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                                                    HOUVE CENAS DE AMOR


Na noite em que esta história teve espaço, pedaços de papel picado cobriam o gramado no jardim. Mas não se apresse em culpar o jardineiro rotulando-o de relapso. Ele era zeloso embora nem sempre estivesse atento ao dia-a-dia dos habitantes do jardim. Cuidava de seus deveres. Vinha, aparava e rastelava, retirava os restos, as folhas secas, colhia as flores. Arrumava aqui e ali um pedaço de cerca onde o arame enferrujado se partira. Pintava de novo uma ou outra ripa onde a pintura estivesse desmaiada.

É sempre isso e apenas isso o que se espera de um homem solar, dirigido pela razão. Mesmo sendo um jardineiro ele não se emociona com as cores, com a saudável aparência das rosas de porte avantajado para a espécie, e ignora por completo aquelas que florescem diminutas.

Naquele dia esteve pela manhã no jardim e ao fechar o portão, virando as costas, deixou tudo limpo e arejado, em ordem e em paz.

Portanto, se for seu interesse identificar o causador de tudo aquilo, de tantos pedacinhos de papel cobrindo a grama, direi que foi o vento.

Começou a ventar pouco depois das dez horas da noite. Vento fraco e persistente cuja velocidade foi aumentando aos poucos. É difícil acontecer esse fenômeno neste cantinho do planeta onde em geral tudo é tão calmo e previsível.

Balançando seus raminhos ao vento leve do início daquelas emoções, uma das roseiras mais jovens quis brincar de jogar beijos perfumados. Não demorou e foi seguida em sua traquinagem. Em pouco tempo, ao papel picado juntaram-se pétalas de rosas, milhares delas, constituindo um tapete colorido que cobriu todo o quintal. E o cenário, que com o papel picado dava a impressão de desleixo, quando as pétalas o forraram se transformou completamente. Ficou parecendo que o chalé estava ou entraria em festa.

O que não faz um vento!

Mesmo depois que o vento cessou, a folha espessa da janela permaneceu fechada. E os seres habitantes do jardim, muito intrigados, se perguntavam sobre o que estaria acontecendo.

-- Bem que notei. – murmurou o botãozinho de rosas a uma pequena orquídea.

Me conta!

-- Ah! Não sei! Ele não estava escrevendo. Acho que vai sair. Eu queria tanto me pendurar na lapela.

Será que vai a uma festa?

-- Não sei. Ultimamente está... Acho que é namoro. Eu queria tanto estar na lapela.

Não é namoro nada.

Mas ele está diferente. – insistiu o botãozinho de rosas – É namoro e eu queria estar na lapela, para sentir o coração dele

Sentir o coração dele! – murmurou de maus bofes o cravo, com vontade de dar um chute no bico de um bule velho, esmaltado, onde o jardineiro pensava plantar mudas de trevos.

Alto como só ele por ali, o girassol tentava ler os ponteiros do relógio na torre da igreja majestosa do outro lado do bosque. Esperava ansioso pelos badaladas da meia-noite, hora em que muitos mistérios se revelam.

O anãozinho de jardim subiu sobre uma pedra tentando um pouco mais de altura para o caso de surgir alguma novidade na moldura da janela.

O cravo, como sempre contrariado, mantinha um olho atento aos movimentos do botãozinho de rosa. Sempre gostou daquela florzinha que em sua opinião estava se esbaldando demais ultimamente.

O botãoinho de rosas e o pezinho de orquídea se calaram e houve silêncio no pedaço.

Não se ouvia mais nem um pio no jardim.

Para não dizer que o silêncio era absoluto direi que de vez em quando era possível perceber abafados suspiros de amor emitidos por uma das roseiras, sem que fosse possível identificá-la entre tantas ali existentes. E, claro, podia se ouvir as graminhas crescendo sob pedacinhos de papel e pétalas de rosas.

Com seus olhos grandes o sapo de louça treinava suas habilidades, lançando a língua na direção de uma inexistente mosca. Ele a imaginava distraída sob um caco de telha enegrecida.

 Deu meia-noite.

O coração do girassol bateu apressado e a cada som produzido pelo badalo de ferro fundido contra a saia de bronze do sino, na torre da igreja, a cada badalada, batia mais forte seu o coração.

No céu uma densa nuvem negra navegou engolindo quase todos os raios de luz da Lua. Para poder espiar um pouquinho, a Lua precisou assumir a forma de arco. Mais que depressa a bruxinha foi com sua vassoura de cerdas de plástico sentar-se em um dos cantos do arco lunar.

Sobre o jardim pesou uma escuridão inusitada que num primeiro instante trouxe medo a todos os seres ali presentes. Por medo, e não por outro motivo, o pirilampo teve um acesso de liga-desliga e seu rabinho ficou num frenético pisca-pisca.

Que ninguém saia correndo – disse alto o anãozinho de jardim – Permaneçam em seus lugares para que ninguém seja pisoteado.

Uock! Uock! Fez o sapo de olhos grandes que recolheu a língua e se aproximou da tartaruga. Ela nem viu. Havia guardado a cabeça em seu chapéu de soldado de infantaria.

Aquele breu absoluto durou, entretanto, apenas alguns segundos.

Milhões de pontinhos de luz desceram do céu caindo sobre o chalé e sobre o jardim como uma maravilhosa chuva de prata.

E a fada, vestindo aquelas suas roupas lindas, transparentes, pousou serena bem próxima à pedra onde se encontrava o anãozinho de jardim.

Esplendorosa, linda, maravilhosa, a fada mostrou a ele uma menina a sorrir.

É o meu pinguinho de luz! – disse emocionada a roseira que durante todo o tempo estivera suspirando.

E assim que a nuvem negra foi varrida do céu, a luz amarelada da Lua voltou prateando o rosto moreno claro da fada. Os olhos negros dela estavam ternos, sonhadores, lindos.

E a janela finalmente se abriu. Ouviu-se um som de chaves abrindo portas e a fada caminhou descalça por sobre aquele tapete de pedacinhos de papel picado e de pétalas de rosas, desaparecendo por trás de um caramanchão.



Tudo isso aconteceu, mas muitas pessoas não acreditam e mesmo entre os seres do jardim há quem diga de tudo não passou de um sonho. Às vezes todos eles concordam em que estiveram sob a ação de encantamento e viram coisas.

Todos, não.

A roseira ainda suspira e diz emocionada:

-- Era o meu pinguinho de luz! Eu o recebi vindo da estrela. Com uma de minhas flores enfeitei e perfumei os seios dela naquela noite de amor. E eu ouvi, vindo pela janela, chorinhos de neném.

O botãozinho de rosa ainda reclama:

Era namoro! Era namoro, sim. E eu, que tanto queria estar na lapela... Agora nem sei se ele a beijou.

Só o girassol não fala nada. Alto como ele só, esteve espiando pela janela. É a única testemunha ocular, mas é de hábitos saudáveis. Discreto apesar de seu aspecto espalhafatoso.

Ele viu sim!

Houve cenas de amor!



                     
 (de nosso blog Veturas do Viver)
 (escrito nos últimos insantes de um mês de maio, mês das noivas, às portas do mês de junho, o mês dos namorados)

 
Lucas Menck
Enviado por Lucas Menck em 30/05/2009
Reeditado em 30/10/2009
Código do texto: T1623932
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