CEREJEIRA ROSA


Um mês depois que ela nasceu, em um dia feito de frio intenso, a mãe dele o acomodou em uma charrete e o levou para ver a prima. A mãe dela, feliz, o fez sentar-se em um banquinho de madeira torneada e pôs a bonequinha em seus bracinhos.

-- Ao longo da vida você vai cuidar dela. – disseram-lhe.

Ele tinha então pouco mais de cinco aninhos e na ocasião não compreendeu o sentido daquele vaticínio. Na verdade jamais teria se lembrado daquele ritual se não fossem os registros orais sempre arejados em ambas as famílias. Anos mais tarde pôde sentir a força dos desejos de mãe e por muito tempo confundiu seus sentimentos, achando que o amor que sentia pela prima provinha daquela obrigação de zelar e proteger.

Mocinha, ela era inteligente e muito ativa. Fez inúmeras amizades, mas o pai não deixava pôr o pé no portão caso não estivesse acompanhada pelo primo. E o primo era um mocinho tímido, calado, apaixonado pelos segredos da eletrônica, capaz de passar noites em claro tentando montar velhos aparelhos de rádio.

-- Ele é um chato! – explodia ela emburrada no bate-boca com a mãe.

-- Ele só pensa em seus benditos rádios. Não dança, não entende de moda, não gosta de futebol, não joga, não fuma, não bebe e não canta. – ela dizia às amigas.

Ele algumas vezes sonhava com ela, e, nos sonhos, a abraçava beijando. Acordava excitado e sob o peso da doutrinação familiar não conseguia se olhar no espelho, envergonhado de ereções involuntárias.

Ela se produzia toda para sair. Precisava sempre de dias seguidos na costureira para provar vezes sem conta o novo vestido com babados e rendas. E quando a moda mudou para tecidos lisos era um tormento passar por tantas provas até obter o máximo proveito dos famosos tubinhos que valorizavam os quadris. E eram horas e horas no salão de beleza preparando-se para um baile de gala nos salões do clube.

Pronta, preparada e perfumada, precisava esperar sentada por ele, porque o pai estava sempre de olho:

-- Sem ele você não vai!

Que ódio!

Ele nem sempre era pontual. Ela atribuía aqueles atrasos a uma habitual falta de consideração, tanto mais que algumas vezes aparecia em manga de camisa para dizer que havia se esquecido de que era noite de baile. E ela podia apostar que ele trazia nos bolsos pecinhas de rádio. Era sempre girando na mão aquelas pecinhas que ele disfarçava sua timidez sempre que ela, em noite inspiradora, de céu estrelado, queria romance e parava em pé com ele no cantinho escuro do jardim, sob as ramas das cerejeiras.

-- Você deveria namorar japonesinha! Já notou como são caladas? Seus filhos nasceriam todos mudos.

Ele baixava os olhos. Ela passava a língua sobre os próprios lábios fazendo olhos de desejos. Ele perdia o equilíbrio e ela ria dele.

-- Que ódio! Não dança, não canta, nem pega na mão! – pensava ela – e toque, toque, toque, saia pisando duro na frente dele com seus sapatinhos de salto alto, o busto levantado equilibrando a blusinha tomara que caia.

O bom era que ele não estragava uma noite de baile. Acompanhava-a até as escadarias do clube e ela se juntava às amigas sentindo-se muito feliz. Dançava com os rapazes que a disputavam no salão iluminado e descansava sentadinha em cadeiras com espaldares protegidos por tecidos bordados junto a mesinhas contendo flores e refrigerantes. Ele a aguardava pacientemente, sentado no banco do jardim em frente, muito provavelmente consertando rádios mentalmente. O importante era levá-la para casa depois das festas. O tio, de pijama, mas acordado, o chamava para um dedo de prosa:

               -- Me conte as novidades.

               -- Novidades?

               -- Não vive escutando rádio? Deve ter muitas novidades.

            -- Nenhuma não senhor.

Ele não dizia nada a respeito de ninguém e menos ainda a seu próprio respeito. Mas a mãe, sim. Ela o elevava aos céus e foi assim que todos souberam que ele iria para a capital, onde estudaria na Faculdade, cursando Engenharia Eletrônica.

Ela, quando soube, deu graças a Deus.

-- Vai desencarnar  finalmente!

Mas, na noite de calor em que ele tomou o ônibus, exatamente na hora em que todos se despediram dele no momento do embarque ela sentiu que gostava dele. Gostava tanto que não resistiu ao desejo de se despedir com um beijo e o beijou na boca, fazendo-o corar na frente de todos. Em casa, debruçada sobre a cama ela abraçou o travesseiro e chorou sozinha.

Sem ele na cidade o pai dela aos poucos passou a concordar que saísse com as amigas. Reduziu o horário da volta para casa, fez uma série de restrições, recitava a ladainha toda vez que ela ia sair, mas permitiu que se espairecesse. E ele tirou do guarda roupa seus velhos trajes de festas para acompanhá-la aos bailes. Nas noites de gala ia ela toda produzida, bem vestida, pintada e perfumada, enganchada no braço do pai que usava seu terno de riscas cheirando naftalina.

A despeito da marcação cerrada ela começou a namorar escondida. O rapaz era divertido, dado a falar em inglês, entendendo de um tudo, expert em literatura. Dançava, cantava, bebia e sabia escolher bons pratos. Tinha até mesmo o carro do pai e, no carro do pai, a levava ao morro de onde podiam ver as luzes da cidade como se fosse um lindo cartão postal. Era bom beijar no carro aberto tendo as estrelas do céu por testemunhas de seu ardor por ela

Não! Ninguém pode dizer que ela não gostou daquele moço tagarelas. Gostou, sim. Gostou da ousadia, das promessas implícitas de futuro que abriam as guardas e encorajavam tornando deliciosos aqueles amassos. Tudo era excitante, inclusive era delicioso aquele friozinho na barriga quando havia o perigo do pai surpreendê-la de namorico.

Ela estava com o namorado no bailinho da escola quando a amiga lhe avisou sobre a chegada do primo. Ela gelou, mudou de cor, sentindo-se traída.
      --Como é que ele chega e não me avisa? E está aqui desde ontem?
       O coração bateu forte. E para surpresa do namorado ela desejou sair do baile naquele mesmo instante.

-- O que é que está acontecendo?

-- Nada! Não está acontecendo nada. Eu quero ir para casa. Só isso. Me largue!

E ela realmente saiu com o namorado a persegui-la de perto, sem saber do que se tratava. Foi direto para o cantinho escuro do jardim, sob as ramas das cerejeiras. E ele estava lá, em pé, esperando por ela. Assim que a viu se aproximando jogou sobre o gramado atrás de si um pacotinho que trazia na mão. Ela quase pulou nos braços dele. Abraçaram-se com os corações em festa. Os olhos estavam rasos d água e os lábios se uniram demoradamente.

-- Quer se casar comigo? – ele perguntou com o rosto em chamas.

Ela não respondeu imediatamente. Apenas se pendurou no pescoço dele e o beijou com ardor redobrado. Ela toda produzida, toda perfumada, com sapatos de salto alto e ele em mangas de camisa. O namorado dela, parado a alguma distância, virou as costas e saiu proferindo blasfêmias em inglês. Eles dois, agora de mãos dadas, frente a frente, olhos nos olhos, ficaram rindo e trocando abraços.

-- Quero! – ela respondeu finalmente.

Ele olhou em êxtase para o rosto dela. De repente achou uma saída para sua timidez:

--Está bem. A gente casa depois. Agora preciso achar algumas peças de rádio que acabei atirando em algum lugar por aqui.

E ambos, felizes, passaram a procurar pelo embrulho que ele atirara sobre a grama, no cantinho escuro do jardim, sob as cerejeiras em flor.

          Naquela noite, caso o tio apertasse, ele tinha novidades. Mas o tio não o inquiriu.

     O ‘velho’ estava muito intrigado com aquelas cerdas de capim verde que notou nos cabelos em desalinho da filha.


Lucas Menck
Enviado por Lucas Menck em 20/11/2008
Reeditado em 30/10/2009
Código do texto: T1294643
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