A MOSCA PROFESSORA

A MOSCA PROFESSORA

Pequeno artrópode, a mosca não deixa de não ter grandes curiosidades que descobri, quando um dia me detive a olhar toda a sua trajectória e rotina num final de dia outonal, já com sol abaixo da linha do horizonte, enquanto me ocupava no computador a fazer uns trabalhos de escrita.

Verifiquei então que a pequena e importuna mosca tinha especial apetência pelo monitor do computador e pensei: deve ser a acompanhar os movimentos da setinha do rato. Parei por uns momentos de escrever para ver o que ela faria e apenas mexia com o rato. Verifiquei então e definitivamente que não eram os movimentos da seta do rato que a trouxeram até ali. Ela ficou indiferente. Mais grave. Muito mais grave. Ela veio vasculhar o que eu escrevia. Aí, parei e vi claramente que ela lia atentamente o meu texto, sem deixar para trás qualquer palavra ou frase por ler.

Sabia que as moscas eram espertas, mas nunca me tinha passado pela cabeça que sabiam ler. Desta eu tenho a certeza e mais… além de saber ler, corrigia-me dos erros ortográficos que eu dava. Também aqui neste particular ela me surpreendeu e de cada vez que eu dava um erro, ela lançava-se sobre mim e dava-me uma mordidela. Muito inteligente. Sabia muito bem distinguir um erro simples de um erro grosseiro e sabia-o melhor do que eu… Não sei ao certo se ela frequentou o magistério, mas que ela evidenciava dotes que os professores do antigamente tinham, lá isso não tenho dúvida. E porquê? Porque ela “sabia” dar o castigo de acordo com a gravidade do erro.

Assim, se o erro fosse de gravidade baixa, ela saltava do monitor e dava-me uma mordidela no braço, se o erro fosse grave dava-me uma mordidela na careca. Só me apercebi da diferença dos castigos depois de várias mordidelas na careca, que cada vez eram mais dolorosas e questionei. Perguntei-me então porque era mordido umas vezes na cabeça e outras no braço? Demorei a perceber e quando descobri eu já tinha sido severamente castigado. A culpa, acho que nem era minha…Perguntei, porque raio há erros nas palavras? Quem “inventou” essas armadilhas? Foi só para os professores darem uns tabefes nos meninos e as moscas morderem os adultos? Sim, se houver alguém que saiba me responda.

Porque se escreve uma vezes com “S” outras vezes com “Z”, umas vezes com “Ç” outras com “SS”, ou “C” em vez de “S”, ou “G” em vez de “J”, ou o “X” a valer de “Z”, “S”, “CS”, “CH” ou “IS”, ou ainda ter de colocar à frente do “Q” sempre um “U” e este só se ler quando precede “A” ou “O” e mudo nas outras vogais, ou ainda só um “R” em vez de dois “RR”, e por aí fora…, não falando na conjugação verbal…que dor de cabeça… Houve de certeza alguém por trás destas armadilhas que gozava em dar os ditos tabefes (palmatoadas, puxões de orelhas…) nos indefesos meninos, sim nos meninos, porque nos adultos os professores não batem e aí substituem-se pelas moscas…

Como as moscas têm um ciclo de vida de 25 a 30 dias, pensei… daqui a três ou quatro semanas já estou livre desta importuna “professora”, mas … e se me aparece outra mosca que também sabe de gramática? Ah, esse é o meu medo…Vou ter de estudar bem a gramática, mas ainda antes quero dar um presente envenenado a esta “professora” que, tal como uma que eu conheço e depois de ter dado uns tabefes no Zézito, quando chegou à rua para pegar no carro tinha os quatro pneus vazios.

A vingança é terrível e eu não vou fugir a esses desígnio. A esta artrópode “professora” vou-lhe pagar toda a falta de pedagogia. Sim, eu no meio de tanta armadilha que culpa tinha? A minha professora quando eu era menino nunca me castigou. Agora posso perguntar a mim mesmo, será que ela o fazia premonitoriamente na “pessoa” da mosca? Já saberia que as moscas ensinam gramática aos adultos? Agora percebo porque a minha professora nunca me bateu e eu só digo bem dela…

Na verdade a gramática e a matemática não são de todo o ponto forte dos meninos, sorte a dos adultos as moscas também não o serem a matemática, senão teriam calculado muito melhor os riscos em que muitas vezes se metem…como foi o caso desta “professora”, que aliciada com o engodo do copo de mel a que supostamente não iria resistir perante tão aromático e delicioso presente, disse para si mesma: valeu a pena ter-lhe ensinado a gramática e agora quer-me presentear com aquilo que eu mais gosto. Parabéns ao meu aluno pelo bom gosto na oferta, acrescentou.

O êxtase da “professora” foi tanto, que se atirou a pés juntos para dentro do copo de mel e lá ficou enterrada até às asas, não conseguindo sair.

Aproveitei a ocasião para lhe dar uma lição, não de gramática, que ainda tenho a matéria atrasada, mas na forma como ela deveria fazer o ensino, sem recorrer à intimidação pela violência, substituindo-a pela pedagogia. Bem hajam a todos os professores que são mestres na arte de ensinar.

O outro ensinamento que se pretende retirar é de que devemos estar atentos à desproporcionalidade das ofertas, é que quando a esmola é grande até o santo desconfia.