucinações os seus cruzeiros, os perigos que enfrentara e as batalhas tantas que perdera.

Durante as tempestades, quantos sustos, quanto esforço em mil manobras, quantos gritos de pavor! Quanto horror e treme-treme e ele ali, firme no leme desafiando os elementos. Mares e mares. Meses, muitos meses, ele solitário na cabine sobre as águas mais profundas e traiçoeiras. Viagens e viagens transportando suprimentos no interesse de armadores. 

Quanta riqueza transportou para sua gente!

Quantos tiveram de seu suor posto na mesa. A quanta gente, dali e de algures, veio por ele o quê vestir, o quê calçar, com quê luzir.

Bravo, era o cão!

Partiu, por fim.

Venceu muitas vezes as águas tormentosas do mar profundo e insondável. 

Aposentado, abandonado, conduziu de sua rede a imaginária embarcação com que tentou dominar os turbilhões de seus instintos.

A mocinha de lábios carnudos, cabelos encaracolados, caminhando pela trilha em direção à ilha dos pescadores, desnorteada por antever a decepção dos pais em razão de seu retorno, levava no peito a desolação. Talvez voltasse a limpar peixes.

Ela não pensava naquele momento em que depois da próxima borrasca já ninguém mais se lembraria do velho Capitão a quem serviu. Tinha a certeza absoluta de que a experiência a marcara na comunidade como mulher sem sorte, sirigaita de capitão. O pai a receberia com lágrimas nos olhos. A mãe com olhos desconfiados, certa de que os próximos meses confirmariam suas acusações.

Nem naquele regresso, nem nunca, se deu conta a mocinha de que naquela comunidade, ela, que dele menos recebeu, foi a única que retribuiu.

 

 

Lucas Menck
Enviado por Lucas Menck em 24/10/2008
Reeditado em 24/10/2008
Código do texto: T1245042