O ESPALHA BRASAS - VII PARTE

D. Felícia, estava visivelmente tomada de ansiedade que, o ramo de bonitas estrelícias, mescladas com botões de rosa testemunhavam, no modo como eram aconchegadas e apertadas contra o peito e tombadas sobre o coração, como que a sentir-lhe ou a acalmar-lhe a palpitação. O filho, em indisfarçável acalmia, com o pensamento levitando entre Cidália e Julieta, ora se sentava junto da mãe, ora se levantava e caminhava cabisbaixo, ora se dirigia amiudadas vezes aos sanitários. Vezes havia que roía as unhas, tendo a mãe observado e dito:

- Que se passa contigo? Pareces mais nervoso do que eu…

- Estes momentos, são sempre para mim de alguma angústia, de alguma ansiedade e raras vezes sou capaz de o disfarçar. A aterragem do avião, é uma manobra que representa alguma perigosidade, a que os passageiros nem se dão conta e, daí, muito do meu estado de espírito presente.

- Eu nunca viajei de avião. Para mim, aterragem ou descolagem, é sinónimo de medo. Gosto de sentir o chão que piso…não fosse isso, e já teria ido também ao Canadá. Por isso, percebo agora o teu nervosismo.

Franklim, daria airosa desculpa para a sua verdadeira preocupação, não sem ter convencido a mãe, a qual, pela leitura antecipada ao seu comportamento, fez de conta…

Ao fundo e ao alto, o som dos motores do avião, alertava para a proximidade. Os olhos de Felícia irromperam como fachos, como que orientando a rota para a aterragem perfeita. Este angustiante momento estava a chegar ao fim e quando após a imobilização do avião, as portas se abriram, D. Felícia, já em bicos de pés, descortinou a nora, olhou o filho e disse:

- Finalmente… Estes dias, ainda que breves, me pareceram uma eternidade. Então a ti, é que te deviam parecer dias infinitos, não Franklim?

- O quê? Desculpe, não percebi…estava noutra onda.

- Não percebeste! Não falei chinês…Noutra onda? Então, onde estavas com a cabeça? Bem me parece que não passas…

- Não passas o quê?

- Que não passas bem…

- Nada disso, mãe. Sou um homem muito ocupado e a minha cabeça estava longe.

- Longe… (risos).

- Coisas de homem de negócios, minha mãe…

- Nem no dia de hoje! Toma o ramo das flores e surpreende a tua mulher. Ela merece tudo. Que se pode pedir a uma mulher, que ela não tenha? Uma mulher limpa, asseada, educada e só tua, só tua…Depressa esqueceste a conversa havida há pouco tempo e do significado das tais “futilidades”… Nela, só uma coisa me entristece: não a vejo dar-me netos…

Franklim, ignorando estes comentários, dirigiu-se à esposa, entregou-lhe o ramo de flores, deram um prolongado abraço e finalizaram num beijo discreto. A sogra, saudou Cidália e preocupou-se em fazê-lo mais discretamente que o filho, para sobrelevar o cumprimento trocado entre eles.

D. Felícia, ante confissão de amor de Franklim pela nora, deixa para si uma reserva que, lhe vem de apurado e atento sentido, a pormenores de comportamento do filho, de que nem o próprio, se dá conta. Ela tem um carinho muito especial pela nora e investirá tudo na ligação permanente entre eles. Cidália, não sabendo o porquê de tanta deferência, tem-na como normal, para um amor de mãe. O tacto de D. Felícia, assente em muitos anos de vivência, será um trunfo que usará para “resolver” hipotéticas questões familiares ou apenas para as evitar. Nesta perspectiva, deixou que o jovem casal vivenciasse a recepção.

D. Felícia, pela simpatia dispensada à nora, teve o cuidado de avisar Gervásia de que era sua intenção presenteá-la com uma recepção condigna que cimentasse a relação de amizade e integração da nora, no seio da família. Para tal, pediu à filha que preparasse para o jantar uma chanfana, canja de faisão e de sobremesa, peras bêbadas e pudim Abade de Priscos. Nos vinhos, recomendou-lhe que a surpresa fosse ainda maior e um Tapada de Chaves 2004, abrilhantaria a bonita e suculenta mesa. Da conversa trocada previamente entre mãe e filha, Gervásia fez chegar a Julieta a intenção da D. Felícia, a qual, formulou vontade cooperante, reforçada na amizade e apreço para com Cidália.

Franklim, não foi sabedor da intenção da mãe, conforme vontade desta e a surpresa da confraternização, chegou até ele. D. Felícia pretendia impacto e paternidade na recepção. Para ela, era importante a proximidade à nora. Nela, via muito de si. A pessoa da nora, fá-la-ia recuar nos tempos e ajudá-la-ia a recordar o seu passado. Diz o provérbio: recordar é viver e D. Felícia, na nora rebobina o seu passado de jovem e amada esposa, com os inconstantes sobressaltos que um casamento ainda jovem levantaria. No filho e nora, via muito do seu passado. O filho, no papel de Vasco Sanches e a nora, no seu próprio, cuja afirmação amorosa viveria titubeantes momentos, marcados por um reminiscente amor de Vasco com uma ex-colega de escola, chamada Idalina e que durante algum tempo, direi anos, seria a sombra negra de Felícia. A velha mãe, sabe da amizade entre Franklim e Julieta e intuitivamente, teme pela instabilidade do casamento do filho com Cidália. O seu passado, não está esquecido e rejeita para a nora o sentimento que durante alguns anos a acompanhou, mesmo na certeza de ser uma mulher amada por marido apaixonado. O seu sentimento exacerbado de posse, fazia-a sentir um oculto ciúme que, a fragilizava. Nunca o passou ao marido e nem este estava interessado em tomar conhecimento dele, pela voz da esposa. Sentia que havia dias que a mulher estava diferente mas, fingia não perceber, por estarem identificadas as causas. A sua própria vivência, quer pô-la discretamente ao serviço da nora, sem que passe a ideia de interferência na vida a dois. No regresso a casa, ligou à filha e fez-lhe uma pergunta lacónica:

- Está tudo bem por aí?

- Sim, está. Tudo decorrerá conforme previsto…

- Está bem. Nós também estamos bem. Cidália chegou feliz. Estamos a caminho. Até mais logo. Beijos de todos nós.

O telefonema serviria apenas para fazer o ponto da situação e não objectivamente para falar de Cidália.

Pouco mais de uma hora depois, chegariam a casa. A recepção de cumprimentos fez-se e Cidália pediria licença para ir mudar de sapatos e aliviar os pés do cansaço, tendo a sogra recomendado que não demorasse, com o argumento de poderem conversar, relaxar e saborear a sua presença. D. Felícia, enquanto aguardava a nora, deu uma saltada à sala de jantar e rejubilou com o aparato da mesa que, se apresentava enfeitada com um bonito centro, a qual testemunhava a presença das mãos hábeis e experimentadas de Gervásia e Julieta, onde pontificavam dedicatórias pessoais, destacando-se entre elas, a escrita por Julieta e que dizia: Só na ausência, sabemos o quanto gostamos de alguém.

No final da escapatória, para visionar a mesa, D. Felícia iria buscar a nora e encaminharam-se para a sala de jantar, onde os comensais, as aguardavam. Deu-se início ao repasto e Cidália notou a ausência da jovem cozinheira, a qual se havia afastado para a cozinha a fim de permitir que a família privasse em absoluto. Cidália, em seu nome pessoal, solicitou a sua presença e consequentemente recebeu o aplauso de todos os presentes, os quais se desculparam como uma falha, por distracção. As conversas divagaram e cruzaram-se em temáticas ora banais, ora mais sérias. O ambiente geral, esteve óptimo de princípio ao fim. Cidália, fez os agradecimentos pela recepção e pedindo desculpa aos presentes, permitiu-se particularizar algumas palavras. A primeira referência, fê-la à pessoa da sua sogra, D. Felícia, a qual, ora cabisbaixa, em posição reflexiva, ora olhos nos olhos, deixou transparecer contentamento pelas inesperadas e improvisadas palavras de gratidão e afecto, soltando preguiçosas lágrimas de comoção. A segunda referência foi direitinha para Julieta, por tudo quanto fez pela exemplar qualidade de apresentação da mesa e pelo modo empenhado como na sua ausência se disponibilizou para cuidar do marido. A seu lado, Franklim, enquanto ouvia estas palavras, acenava discretamente a cabeça em sinal de que também partilhava das palavras proferidas pela esposa, enquanto D. Felícia não se entusiasmava, embora tivesse aplaudido o discurso. Franklim aplaudia com os olhos na mulher, por não os poder levar até Julieta. O momento, exigia-lhe redobrados cuidados e mais ainda porque a mãe lhe havia falado do apurado sentido que as mulheres têm para perscrutar coisas…e à mesa, as mulheres eram várias, sendo que duas delas, mãe e esposa, eventualmente estariam com os sensores mais activos.

O jantar, confirmaria a simpatia em que Cidália é tida no seio da família e colaboradores. Dentre estes, Julieta tem um lugar cativo no coração de Cidália, de modo que além das palavras antes proferidas ainda lhe falou que precisava de ter uma conversa particular com ela, ao que Julieta, sem esboçar qualquer alteração emocional, respondeu: nós não iremos ter uma conversa particular mas, muitas. Ao ouvir, este singelo diálogo das duas jovens mulheres, Franklim corou e percebeu que a mãe estava com os olhos nele, a perscrutar-lhe os tais sinais, que só são visíveis, graças à apurada sensibilidade da velha senhora. A mãe, conhecedora da personalidade do filho, como ninguém, irá interpretar os alertas que lhe chegam, sem alaridos, mantendo-se discretamente vigilante, de modo a que, o filho, a nora ou Julieta, jamais se sintam constrangidos.

O ruborizar das faces de Franklim, serviria para um comentário humorado da mulher:

- Olhem só, como o meu marido está coradinho…Os vinhos do Alentejo e muito especificamente, o Tapada de Chaves, a fazer efeito…

Franklim, esboçaria apenas um sorriso e nada disse, com receio de embargar a voz, por algum nervosismo. Franklim, faz uma gestão das palavras, pelo medo. Os fantasmas e a dificuldade para gerir as emoções, as novas emoções vividas e subconsciencializadas, fragilizaram-no. Animada de boa disposição, Cidália, acrescentaria:

- Deu para perceber que nada lhe teria faltado na minha ausência e neste particular, agradeço a Julieta tudo quanto fez por ti e mais, - se eu te morresse, nem notarias a minha falta, tendo soltado estridente gargalhada.

Julieta e Franklim, olharam-se e, ela mais desinibida do que ele e com melhor controlo emocional, retorquiu:

- Ninguém consegue substituir a mulher amada. A Cidália tem um lugar especial no coração de Franklim e eu apenas fiz o que me competia fazer e a seu pedido, de contrário, não o ousaria. Continuou, embora nos conheçamos há mais tempo, do que vocês os dois, a nossa amizade é equidistante e respeitosa e agora que é homem casado, ainda mais essa obrigação, existe. Aliás, na certeza e confiança na minha pessoa, é que Cidália me recomendou que olhasse pelo marido na sua ausência, ou foi para testar a confiança depositada?

Perante esta argumentação, Cidália respondeu que a confiança não é coisa que se teste, porque ou existe ou não existe, e de mim para Julieta a confiança é total e, acrescentaria, já a conheço bem demais, para a honrar com a minha confiança.

Em silêncio, D. Felícia tudo ouvia e para si mesma, pensava: nem sempre o que parece é…Quem sabe, não terás um dia de emendar ou refazer todo o pensamento. A sogra, com a matreirice e saber de longa vida, promete a si mesma estar atenta a todos os movimentos suspeitos e indicadores de perversidade, na relação do filho com a cozinheira.

O sossego de alma de Cidália, ajuda-a a ser feliz e como o marido ainda não lhe deu azo a quaisquer suspeitas…

D. Felícia, depois de ouvir esta dissertação e testemunho de confiança da nora, achou por bem intervir, tendo dito:

- Claro que Julieta, é merecedora de toda a nossa confiança. Acho que estamos a discutir, o indiscutível. Se Julieta não nos merecesse absoluta e total confiança, não trabalharia nesta casa. Entre todos nós, existe uma amizade que nos garante todo o resto e ponto final.

Estas palavras de Felícia, vieram na hora certa e Franklim aplaudiu-as efusivamente, tendo descomprimido o coração e pacificado a consciência. Em Julieta, tiveram um efeito menos notado por ser possuidora de auto controlo emocional que a favorece, mesmo perante situações adversas.

Segura das suas competências e, quiçá, alguma ambição, pressente que os seus dias estão a chegar ao fim, no Restaurante Espalha Brasas. Jamais sente a energia anímica que até ao passado recente, se testemunhava inequivocamente em tudo o que fazia, até ao dia em que, Cidália, foi passar as últimas férias, ao Canadá. Para ela, nada será como dantes e a hipocrisia em que está a viver e de que Cidália ainda não deu conta e é vítima, não deverá subsistir face à coerência de princípios a que apela a sua consciência e postura de vida. Sabe que, mais tarde ou mais cedo, se continuasse a trabalhar para Franklim, algo aconteceria porque, sente que não conseguiria controlar-se e que o esforço que está a fazer para não indiciar paixão pelo patrão, seria impossível camuflar. Aliás, esta tem vindo a tomar contornos mais acentuadamente passíveis de visibilidade e neste particular, D. Felícia já recebeu sinais seguros, que a levam a encurtar a vigilância ao filho e à empregada. Tudo leva a crer que, o casamento de Franklim, em vez ter apagado a chama da paixão em Julieta, a incendiou e, depois de ter tomado conhecimento da dificuldade de Cidália, em engravidar, o sonho acalentado durante anos de vir a ser a mãe dos filhos de Franklim, agudizaram-lhe este sentimento. Julieta, por antecipação a um escândalo que a perda de racionalidade, identidade e individualidade, gerada pelo fascínio que a pessoa desejada e querida a possa conduzir pela paixão e da qual não se conseguiria ver livre, por não correspondida, pela razões óbvias, levá-la-á a apostar na fuga para a frente, numa clara demonstração da sua capacidade para encontrar soluções, mesmo nas situações mais complexas.

Julieta, sabe da tristeza que D. Felícia sente por a nora não lhe dar netos, sentimento este que chegou a Franklim. Em face disso, Julieta percebe que o patrão está fragilizado e pelo muito amor que tem à mulher e pela muita contenção que a si mesmo imponha, não conseguirá esconder o desejo de a possuir.

Julieta, está a viver momentos delicados e de decisões difíceis e entre sonhos e reflexões, ocorrem-lhe imensas saídas, sendo que a que está mais amadurecida, aponte para ela mesma se estabelecer com um restaurante, estrategicamente longe, para não fazer concorrência económica ao Espalha Brasas e mais importante do que isso, para não ter a presença física e diária de Franklim. Prefere sacrificar a sua paixão, apostando no adágio popular que diz: longe da vista, longe do coração. Estas reflexões, estão a tornar-se obsessivas e Julieta, vê-as materialmente como irreversíveis. Só lhe falta o timing para actuar. As questões relacionadas com dinheiro, localização e estudo de mercado, ocorrerão numa fase em que a cabeça serene e só depois de se tornarem definitivas, as que deram origem à radical mudança de vida. Agora, e depois desta consolidada, restar-lhe-á tomar a decisão mais difícil e que passará pelo anúncio do despedimento. Nesta fase, ainda não sabe ao certo como o fazer mas, não tardará a decidir-se. Julieta, é uma jovem mulher que enfrenta a vida, como aliás o tem feito desde a sua adolescência, testemunhada por audazes iniciativas que fizeram dela uma profissional, do melhor.

A próxima noite reservá-la-á para reflexão definitiva acerca do seu futuro e o travesseiro, por certo, dar-lhe-á a tranquilidade esperada.