O Esqueleto e o Louco

E vendo eles que carregava o Esqueleto um homem de meia-idade, de aspecto vago que alguns diziam “insano”, mas inteiro, pois a tudo respondia com perfeita educação, mudaram de atitude. Tendo ouvido isso, alarmou-se o Esqueleto com a pedra. A pedra do período no meio do caminho. Esqueleto tombado sempre é invadido pelo terrível tropeço, mesmo sendo este, o único a possuir a força de imã para recompor a ordem antiga. O vento no oco chocalhava bonomia, tirando da morte a parte suplicante. Nada mais lhe aborrecia para vascolejar os assuntos.

Ora, tudo isto aconteceu. Eis que naquele momento o forro emitiu um rangido, fruto do calor sobre o encaixe plano de ranhura e macho da madeira com madeira; era a madeira trabalhando... Porque a felicidade está e aquela fisionomia acompanhada da loucura havia se libertado da angústia. Albina focalizava os vultos no horizonte. Toda luz do dia se arrastava sobre a rotina que começava a despertar. No entanto era impossível com a neblina identificar quem seriam aqueles dois. Tudo o que se podia ver estava iludido se fazendo ao sol. Albina contentou-se em passar café, além de ligar o rádio, depois à televisão e todos os aparelhos que guardava para se perder neles. Logo estariam percorrendo o caminho até o portão e passariam para dentro de casa sem convite. Por esse tempo a circunvizinhança compreendeu que eram figuras livres de cansaço e ao mesmo tempo carregadas de pensamento. Há pouco haviam atravessado o infinito num passeio cósmico. Navegando além mar pelo éter entre mescladas figuras de auroras siderais.

Para João Lobato era-lhe indiferente a idéia da ressurreição em massa. Faltava às palmeiras seculares trocarem de lugar, resmungou, desviando-se a antiga geografia, feita de sal e água doce, para o território do fantástico. Nenhum contentamento haveria, caso quisesse apenas ser Esqueleto. Poderia ser o reinício de Quitério, irmão falecido de João Lobato no desastre com o cavalo tubiano. Quase dois metros de altura e da brancura do quartzo só poderia ser Quitério, o gigante. Com a força que possuía poderia ter quebrado o tubiano ao meio. Mas a energia de nada lhe valeu. Na verdade todos estavam certos de que aquele sistema ósseo familiar andava, falava e contava mundos. Incontidos nessa convicção de que eram entes queridos.

O bom senso é a lâmpada da razão, disse o Esqueleto ao Louco. Necessitavam apenas de poucos minutos para alcançar o ponto de algum sentido. Ambos dispostos a sumir respostas naquilo que lhes fossem indagados. Ou se lhe pedissem um peixe, comentava o Louco, haveria um copo-de-leite. Logo a seguir, compeliram rumo à casa de Albina. Saudosos dos temas do passado fixados em retratos. Resumidos pela oratória exposta no pijama nupcial do avô celestial, perfeitamente preservado na gaveta do guarda-roupa entre naftalinas. Somente Albina era capaz de preservar por tantos anos as peúgas milenares do avô. Apenas ela saberia lhes narrar às notícias da vida como o amor imediato que espalhava naquelas narrativas humildes de mulher fina, inteira, reta como um bambu nas noitadas estreladas. Amável nas noites tão suaves quanto o cheiro de café ao cair da tarde. Feita de incenso natural e sem melancolia. Entusiasta das advertências de progresso do barroco.

Louco iniciou o assunto com Albina procurando saber se os impostos já se pagavam com folha de menta. Albina reduzida ao máximo à quietude, foi até o quarto se apossando da placa com os seguintes dizeres: fui pobre! Agraciando o Esqueleto de 206 ossos com os pilares desmoralizados da sapiência das oito letras. Quem crer saberá que aquela ossada empregou da educação do louco para ficar mais tempo calada. Havia sido nobilíssimo no Egito, simplório em leis, isso sim, mas na Mesopotâmia! Célebre surrealista na Espanha nos tempos de Dali amando com ele o ouro o quanto pode se entregar, bem mais por simpatia gráfica do que vaidade. Restava-lhe o incisivo central e o lateral rebrilhante.

Enquanto comiam foram surpreendidos pelas batidas na porta. Era João Lobato, instruído de certezas e verdades. Batidas tão fortes que escandalizaram a vizinhança. Estava certo, certíssimo: Aquela caveira revivendo na casa de Albina Harpia era do primo Valadares. Distante de tantos anos. O louco riu balbuciando: a imaginação é o cemitério vivo da eternidade. Sem mal por mal, tinha clareza. Estava pronto para ser o que quisesse.