O HOMEM INGENUO E A AVE DE SEUS SONHOS
 
     Um homem a quem Deus concedeu o dom de extrair notas musicais de um pedaço de bambu perfurado, viveu perdidamente enamorado por uma ave que lhe parecia ser a personificação do amor . Era linda, ágil, independente, gozando sempre de ampla liberdade para cruzar os céus sobrevoando rios, campos repletos de flores e exuberantes florestas. Instintiva, pouco lhe importava o que estava por vir, bastando-lhe o momento presente e o impulso que a induzia a partir em vôos aleatórios, em busca da realização de seus caprichos e anseios. O som da flauta a atraia ocasionalmente e ela, então, se aproximava postando-se prudentemente a certa distância e alvoroçando-se aterrorizada ao menor gesto que ele esboçasse no sentido de oferecer carinho e ternura.
 
     Ele a adorava. 
 
     Ela era o objeto de seu primeiro pensamento ao acordar pela manhã, e o último a se esvair de sua mente consciente ao adormecer. Ele passava o dia imaginando diálogos com ela. A ela atribuía o prazer que experimentava ao se deparar com as belezas naturais sem conta que existiam na região. E porque ocasionalmente ela se aproximava atraída pelos sons melodiosos, ele acreditava firmemente em que era amado por ela. Julgando todos os seres por si mesmo, era capaz de jurar que ela o adorava. Ele estava disposto a dar a vida por ela caso fosse necessário e possível.
 
     Ocorreu que houve um dia em que ele se perdeu na floresta densa e escura. E como as horas avançavam, teve medo de perecer caso não pudesse encontrar o caminho de volta para casa. Desesperadamente desejou que a ave de seus sonhos viesse ao seu socorro e inutilmente implorou pelos favores dela que não veio. 
 
     Quem lhe apareceu, postando-se desgrenhada e furiosa a sua frente na clareira, foi uma terrível bruxa a quem os céus encarregaram de amestrá-lo, tornando-o mais dócil aos caprichos da vida, que engessa o livre arbítrio e obriga todos os seres a caminhar na direção de seu fim pré-determinado. Fim que tanto pode ser o alto e arejado pico de uma montanha azul, repleto de benesses, quanto as profundezas de um abismo escuro, composto por tormentos inenarráveis. 
 
     Rindo dele, sentindo indisfarçável prazer em cumprir sua missão, zombou a bruxa de seu amor por uma ave que em verdade não o amava, pois dele apenas lhe interessava o dom de produzir aquelas melodias que a encantavam.
 
     Como até mesmo as bruxas mais terríveis têm seu lado misericordioso, ela o deixou depois das zombarias, ensinando-lhe o caminho de volta para casa.
 
     Ele, agora estava consciente de que não tinha para si o amor da ave a quem continuou adorando. E porque em seu coração o amor era sincero e profundo, ele jamais deixou de soprar em sua flauta, motivado pelo desejo de oferecer a ela a sua alma na forma de doce melodia. Conscientemente, assumiu o risco de jamais voltar a vê-la, caso Deus lhe cancelasse o dom de tirar sons de um tosco pedaço de bambu perfurado. Consciente de que aos olhos dela ele era infinitamente menor que sua arte.
 
 
 (de meu caderno de capa de pano que guardo como rico tesouro nas dependências encantadas de meu tear)
 
 
Lucas Menck
Enviado por Lucas Menck em 22/03/2010
Reeditado em 24/03/2010
Código do texto: T2152215
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