A PEQUENA FLOR

                Ele nunca despertava pela manhã.

Mas houve uma noite em que o sono o derrubou antes da hora e algum poder floriu seus sonhos. Pela manhã, bem humorado, lembrando-se de parcelas do que sonhara, passou pelo jardim onde notou que antes do sol se fazer forte algumas flores permaneciam adormecidas.

Entre contente e preocupado passou o dia em suas buscas costumeiras, mas ao voltar para casa trouxe um despertador de cabeceira. Não queria que o sol, entrando pelas frestas da cortina o despertasse, pois então não teria mais a oportunidade de ver as flores que por ventura ainda dormissem ao amanhecer. Ele agora queria saber se as flores também sonhavam.

Na verdade não precisou do despertador. Ele não conseguiu dormir. A todo instante punha o rosto pela janela e os olhos procuravam ver as flores ocultas pelo manto escuro de uma noite sem luar.

-- Não apreciarão suas indiscrições – disse-lhe a consciência com um rubor na face.

Ele estremeceu e envergonhado tentou ler. Leu duas linhas. Precisou ler novamente porque não havia prestado atenção no texto. Tentou reiniciar a leitura, mas então prestou atenção nas reclamações do estômago e saiu à procura de um biscoito. Voltou, estirou-se na cama, afundou a cabeça no travesseiro e logo se virou de um lado para outro sem conseguir dormir. Piscou para a consciência que aturdida virou-lhe o rosto, e pondo-se em pé espiou de novo pela janela, para ver as flores. Não as viu. E agora estava brigado com a consciência.

Bem antes do amanhecer estava ao lado das roseiras, em pé, com os olhos abertos, observando as flores que dormiam.

-- Bom dia! – Disse-lhe o cravo em tom neutro – então houve troca de jardineiro?

Ele não teve o que responder de pronto. Perguntou:

-- Sabe a que horas acordam?

-- Não é jardineiro!  Reclamou o cravo agora em tom severo.

-- Não. Não sou jardineiro.

          -- Então é algum boêmio.

   -- Também não. Eu moro ali, naquela casa em frente. Trabalho com publicidade. Sabe dizer quando estarão todas acordadas? Vou fazer uma fotografia.

O cravo não respondeu, fez de contas que nem ouviu.

Para quem já estava brigado com a consciência foi fácil dar as costas ao cravo e mudar um passo na direção de uma das roseiras mais carregadas com flores novas. Ele acariciou as folhas verdes e um espinho feriu-lhe um dos dedos. Uma rosa grande riu dele e foi a vez dele fingir que não estava prestando atenção.

Uma brisa fez oscilar o galho da roseira e uma das mais novas estremeceu pondo o rostinho para fora do botão.

             -- Oi! – disse a florzinha com um sorriso.

            -- Oi! – disse ele.

            -- Vai nos levar para a floricultura?

-- Ah! Não. Estou apenas esperando o amanhecer. Alguém vai levar você para a floricultura?

-- Isso eu não sei. Dizem por aqui. Levam flores para confecções de enfeites.

-- Quer ser parte de ornamentos?

-- Não sei. Algumas de minhas irmãs são levadas para os pés da Santa. Disseram por aqui. Eu não quero enfeitar os pés da Santa.

-- Não?

-- Não! O meu sonho – disse um ‘meu sonho’ com uma entonação realmente sonhadora, mas calou-se em seguida.

Ele não soube se percebeu algum rubor no rostinho vermelho dela. Talvez houvesse um quê de pudor, mas ele apenas notou que ela permaneceu calada.

Agora ele sabia que as flores também sonhavam e não pretendeu constrange-la. Arrumou uma desculpa com que afastar-se de modo galante e voltando-se para o cravo que ainda estava de cara feia disse um bom dia educado.

Mais uma vez passou o dia em suas buscas costumeiras, mas agora já sabia que as flores também sonham e desejava saber com quê sonhavam. No início da tarde adormeceu, perdeu a hora com o cliente e o telefone não parou de tocar na boca da noite.

-- É o que dá! – disse-lhe repreensiva a consciência – Sabia que muita curiosidade só traz problemas? Você vai perder os seus clientes. Vai arrumar encrenca com aquele cravo ciumento. E vai ter de se explicar com o jardineiro.

-- O Jardineiro! Ele exclamou horrorizado.

-- O que é que tem o jardineiro? – Perguntou a consciência com um pouco de pouco caso.

-- Preciso vigiar o jardineiro. Ele vem e leva as flores para a floricultura.

-- E está no papel dele. Ou agora vai interferir na lei natural das coisas também?

-- Mas eu preciso conversar com aquela flor pequenininha.

-- Não precisa! Você pensa que precisa. Viveu muito bem sem conversar com ela até ontem.

-- Mas agora eu já conversei com ela uma vez. Mudou tudo.

-- Ah! Então mudou tudo? Você nem a conhece. Sabe cuidar de uma flor?

-- Não! Eu não sei. E eu não havia pensado nisso.

-- Pois então pense. Se deseja cultivar uma flor deve saber cuidar de flores.

-- Mas eu não quero cuidar dela. Eu quero apenas vê-la uma vez mais antes que aquele jardineiro...

-- Não se insurja contra o jardineiro. Ele nem sabe de sua existência e está cuidando dos interesses dele.

-- Não estou me insurgindo contra o jardineiro. Acho que vou pedir para ele faltar ao trabalho. Só amanhã. Ele falta só um dia.

-- Está querendo subornar! Propor que o outro se torne relapso. Isso é uma demonstração de...

-- Não é demonstração de nada. Cada um cuida de seus interesses. É a coisa mais justa.

-- Você ainda não tomou seu banho. Vá tomar uma ducha. Vá esfriar essa cabeça de desajustado.

E ele passou mais uma noite sem dormir, agora imaginando como agradar o cravo para conversar mais uma vez com aquela florzinha ainda em botão.

-- Devo dar um nome a ela – pensou estirado na cama e com os olhos perdidos no teto do quarto – E o nome que vou dar a ela é ‘pequena flor’.

Na manhã seguinte quando a pequena flor despertou o encontrou a postos, brincando com as folhas verdes na tentativa de localizar espinhos para evitá-los. A pequena flor começou a rir.

-- Você está com olhos fundos. Seus cabelos estão em desalinho. Você mostra cara de quem não dormiu bem.

-- Eu não dormi, mesmo. Quero saber com quê você disse que sonha.

            -- Ah! Eu sonho com vida social.

            -- Vida social?

    -- Não é assim que chamam? Salões de festas. Casais dançando e murmurando juras de amor. É com isso que eu sonho.

-- Entendi. Quer ser parte de enfeite de mesa nos clube sociais.

-- Eu não! Eu quero ficar na lapela de seu paletó.

-- Mas eu não uso paletó.

-- Nunca?

-- Nunca.

-- Então você vai matar meus sonhos.


-- Deixa disso, pequena flor. Como que eu faria uma coisa dessas? Matar seus sonhos?

-- Eu queria estar na lapela de seu paletó para ouvir suas juras de amor.

-- Mas eu nem tenho para quem fazer juras de amor, pequena flor.

-- Perguntou qual era meu sonho. Era ficar bem junto ao seu coração nos momentos em que seu coração estivesse feliz, em festa, amando. E você não usa paletó, nem tem alguém a quem declarar seu amor. Portanto você vai matar o meu sonho e eu agora não me incomodo mais caso o jardineiro me leve bem longe daqui.

Ele então notou uma lágrima diminuta descendo pelo corpinho verde do botão de rosa.

-- Você está chorando?

-- Claro que não! – ela disse pretendendo altivez.

-- Eu estou vendo! Podia ser sincera.

        -- Eu não estou chorando.. Não há motivo, há? Você está vendo uma gotinha de orvalho.

              -- Está magoada?

             -- Não! Não há motivo.

             -- Pequena flor, eu tenho uma solução para esse seu problema.

             -- Eu não tenho problema.

              -- Eu tenho um modo de...

-- De remendar – disse ela com voz magoada e soluçando -. É sempre assim. Sempre existem modos de aplicar remendos nos sonhos de alguém.

-- Eu não estou aplicando remendos. Eu não uso paletó e não tenho a quem declarar o meu amor.

-- Já falou sobre isso.

     -- Mas eu tenho um trabalho. Um trabalho lindo. Faço publicidade. Gosta de ilustrações?

           -- Adoro. Você faz ilustrações?

          -- Claro que não! Eu não sou artista.

            -- Eu acho que você não é de nada, isso sim.

-- Bom. De fato. Mas eu trabalho com ilustrações criadas por uma artista.

-- Ah! Entendi. É uma boa!

-- Não quer mesmo ornamentar salões de gala?

-- Não! Nem pés da Santa. Tenho aqui a minha vontade de espiar festas de gala. Tenho aqui a minha devoção. Mas, não!

-- Não mesmo?

       --Não. Tenho religião. Venero a Santa. Mas a minha religião e a minha Santa quererem que eu viva neste mundo maravilhoso de meu Deus. Eu sou parte do mundo e quero viver as delicias a que tenho direito. Deus é o grande amor de minha vida. E é Dele que vem o amor que eu quero viver na vida.

           -- Gostaria de ver as ilustrações?

          -- Sim. Eu gostaria muito.

-- Então vou dar um jeito. Comprarei um vaso e levarei a roseira para minha sala.

A pequena flor sorriu.

-- Há ilustrações picantes? Perguntou baixinho e piscando um olhinho.

-- Algumas.

A pequena flor abaixou a cabecinha e ele pensou que ela estive constrangida, mas ouviu um risinho alegre e divertido. Ela em seguida levantou a cabecinha, piscou para ele com um rostinho alegre e se abriu em flor de muitas pétalas delicadas e lindas.

Ele olhou maravilhado. Todo atrapalhado com toda aquela beleza da flor, fez um aceno com a mão a guisa de despedida e saiu para o trabalho pensando em comprar um vaso grande.

De mau humor o cravo comentou com o girassol.

-- Este nosso mundo está perdido!


Lucas Menck
Enviado por Lucas Menck em 30/10/2008
Reeditado em 30/10/2009
Código do texto: T1256432