O ESPALHA BRASAS - I PARTE

O ESPALHA BRASAS

Espalha Brasas, assim mesmo, é o nome de um restaurante fundado há mais de setenta anos pela família Sanches. Começou como uma pequena taberna, que timidamente vivia de serviços elementares de gastronomia, tais como: sandes de queijo, do tipo Limiano, ovos cozidos, sardinhas e bacalhau frito, vinho à tigela, saído directamente das pipas, feitas em madeira de castanho ou de carvalho, estas mais raras. A sua clientela era fundamentalmente de pessoas que, à falta de transportes próprios ou públicos, se deslocavam a pé entre localidades e a provisão alimentar fazia-se em estabelecimentos do género, que na altura proliferavam em todo o canto ou esquina. Também no final do dia, os trabalhadores, nomeadamente operários da construção civil, no regresso a casa feito em grande parte a pé ou alguns em bicicleta, os mais “ricos” , apeavam-se e reuniam-se no Espalha Brasas para conversarem e repousarem e outros para jogarem a malha ou fito, como alguns o designavam. No final do dia, o Espalha Brasas agigantava-se de movimento e as tigelas de vinho verde tinto saíam em corrupio, as quais se passavam de boca em boca, deixando nalguns delas marcas sombreadas da sua passagem, acompanhadas de enormes postas de bacalhau frito que vazam os pães de lado a lado e que avidamente eram tragadas. Este cenário repetia-se de Segunda a Sábado. Ao Domingo, durante a manhã apareciam os jogadores da malha e depois da hora de almoço, os jogadores de cartas. Era assim invariavelmente durante trezentos e sessenta dias no ano, reservando-lhe os dias que faltam, como excepções de Natal e Páscoa.

Era pois, do rendimento desta tasquinha que viviam nove pessoas, O casal Sanches e a prole de sete filhos, sendo que destes só um rapaz, o último. Dizia por graça o proprietário, o Sr. Vasco Sanches que só pararia de fazer filhos quando a sua Felícia (mulher) lhe desse um herdeiro para lhe romper os chapéus, o que na verdade aconteceu. Vasco punha todo o enlevo naquele rapaz e à medida que ele foi crescendo, o ia preparando para herdar o negócio. Dizia; o negócio é para homens de barba rija e o Franklim irá ser um homem desses… As raparigas levariam cada uma o seu dote, à medida que iam saindo de casa, por casamento, não sem antes fazerem aprendizagem de costureira na Quinhas Pespontadeira. Enquanto moças namoradeiras, davam também algumas vezes atenção nas horas de mais movimento, ora na cozinha agarrada às frituras ora ao balcão a encher tigelas de vinho verde tinto.

Diga-se em abono da verdade, que as filhas eram todas moças interessantes, sendo que a Gervásia, era porventura a mais bonita das jovens do seu tempo. Dela morria de amores, o Tino da Viúva, o qual se encostava demoradamente ao balcão a mirá-la de cima a baixo, com os olhitos a balançarem-se rutilantes, em pequenas órbitas. Dele saíam-lhe piropos, galanteios que ela saboreava mas que ao mesmo tempo relativizava por o galanteador não lhe fazer o seu género de homem.

O jovem Franklim, após a escolaridade obrigatória não iria estudar mais por imposição do pai, o qual lhe havia programado uma “licenciatura” em tabernaria. Foi deste modo que cresceu e viveria afortunadamente toda uma vida, atrás de balcão.

Ao fazer dezoito anos, o pai passou o negócio para seu nome e este recolheria à quinta herdada dos sogros para viver até ao final dos seus dias, os quais não seriam muitos por ter contraído o tétano em contacto com cavalos e estábulos. Ao tempo não havia vacinação e a morte ocorria ao fim de alguns dias, de modo doloroso por contracções persistentes dos músculos de todo o corpo. Este imponderável não havia sido equacionado nunca e Vasco Sanches acabaria por nunca ter gozado o prazer de ver o filho a prosperar no negócio, aliás como ele futurava.

Franklim sentiu muito a perda do pai e achou que a melhor maneira de o homenagear seria valorizar o negócio e fazê-lo prosperar. Deste modo, e após conversa com a mãe e irmãs, a maioria delas já casadas, deu-lhes a conhecer o sonho que doravante traz na cabeça, o qual descreveu como sendo um preito ao falecido pai. Todas, mãe e filhas concordaram e Franklim lideraria uma “revolução” na estrutura física da taberna e no serviço prestado.

Contratou um arquitecto, que conservando a bonita cantaria exterior do edifício, adaptaria o seu interior remodelando-o, em estilo moderno. Todo o seu interior, de madeiras já velhas, seria removido para dar lugar a aplicações de vanguarda. O velho balcão fora substituído por um de aço inoxidável, o mobiliário novo e de cores vivas, daria alegria ao principal aposento e ainda aumentaria a área coberta, para num futuro abrir uma pastelaria e salão de chá. A antiga área da tasca daria lugar a uma sala de restaurante para o qual contrataria um cozinheiro já em final de actividade, o Sr. Sousa, conhecido na região por ter desempenhado o seu trabalho no antigo Hotel Frankfort durante mais de trinta anos. Por respeito aos clientes, manteria o serviço de taberna num aposento anexo.

Consumada a primeira fase do sonho de Franklim, este não esperaria que os clientes habituais o viessem visitar e daria ampla divulgação através da imprensa escrita e radiofónica local, para o novo serviço de restauração. Marcada a data de inauguração para um Sábado, convidou as autoridades locais para a mesma. Razão tinha o falecido Vasco Sanches, que premonitoriamente dizia: o rapaz irá ser de barba rija…

No Domingo imediato, teve três serviços de casamento e teve de recorrer a prestadores de serviço de catering para satisfazer e corresponder à qualidade prometida. Na verdade, tudo esteve ao melhor nível e este padrão de serviço promete-o a si mesmo, como a melhor homenagem ao pai.

O Espalha Brasas, de tasca ordinária virou a restaurante de renome e Franklim o seu mentor.

Para satisfação do serviço, cada vez mais solicitado por encomendas, houve necessidade de contratar pessoal com vínculo efectivo, para garantir serviços mínimos e no resto tinha o catering para as situações de maior excepcionalidade.

Dentre as pessoas contratadas, Julieta seria uma delas. Ainda muito jovem, cerca de 15 anos, entrou para a cozinha para auxiliar e ao fim de três anos já era o braço direito do Sr. Sousa. Este cozinheiro, homem de boas maneiras, não lhe esconderia os truques de que habitualmente têm fama e faria dela uma cozinheira apreciada pela qualidade dos pratos confeccionados. Dentre estes, gozavam de especial fama o Cozido à Vasco Sanches, O bife à Espalha Brasas, O pica no Chão à Moda da Avó, O Arroz de Marisco à Marinheiro, Coelho à Caçador, Arroz de Pato Selvagem, Feijoada à Felícia e a Pá de Javali. Franklim, não esqueceu o nome do pai e da mãe, e atribuiu-o a dois pratos. As sobremesas homenageavam as irmãs e delas receberam o nome. Assim, Tarte à Gervásia, Torta à Camila, Morangos Ensopados à Inácia, Pudim com Vinho do Porto à Beatriz, Leite-creme à Filomena e Mousse de Chocolate à Aurora. As restantes sobremesas eram à base de frutos naturais.

Sem dúvida, um cardápio de respeito a que se juntava uma carta de vinhos variados e de excelentes qualidades.

Foi com este serviço esmerado, que o Espalha Brasas ganharia liderança na área da restauração.

Agora, com vinte e seis anos feitos, Franklim tem em vista casar e no seu horizonte está uma moça filha de emigrantes no Canadá, que conheceria num serviço de casamento servido no restaurante. Não a conhecia e à conversa com os pais que lhe elogiavam a qualidade do serviço prestado, a presença da moça fez-se por ele notar e até que se retirassem, Franklim jamais a perderia de vista, a ponto de na primeira oportunidade, lhe tivesse revelado vontade de conviver com ela, por algum tempo.

Chama-se a jovem emigrante Cidália e tudo o que soube acerca dela naquele dia não foi muito além da idade, quantos dias ainda ia estar antes do regresso ao Canadá, o que faz na vida, o que fazem os pais, se tem irmãos, enfim aquelas conversas de encher pneus, mas o suficiente para se perceber que entre eles algo de comum rolava. Franklim, cuja inteligência é inquestionável, percebeu que ela estaria no papo e daí pediu-lhe namoro, que ela aceitou.

Em traços largos, descrever Cidália no seu porte físico não dará para gastar muitas linhas. Tem 23 anos, estatura média-baixa, cabelos castanhos-claros, pele clara e uns bonitos olhos cinzentos, de gata siamesa. No resto não vai além de uma mulher normalíssima. Os olhos, na verdade cativam e parecem encandear. Talvez tivessem sido estes, que prenderam a atenção de Franklim.

Face ao modo como Franklim mostrou interesse no namoro, tudo levará a crer que irá ser tomado muito a sério. Da parte de Cidália sente-se gosto, ressalvando a hipótese de o casamento a consumar-se, a trazer de volta a Portugal, donde havia saído com apenas três anitos de idade. Esta mudança, com afastamento da família, amigos e hábitos enraizados de vida, fazem-na balançar na sua decisão de continuidade de namoro. Reconhece-se que não é fácil a mudança para ninguém e Cidália não escapa à regra, embora haja um indicador ou outro poderoso que a fazem sugerir continuidade. Sua mãe, especialmente esta, dá-lhe força e sabendo-se do peso que uma palavra materna tem, a margem de opção estreita-se para a jovem namorada. Ponderadas todas as questões, Cidália irá em definitivo dizer sim à continuidade.

Franklim, nas entrelinhas de palavras e pensamentos, percebeu que a namorada ainda tinha alguma reserva e foi-lhe dizendo que a haver casamento entre eles, o Canadá, a família e os amigos não iriam ficar distantes, porque ele nunca se oporia às visitas até ao continente americano, sempre que o desejasse.

Franklim é um jovem com rara dinâmica e ideias, que enraízam na educação recebida do pai e que ele potenciou, graças a uma indomável ambição. No seu subconsciente, está e estará sempre presente a figura do pai e a expressão lapidar e mais marcante dele ouvida, que dizia: o negócio é para homens de barba rija e este menino não engana… Esta frase acompanhá-lo-á toda a vida como compromisso de honra. A sua mente avassaladora congemina-lhe os mais audazes sonhos e daí à materialização, apenas um ténue fio os separa. Só Cidália nunca havia entrado nesses sonhos, mas agora não sai deles e de tudo ou em tudo o que pensa, não a omite. O namoro ainda está nos seus primórdios e já Franklim o olha como facto consumado. Ainda antes de regressar ao Canadá, já Cidália levará consigo o pedido em casamento.

Na verdade, Cidália veio passar férias e assistir ao casamento da prima Deolinda e na bagagem de regresso leva sonhos que nunca havia pensado. É palpável o empenhamento de Franklim no namorico, e os futuros sogros disso irradiam alegria. Estes, entre eles trocam palavras de satisfação com a sorte da filha e prometem apoiá-la em tudo o que necessitar.

- Já viste homem, como são as coisas! Viemos ao casamento da nossa sobrinha e a Cidália nem queria vir e agora regressa noiva!!!

- É verdade Inês! O que são as coisas…a sorte da nossa filha na terra donde saiu… e nós fomos procurá-la tão longe. Quem sabe, também não regressaremos a ela…

- Não confundas as coisas Julião. O destino não se traça, acontece, e o da nossa filha já poderia estar escrito nas estrelas quando de cá saímos, para o Canadá…

- Não acredito no destino, mas até parece que existe…

Este breve diálogo, de pais babados com o provável destino da filha, irá ter muitas mais ocasiões de se repetirem. Inês e Julião encarregar-se-ão de publicitar em terras do Canadá, diante de vizinhos e amigos, o noivado de Cidália.

Aproximam-se os últimos dias de permanência de Cidália em Portugal e particularmente em Prozelo, a terra que a viu nascer há vinte e três anos. Os namorados irão degustá-los e para isso Franklim tirou uns breves dias de férias para poder estar bem junto da namorada e lhe falar de projectos futuros que tem para as suas vidas. Disse-lhe que fazia todo o gosto em que se casassem dentro de um ano e que a pensar nisso, tem em ideia equipar já de imediato o espaço que havia destinado à pastelaria e salão de chá. Disse-lhe que gostaria que fosse ela a gerir esse ramo de negócio porque, dizia ele, lhe parecer um tipo de negócio vocacionado para ser gerido por uma mulher. Ao ouvir estas palavras, os olhos de Cidália pareceram redobrar de brilho, pela sugestão. Franklim não se ficou só por estas informações e foi adiantando que o sonho maior dele é construir de raiz um Hotel e uma Albergaria de luxo. Estupefacta com a ambição do namorado, a Cidália tudo lhe parece mais que um sonho e em boa verdade, acha ousadia a mais. Disso deu conta a Franklim, que riu pela desconfiança e disse-lhe que essa desconfiança lhe vinha do facto dela ainda não o conhecer.

No seu íntimo, Cidália sente-se com vontade de abraçar o projecto tornado público pelo namorado e cresce nela o desejo de que o casamento não se protele para além do que Franklim lhe anunciara. As dúvidas quanto ao futuro, com casamento a passar por Portugal, parecem estar definitivamente esbatidas. Disso irá dar parte aos pais e posteriormente aos familiares e amigos logo que chegue ao Canadá e muito particularmente à cidade de Vancouver, terra que a recebeu há vinte anos.

Cidália acabara recentemente um curso médio na área de contabilidade e de momento estava a fazer estágio num gabinete de consultores financeiros. Tudo levava a crer vir a ter um emprego com largo sucesso na área para a qual dizia, sentir vocação, mas que um convite de casamento acabaria por subverter.

No próximo fim-de-semana Franklim vai promover um jantar de despedida e para tal quer apresentar à mãe e irmãs e a alguns amigos mais íntimos, a namorada. Os pais de Cidália andam eufóricos com o momento que a filha está a viver e disso deram parte a Franklim quando mostraram desejo de que o encontro seja todo filmado, porque o querem mostrar no Canadá aos dois filhos que não vieram, às pessoas amigas e aos colegas da filha. Ao ouvir este desejo dos futuros sogros, Franklim de imediato ligou ao Estúdio Pelicano, com recomendação de que lhe enviassem o Eduartino, por ser considerado o melhor fotógrafo, para fazer a cobertura da filmagem, ao jantar. Este vai ser uma oportunidade para Franklim revelar publicamente o namoro e para isso, dentre os convidados destacam-se o casal Antunes, em quem depositou a honra de discurso.

Os Antunes são amigos dos Sanches desde há muitos anos e uns dos que mais sentiram a morte de Vasco. Franklim sempre os teve em consideração, mas após a morte do pai cresceu essa estima em virtude de relatos ouvidos da boca deste velho amigo, que do pai lhe tecia os mais rasgados elogios. Aliás, até lhe recordava um acontecimento em que lhe havia emprestado uma larga importância de dinheiro e nem um papel tivessem preenchido, porque dizia ele, a palavra do pai valia ouro. Sem dúvida que a escolha de Antunes tem o mérito de uma amizade que vem muito de trás.

O jantar está aprazado para se iniciar às 20.00horas, contudo Franklim recomendou aos participantes para que aparecessem com uma hora de antecedência com o objectivo de se fazerem as devidas apresentações, trocarem conversas, relaxarem e muito especialmente para Cidália e pais se integrarem no núcleo familiar e de amigos do jovem namorado.

Franklim apresentou-se formalmente vestido, com roupas de marca e calçava ténis. A D. Felícia, sua mãe, ainda guardava sinais de viuvez no traje e no semblante e as irmãs, todas já casadas, eram acompanhadas de maridos e filhotes, as quais se apresentavam discretamente bem vestidas, nelas sobressaindo o arranjo de cabelos. Cidália, a princípio algo tímida, foi ganhando à-vontade e meia hora depois das apresentações já parecia desinibida e sempre de mão dada com o namorado. Cidália estava particularmente bonita, como sempre acontece nestas ocasiões. O seu ponto forte, os olhos estavam cuidadosamente maquilhados, com ligeira sombra e abundante rímel a dar alongamento às pestanas. Quanto ao resto, estava discretamente cuidada.

Julião e Inês quedavam-se junto da futura sogra da filha e do casal Antunes.

Estes, cuidaram de enaltecer as qualidades de Franklim como homem, como empresário de sucesso e superior ambição, que os pais de Cidália corroboravam com acenos afirmativos de cabeça. Os amigos do noivo convidados resumiram-se a quatro, que ele guarda desde os tempos da escola básica, a saber Tiago, Rui, Rogério e Vera Lúcia.

Os namorados e os quatro amigos, depois das apresentações encetaram animada conversa e entre eles lembravam passagens desde a infância até ao final da juventude. Neste grupinho destacava-se Vera Lúcia, que revelava desmedida satisfação e que protagonizava os principais relatos de infância, que os seis aplaudiam vibrantemente. Num desses relatos dizia ela:

- Ó Franklim, ainda te lembras de termos brincado aos casados atrás do muro da escola…Deveríamos ter à volta de nove anos…O Rui também queria e eu não deixei…?

Franklim não estava a contar ouvir este relato e sentiu-se algo constrangido e menos à vontade. Tossiu para se acalmar e disse:

-Para te falar a verdade, só tenho uma vaga ideia e nem sei ao certo se foi como dizes…e riu-se.

Cidália, sentiu um rubor de faces e olhou o namorado com sorriso e disse:

- Estou a ver que a Vera Lúcia foi a tua primeira namorada…

Todos riram deste aparte e a conversa seguiria dentro de ambiente de boa disposição e camaradagem.

Finalmente é servido o jantar. A disposição na mesa fez-se com Franklim e namorada lado a lado, o casal Antunes ocupou os lugares em frente, os familiares e amigos a ocuparem os lugares sem critério definido.

O jantar teve um discurso breve de apresentação e agradecimento pela presença dos convivas por parte de Franklim, o qual estendeu o agradecimento à namorada, findo o qual se iniciou, tendo como som de fundo valsas interpretadas por André Rieu, e cuja abertura se fez com o tema romântico Romeu e Julieta que ajudaram a dar uma ambiência sonora muito agradável e sugestiva para o momento.

Este convívio duraria até próximo da meia-noite e no intervalo que antecedeu o serviço de sobremesas, o Sr. Antunes pediu para usar da palavra e fez um improviso tocante, sobretudo quando aflorou a memória de Vasco Sanches. A selecção das palavras escolhidas e o modo, fizeram com que a D. Felícia não segurasse as lágrimas. Aliás, o Sr. Antunes, um ex-delegado de informação médica já aposentado, tinha raro poder de manobrar os sentimentos pela palavra e sabia-o como ninguém. Quando se referiu a Franklim, abordou o discurso com encómios ao jovem, sublinhando-lhe a educação recebida de pai e mãe, a dinâmica empresarial e a ambição. Cada adjectivo usado era acompanhado por um olhar firme nos olhos de Frank, como ele o tratava, como que a dizer que sabia do que falava. Cidália em cada adjectivo que o Sr. Antunes usava, olhava o namorado com sorriso. O final do discurso foi sublinhado com aplauso demorado e convicto a que os namorados agradeceram com sóbria vénia, para logo a seguir se beijarem discretamente.

No dia seguinte Cidália e pais regressariam ao Canadá, tendo deixado convite a Franklim para uma visita, logo que possível. Ao certo, ficou a certeza de que Cidália voltará daqui a três meses.

Nas bagagens levaram sonhos, muitos sonhos, especialmente a jovem namorada. Os pais, além de sonhos também levaram cópias das gravações em vídeo e DVD que Eduartino havia filmado, para oferecerem às pessoas mais amigas ou para visionarem em casa. No trabalho, Cidália ainda não sabe muito bem como dar a notícia. Está há alguns meses a trabalhar para a sociedade de consultores financeiros e do que consta, brevemente passaria para o quadro de efectivos. Mas a verdade é que não pode deixar de lhes anunciar a demissão do lugar e a melhor maneira que encontrou para o fazer foi através do visionamento das imagens gravadas em DVD, o qual testemunha inequivocamente quais as suas razões para a demissão. Esta não ocorrerá de imediato e dessa intenção também quis dar parte, apontando-a para dentro de um ano. Pediu aos responsáveis para que aceitassem os seus argumentos e disse-lhes que é oportunidade a não perder porque teria encontrado o homem certo para ela, embora lhe custasse muito a deixar os colegas, amigos e família.

Depois de visionado o DVD, os colegas ora a abraçaram ora a beijaram, tendo-lhe desejado toda a sorte. Questionaram-na acerca do modo como as coisas aconteceram, ao que ela respondeu com a naturalidade com que os imponderáveis presenteiam as pessoas. Pediu dispensa de duas semanas, para daí a três meses poder voltar a Portugal para começar a preparar atempadamente o casamento.

Quem está verdadeiramente empenhado nele é Franklim e para que nada falte, pediu o envolvimento das irmãs, as quais se comprometeram a fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para que a festa de casamento também possa ser um momento para lembrar o pai, o qual por certo, muito gostaria de poder ver o seu dilecto filho casar-se.

Franklim está a pensar ir ao Canadá ainda antes da namorada voltar e com esse intuito irá programar a sua vida. Sabe que não o poderá fazer por uma temporada muito grande, contudo quer no mínimo estar por lá duas semanas. Tendo em consideração o tipo de negócio explorado, tornou público na imprensa local, o encerramento para férias. Nunca o Espalha Brasas havia encerrado para férias e a clientela menos avisada, questionava-se acerca das razões. Uns alvitravam que talvez Franklim quisesse passar o negócio, outros que se teria chateado com as irmãs e que se teria afastado para esquecer e até havia uns mais radicais que diziam que devido às obras de renovação, estaria a dever muito dinheiro ao banco ou ao Sr. Antunes, habitual financiador do falecido pai, e que estaria em dificuldades para pagar. Enfim, alvitrava-se consoante a fantasia de cada um.

Aos ouvidos de Franklim chegavam toda a onda de boatos forjados na imaginação dos seus clientes e disso ria, levando-o a manter reserva à divulgação das razões para as inusitadas férias.

Entretanto os dias aproximam-se e Franklim resolveu surpreender Cidália com um telefonema onde lhe dava parte de que dentro de breves dias estariam novamente juntos. A namorada nem queria acreditar no que ouvia mas o seu coração encheu-se de tanta felicidade que os colegas do trabalho se aperceberam e a interpelaram.

- Que se passa contigo Cidália, para tanto contentamento?

- É o meu gato …

- Que tem o gato? Estava perdido e apareceu?

- Não. Muito melhor.

- Ganhaste dinheiro na lotaria?

- Melhor ainda. Meu namorado telefonou-me a dizer que chega dentro de dias…

- Hummmmmmmmm. Vai-no-lo apresentar?

- Claro. Farei uma recepção merecida ao meu Gatinho e vocês serão convidados…

- Ok. Pela nossa parte tudo faremos para o recebermos bem. Como é ele?

- Aguardai. Já falta pouco tempo.

A resposta de Cidália não deu margem para que continuasse a ser bombardeada com perguntas, que se adivinhariam cada vez seriam mais indiscretas.

Em Portugal ultimam-se os preparativos, fazem-se algumas recomendações importantes à mãe e à irmã Gervásia, no sentido de deixarem alguns aparelhos desligados à excepção das arcas frigoríficas e de acompanharem de perto a correspondência vinda pelo correio e muito especialmente terem o cuidado de pagarem a electricidade e a água, a tempo e horas.

A mala de viagem leva o mínimo indispensável para o período de duas semanas e já está fechada. Amanhã de manhã, pelas 07.00 horas, levantará voo o avião que o levará a Vancouver com escala em Londres e Toronto e que ao fim de infindáveis 16.00 horas de viagem, o coloca junto da namorada.

Serão estas a horas mais difíceis que a sua vida terá e ainda mais por o baptismo de voo ser assaz ousado. A esperança é que tudo decorrerá com normalidade. Para acalmar e ajudar a passar o tempo, levará dois livros de pequeno formato para leitura, a saber; Cão Como Nós, de Manuel Alegre e A Cavalo No Diabo, de José Cardoso Pires.

A leitura funcionará como sedativo e muito particularmente a de Cão Como Nós, pela descrição da semelhança de comportamentos que o autor encontrou entre os humanos e os caninos. Surpreso pela forma como o autor abordou a comparação, soltava sorrisos que os passageiros mais próximos se apercebiam e do qual se sentiu inicialmente envergonhado, quando deu por isso. Foi-se sentindo à vontade à medida que o tempo passava e os olhares indiscretos se haviam desviado. O Final da leitura deste livro coincidiu com o aviso aos passageiros de que dentro de alguns minutos iriam aterrar em Toronto, para fazerem escala.

Finalmente em terras Canadenses, mas ainda a algumas horas do desejado momento, Franklim aproveitou para desentorpecer as pernas nas duas horas de espera para a ligação a Vancouver, comer algo e ainda para telefonar à namorada. Falou-lhe da viagem e da provável hora de chegada, que apontará para muito próximo da meia-noite ao que Cidália respondeu: que as próximas horas lhe parecem infindáveis e que as conta minuto a minuto, com ansiedade nunca antes sentida, mas que tudo irá decorrer com normalidade. Despediram-se com um até já.

Aproximava-se o retomar da viagem e Franklim estava visivelmente nervoso pelo modo como levava os dedos à boca e mordiscava as unhas. A leitura de, A Cavalo No Diabo foi o modo encontrado para se libertar da tensão, ainda maior à medida que a viagem tende a chegar ao termo.

Quatro horas depois já sobrevoava os céus da província da Colúmbia Britânica e junto ao Pacífico lá estava a aguardada cidade, terra adoptiva por duas semanas. A abordagem à pista é feita com céu limpo e tempo seco e algo frio para as temperaturas a que estava habituado, mas nada que arrefecesse o coração ardente, a este jovem apaixonado.

Parado o avião, os nervos de Frank retomaram o seu lugar e a calma e os olhares perscrutadores buscavam Cidália na multidão, que aguardava os passageiros.

Fora, e junto à gare, Cidália acenou com um adeus logo que vê o namorado sair a porta do avião e o coração iniciou cavalgada palpitante na busca de se serenar num abraço bem apertado e num prolongado beijo. Junto a si, os pais e os dois irmãos aguardavam tranquilamente que os namorados se soltassem de tão esfuziante gesto afectivo, para discretamente o cumprimentarem.

Cumpridas as formais saudações, os namorados deram as mãos e depois de uma breve conversa entre todos, seguiram a caminho de casa, os namorados a sós no Volkswagen Golf cinza claro, de Cidália e os pais e irmãos num Toyota, já velhinho, conduzido pelo irmão mais velho.

Chegados a casa, tomaram chocolate quente para aquecer da noite gelada, conversaram algo mais e respeitando o cansaço da viagem de Frank, deitaram-se cedo, com o quarto de hóspedes à espera do anfitrião.

A manhã do dia seguinte começaria tarde para Franklim por o sono não o ter despertado da fadiga e ainda pela mudança de fuso horário. O seu primeiro dia em Vancouver foi feito ao correr do improviso de Cidália e os próximos dias seriam programados de modo a Frank tirar todo o prazer possível de escassas duas semanas de permanência. Neste particular, Cidália lideraria um conjunto de sugestões que muito agradariam ao seu apaixonado namorado.

E para começar a panóplia de visitas e viagens Cidália levou o namorado a conhecer o porto de mar de Vancouver, o segundo maior na costa do Pacífico, no continente americano e que o deixou extasiado pelo colossal movimento de entrada e saída de navios de grande calado. O regresso fez-se com uma ida a um restaurante de gastronomia Japonesa, para degustarem o típico sashimi, que Franklim nunca havia comido, por não entrar nas tradições gastronómicas portuguesas o peixe cru. Ficou a gostar e promete introduzir no cardápio do Espalha Brasas. O dia seguinte acordou com sol a prometer um dia óptimo para uma longa viagem e Cidália levou o namorado a conhecer as Montanhas Rochosas, as quais foram amplamente admiradas e fotografadas. Esta viagem fez-se de comboio, o meio de transporte mais romântico e adequado para lá chegar. Deste passeio se guardarão inolvidáveis recordações e as muitas fotos que perpetuarão a ternura a que ambos se entregaram. Os registos fotográficos e os pequenos vídeos foram vistos e revistos no menu review. A cada visionamento correspondia um gratificante beijo.

O dia seguinte fez-se com uma visita à capital provincial de Columbia Britânica, a cidade de Vitória, conhecida como a capital mundial do salmão. Ao almoço, comeram exactamente salmão fumado, em consideração ao título da urbe. De tarde, fizeram uma visita pela zona marginal para conhecerem as praias. O dia seguinte seria destinado a um passeio conjunto com os futuros cunhados até às margens do Rio Campbell, para uma pescaria ao salmão e que diga-se, decorreu melhor do que o esperado em função das expectativas antes tidas.

Fascinado com as viagens, Franklim disso deu conta à namorada, a qual, embevecida pelas palavras que lhe enalteciam a programação da viagem, rematou dizendo:

- Isto ainda não é nada, meu amor. O melhor ainda está para vir…

- Sério? De ti só poderei esperar belos momentos… Acredito que tenhas surpresa bem guardada e da boa…

- Tenho uma surpresa e não é pequena. Queres saber?

- Pois não… Quem não gosta de surpresas?

- Então aí vai: amanhã partiremos só nós os dois para uma semana de férias e que será a nossa primeira Lua-de-mel…

- Oh, surpresa maior e melhor não poderia haver…

Os olhos de Franklim esbugalharam-se de excitação e num brilho estrelar projectaram-se em Cidália. Olharam-se fixamente e selariam este breve diálogo com um beijo de amantes pré-nupciais a fazer antever que entre eles a palavra amar se conjuga no presente e na primeira pessoa e que jamais será palavra vã.

No dia seguinte partiriam engolindo quilómetros e mais quilómetros, rasgando o Canadá em latitude e longitude, deliciando-se com a vastidão das maravilhas naturais de que este país imenso é pródigo. O primeiro destino escolhido levá-los-ia às alvas e gélidas terras mais setentrionais da Colúmbia Britânica onde os corações se haveriam de esquentar por uma paixão sem limites. Aí mesmo e depois de visitados alguns lugares onde puderam estar quase em contacto directo com alguma fauna característica destas regiões, regressariam ao Ice Hotel para jantarem, observando pelas vidraças o nevão que em final de dia se adivinhava abundante, pelo frio seco que entretanto se fazia sentir.

No final do jantar tomaram o caminho do quarto e enquanto os farrapos de neve engrossavam o manto branco, os corações fizeram os corpos ressuarem e fumegantes saciaram-se de um desejo que já se arrastava há algum tempo. Consumado o desiderato maior de bons amantes, com os corpos tangidos por um querer nascido de um amor à primeira vista, quiçá o mais bonito de quantos os corações recordam e após uma noite inolvidável em que os amantes deram liberdade a ais, gemidos, sussurros, abraços, beijos, orgasmos e olhares e esvaziados destes até aos limites, buscaram provisão em mais um bonito dia de passeio com deslocação à província de Alberta, a rainha das pradarias.

Assim seriam todos os dias e cada dia, até ao final das férias e regresso a casa.

O penúltimo dia de estada de Franklim no Canadá serviria para Cidália o apresentar aos colegas e amigos mais íntimos num jantar, que decorreria discretamente num restaurante português com o inevitável bacalhau a servir de ingrediente nos diversos pratos apresentados. Assim, o buffet livre ao dispor dos comensais, em que o bacalhau foi rei, nomeadamente o bacalhau com natas, bacalhau de empadão, bacalhau espiritual, bacalhau à Margarida da Praça, Bacalhau à Narcisa e bacalhau à Zé do Pipo, foram iguarias nunca comidas e que fizeram questão de deixar elogio no livro de visitas, com promessa de regressarem.

Os vinhos servidos, também provenientes de Portugal com predominância na região do Alto Alentejo e particularmente da zona de Portalegre e Évora, ajudariam a abrilhantar o repasto. As sobremesas, desde a tábua de queijos de ovelha aos doces conventuais, fizeram o encerramento.

No final, a esposa de Sir. Alex, patrão de Cidália, fez breve discurso de boas vindas e em nome de todos, desejou aos namorados, felicidades. Cidália encarregava-se de traduzir o discurso, que Franklim agradeceria com discretos acenos de cabeça. Dizia ainda Mrs Mary, que não iriam perder uma colega, mas ganhar um amigo.

Quando Cidália se aprestou para pagar o jantar, foi-lhe dito pelo proprietário, o Sr. Jack Monteiro, um Luso-Canadiano, que o mesmo estava pago, tendo de seguida os seus olhos ficado marejados pela emoção que a invadiu. Este gesto dos colegas e amigos testemunhariam amizade e reconhecimento pelo trabalho desenvolvido na empresa e pela formação e personalidade irrepreensível de Cidália. Desta atitude, Franklim iria guardar reconhecimento e a certeza de ter escolhido para ele, uma namorada de reconhecido valor profissional e pessoal.

O último dia de estada de Franklim em terras do Canadá, revestir-se-ia de alguma tranquilidade que ele aparentemente saberia gerir, não se podendo dizer o mesmo de Cidália, que aqui ou ali, especialmente quando só, soltava lágrimas por trás de portas, que os seus olhos avermelhados não deixariam disfarçar. A mãe confortava-a e dizia-lhe que dentro de três meses se voltariam a ver e que o tempo passaria bem mais depressa do que pareceria. Ao ouvir as palavras sábias e serenas da mãe, encontraria o conforto e a tranquilidade que a sós não conseguiria controlar.

Neste dia, os futuros sogros assumiriam a “despesa” da despedida e todos foram almoçar fora, num restaurante chinês, dos muitos que há em Vancouver.

Às 19.00 horas estará marcado o regresso a Portugal, com chegada prevista por volta do meio-dia. As malas ficariam arrumadas de véspera e numa delas, Cidália deixaria escrito numa folha, um poema e na outra, teria colocado um ramo de rosas vermelhas. O poema deixado, sob o título Partiste, dizia:

Partiste e eu aqui ficarei

Tão triste, chorando o amor

Que sempre a ti dediquei.

Agora só, soltar-se-á a dor

Que, por força da tua ausência,

Jamais algum dia conseguirei evitar

Por uma tão grande impertinência

De não saber, a saudade aguentar.

Beijo do fundo do meu e teu coração

Cidália Ribeiro