O ESPALHA BRASAS - IX PARTE

Doravante, Cidália aproximar-se-ia ainda mais de Julieta e passaria a querer inteirar-se em pormenor sobre o projecto de vida futuro da amiga e colaboradora. Percebe-se que, por trás deste comportamento há boa-fé e sentido solidário. Disso não teria dúvida Julieta. Cada dia que passa, é menos um para Cidália gozar o prazer da companhia da amiga July. Sendo contemporâneas, partilhariam as mesmas memórias do tempo, não obstante terem crescido em continentes diferentes. Recordavam músicas ouvidas em jovens adolescentes, falavam das modas da época, desde o vestir aos penteados, das novelas que passavam na RTP e RTP Internacional, concluindo que as fronteiras transatlânticas não teriam sido impeditivas para a transversalidade destas correntes. Os meios audiovisuais encurtariam distâncias e quase em simultâneo, far-se-iam eclodir nos quatro cantos do mundo onde a civilização Judaico-cristã estava implantada.

No seu tempo de jovens, os telemóveis, os computadores e a Internet davam os primeiros passos e elas não tiveram oportunidade de os possuir, ao contrário dos jovens de hoje. Só a famosa caixa mágica (TV), já presente em todos os lares, haveria de contribuir para a primeira revolução cultural e de mentalidades, oferecida sem custos de manutenção. Estas coisas faziam-nas recuar cerca de quinze anos, não sendo muitos, representava mais de metade das vidas das jovens. Gostavam também de lembrar o aparecimento em força da fast food, Pizzas, do surgimento da cadeia Mcdonalds, das entregas domiciliárias de refeições, das grandes superfícies comerciais em todas as áreas de comércio, do self-service… Também lembraram o aparecimento dos CD e dos DVD, que marcaram o fim dos discos vinil e das cassetes, estes conhecidos, por ainda na casa dos pais existirem como relíquias. Gostavam de se maravilharem por terem nascido numa época de tecnologias tão avançadas, ainda que se questionassem sobre o lado mau que estas coisas também têm. Rematavam dizendo: é o mundo que temos, e a nós só nos resta tirar partido e bom uso destas novas funcionalidades.

Julieta sentia apoio para a aventura que havia interiorizado. Nesse sentido, recortou o anúncio inserto nos classificados do Jornal da Póvoa, que dizia: “Trespassa-se restaurante com boa clientela, bem localizado, renda baixa. Contacte telefone ou email abaixo, para marcação de visita. Motivo à vista”. Embora mal conhecesse a cidade da Póvoa de Varzim, sabia tratar-se de uma cidade muito procurada em período Estival.

Ora, como não podia deixar de ser, o anúncio era apelativo em todos os aspectos: boa clientela, bem localizado, preço baixo. O certo, é que nestas coisas, manter um pé atrás é conveniente, porque diz o povo e bem: “quando a esmola é grande, até o pobre desconfia”.

Julieta mostraria a Cidália o classificado e esta contaria ao esposo o conteúdo do mesmo e sublinharia também o forte desejo de conhecer essa realidade ou quiçá ficção. Franklim, após conhecimento do classificado, ele mesmo, depois de falar com Julieta, agendaria encontro com a imobiliária que tem em mãos o arrendamento ou trespasse do espaço. Os três dirigir-se-iam no dia e hora combinada até junto do número e rua indicado e pontualmente, lá estava o funcionário da imobiliária para fazer a apresentação e amostragem do restaurante. Os quatro acabariam por lá almoçar e os interessados puderam desse modo fazer uma avaliação do movimento registado.

Sem dúvida, que se confirmaria a boa clientela anunciada, mesmo no mês de Abril, um mês ainda sem os reflexos da época Estival. À primeira vista, dois dos parâmetros estavam aprovados: clientela e localização. Faltava discutir os valores do arrendamento ou trespasse e este só surgiria na fase final da prévia apreciação.

Julieta questionaria o mediador acerca dos motivos para o trespasse, sendo certo que os seus olhos constatariam um volume de negócios assaz motivador, a nada justificar mudança de mão.

- Minha senhora e amigos, disse o mediador: - o motivo que leva a que um negócio como este, aliás, como vocês puderam constatar, de altíssimo movimento, a desfazer-se, é o habitual, isto é: mete saias…

- Saias? Perguntou Franklim, fingindo não perceber.

- Sim, meu amigo… Um homem e duas mulheres nunca deu certo… - o proprietário deste restaurante, um ex-emigrante na Venezuela, de cerca de trinta e cinco anos, enroscou-se com a empregada da cozinha, uma moça em nada melhor que a sua mulher, e que, enquanto pôde camuflar o caso e mantê-lo longe da percepção da mulher, seriam felizes os três. Mas… como sabe, não é possível enganar todo o tempo. Há um dia que tudo falha e o telemóvel esquecido em casa, haveria de o tramar. As mensagens trocadas entre eles levariam à desconfiança da mulher que, diga-se em abono da verdade, é uma excelente senhora e ainda por cima muito bonita e de corpo escultural…A vida tem destas coisas…

Franklim pareceu gelar. Cidália, acrescentaria:

- No excesso de confiança depositado na empregada, pela esposa, poderia estar encontrada a explicação.

Julieta, conhecedora dos meandros de vidas partilhadas, aduziria:

- A confiança não explica tudo. Algo mais grave estaria por trás, que não nos interessa aqui e agora, abordar. É um assunto que nos passa ao lado…Viemos saber da nossa, direi da minha vida e a desses senhores, nada nos diz. Por isso, o que importa nesta hora saber é qual o valor do passe definitivo ou do arrendamento e demais condições.

Julieta, sabe que Franklim não é pessoa capaz de encarar com frieza e controlo emocional, situações como esta e não mostrou interesse em saber pormenores da desavença do casal proprietário. Conhecem bem demais a sua realidade, que no todo se assemelha ao que acabariam de conhecer. Por sua vez, Cidália por uma questão de curiosidade natural, ainda desejou alimentá-la, mas a atitude manipulatória de July, atalhando e cortando o fio ao pensamento, avançaria, argumentando que não eram da conta deles, conhecer pormenores de vidas mal vividas.

Entretanto, os valores iniciais do negócio teriam as habituais contrapropostas, sem contudo, houvesse acordo. Os números, deixariam calados e pensativos os interessados, por momentos. Franklim, daria sinal de olhos a Julieta e de seguida usaria da palavra, dirigindo-se ao mediador:

- Bom; hoje quisemos avaliar e conhecer de perto a realidade. Como compreende, não estamos em condições de dar uma resposta imediata. Iremos estudar o caso e uma vez que temos o seu contacto, logo que tenhamos algo decidido, daremos resposta.

Depois de ouvidas as habituais evasivas, o mediador expressar-se-ia:

- Oportunidades de negócio como esta, não ocorrem todos os dias. Os números avançados, embora sejam aparentemente altos, não o são na realidade. A facturação é boa, como puderam verificar e vocês não tiveram ocasião de a ver em época alta, de contrário, estou certo, fechariam negócio de olhos fechados.

Num comentário à parte, Julieta diria:

- E chama a isto bom preço?!

O mediador nada acrescentaria, à observação feita por July.

Despedir-se-iam, com promessa de se contactarem, após ponderação dos números.

Depois de conhecidas todas as condições, foram de parecer que se poderia tratar de um bom negócio. Cidália e Julieta, menos habituadas a este tipo de avaliações, revelar-se-iam menos optimistas, embora July confie no espírito empresarial de Franklim. Aliás, crente na certeza de um bom negócio, Frank adiantaria que a questão financeira não deveria ser intimidatória para Julieta, uma vez que ele e a esposa, lhe haviam feito promessa de apoio e que não voltariam atrás com a palavra.

- Claro que não, acrescentaria Cidália. – Isso nunca. A amizade não poderá fazer-se de palavras, mas de actos e nós, sabemos honrá-la.

- Isso nunca esteve em causa, diria Julieta. Sempre vos tive em grande carácter.

- Então que esperas? Avança, e o resto…nós cá estamos.

Ainda antes de regressarem, voltariam a ligar ao mediador e selariam contrato de trespasse na condição de iniciarem a exploração dentro de dois meses, para que apanhem o fluxo de clientela de Verão.

O restaurante trespassado é socialmente conhecido pela qualidade e bons preços praticados e o nome Maresia ficaria para sempre na memória dos clientes que sazonalmente o procuravam, contudo, Julieta achou que deveria alterar a sua designação social e dar-lhe um nome com cunho pessoal. Para ela, é fundamental a renovação, daí a escolha do nome: Brisa Atlântica.

Parte dos funcionários manter-se-iam e ainda recrutou outros da sua confiança. Um dos que foi recrutado era um barman experimentado, a quem foi cometida a tarefa de disciplinação de tarefas e inovação. Este funcionário havia desempenhado actividade por um período superior a dez anos na zona da Califórnia e Caraíbas, em navios de cruzeiro e posteriormente trabalhado em hotéis monegascos. A sua larga experiência, seria o garante de expectativas criadas. Este funcionário, de nome Casimiro, viria a ser o braço direito da jovem e audaz Julieta.

Na sequência da renovação do staff, seria também admitido um jovem que havia concluído um programa de desintoxicação de drogas e álcool, numa clínica da especialidade, a qual havia celebrado um protocolo com o “Centro de Emprego e Formação Profissional” para colocação de indivíduos que completavam com sucesso, os programas. Bessa, assim se chama o jovem, viria a confirmar-se como um bom exemplo, a merecer a atenção da sociedade para apostar na boa-fé e força de vontade para a reabilitação e integração social, dos visados. Outra inovação que Julieta levaria até ao Brisa Atlântica, foi o recrutamento de uma jovem imigrante brasileira, proveniente do Estado de Espírito Santo. Este propósito tinha em conta trazer inovação à cozinha e gastronomia portuguesa. E foi conseguido. Vânia, a simpática morena, viria a confirmar-se como uma excelente cozinheira e o resultado imediato viria a ser uma inusitada clientela que a crescente comunidade brasileira, já há muito justificava.

Julieta delegaria parte das responsabilidades na preservação do bom-nome do “Maresia”, maximizando-o, já sob a nova designação social, na pessoa de Casimiro. O tempo apressar-se-ia e tomar-se-iam medidas para dar um sinal claro de mudança, ao futuro “Brisa Atlântica”. Seriam repintadas as paredes com outras cores e um novo mobiliário rechearia o espaço com melhorado conforto. As casas de banho seriam profundamente renovadas. A cozinha receberia equipamento moderno e adequado aos tempos e às novas necessidades.

A experiência de Casimiro na restauração até, nestes pormenores se fazia sentir, a ponto de um dos seus lemas dizer: a qualidade e higiene de um restaurante tem como indicador primário, o bom aspecto geral das casas de banho. Neste particular, Casimiro não abdicaria da exigência de manutenção e boa conservação dos sanitários.

Pintura, WC, mobiliário e designação social, seriam a imagem da mudança exterior.

A expectativa está do lado de fora, nos clientes já habituais do restaurante e a confiança, está dentro de portas. Desta confiança, partilha Franklim e Cidália, que perante alguma compreensível e racional ponta de intranquilidade de Julieta, lhe incutiam optimismo. A recém empresária, ainda que jovem e não habituada a iniciativas tão arrojadas, sente que poderá ganhar o desafio.

Entre as duas amigas, o afastamento físico está para breve, e acredita-se que seja meramente uma condição geográfica a impor a distância. A amizade que Cidália dedica a July, não se perderá e não se perderá porque as vontades que assistem às duas jovens, têm algo de comum.

D. Felícia, anonimamente, faz votos para que o negócio de Julieta seja próspero, por razões óbvias. Ainda que não tenha emitido opinião pública posterior àquela em que a jovem cozinheira anunciaria a sua vontade em se estabelecer, o que lhe vai na alma, permite-se adivinhar… se por um lado, quer o filho longe da empregada, por outro, sente que na relação Julieta e Cidália, o afastamento entre elas, poderá trazer problemas do foro psicológico à nora.

Cidália ainda não conseguiu cortar o cordão de afectos à família, que ficou no Canadá, e Julieta, funcionava para ela como o ponto de equilíbrio afectivo entre a nova realidade e a passada. Cidália não era tão forte psicologicamente quanto July e a sogra tinha consciência disso. O facto de não engravidar, tornava-a ainda mais vulnerável. O desejo de ser mãe era grande, não só porque materializaria um dos pressupostos finais do casamento, mas também, porque a criança nascida a ajudaria a compensar na solidão que se adivinha. Na vida de Cidália pós casamento, os afectos restringir-se-iam a três pessoas: marido, Julieta e sogra, por esta ordem decrescente de grandeza. O marido por razões demasiadamente óbvias, Julieta por razões predominantemente geracionais e amizade e a sogra, pelo apreço que sente receber dela. A relação com a sogra é muito respeitosa, sendo até que D. Felícia, ultimamente, a trata com redobrado carinho, a ponto de lhe chamar “CI”, a primeira sílaba de Cidália.

D. Felícia, embora nunca tenha lido qualquer tratado de psicologia sob a temática dos afectos e das relações interpessoais, a escola da vida dar-lhe-ia experiência concreta e melhor interpretação. Pegando nas suas vivências e observações, pautaria a sua conduta pelo silêncio, sempre que o justificasse ou aconselharia com a voz da autoridade, que lhe vinha das cãs.

A abertura do restaurante ocorrerá tão brevemente que, Cidália não se cansa de falar à sogra para se fazer um jantar de despedida, a Julieta. D. Felícia, não disse sim nem não à sugestão e delegou na nora, a iniciativa. No seu subconsciente, quantas menos oportunidades de encontros houver entre o filho e empregada, tanto melhor, a fazer jus ao velhinho provérbio que diz: longe da vista, longe do coração. Na sua opinião, a visão e proximidade dos que se desejam, acicata os sentidos e estimula paixões, mesmo as ilícitas, como a que lhe está debaixo de olho.

Cidália, perante a indiferença da sogra à sua sugestão, quebraria o desejo. Não mais voltaria a falar-lhe, nem tampouco tomaria ela mesma, a iniciativa. Pensou que poderia homenageá-la de modo diferente e fazê-lo através do calor da palavra, e que, oportunidades não lhe faltariam.

Consumada a remodelação do restaurante, Franklim sugeriria, inauguração informal. Julieta concordaria e adiantaria que não tão informal que deixasse de fora as autoridades locais e só estes, acrescentaria.

Assim seria e a participação no almoço inaugural caberia exclusivamente a Julieta, Franklim e esposa, D. Felícia, empregados e as ditas autoridades locais. Os discursos da praxe, de agradecimento e votos de felicidades caberiam às autoridades presentes e deixariam Julieta feliz, testemunhado pelo brilho dos olhos, quais lustres celestes e semblante simpático, a fazer adivinhar o que lhe ia no coração.

O estado de espírito da jovem e recém empresária, contagiaria os restantes participantes e alguma emoção menos contida seria percepcionada em Cidália. Esta, cuja nobreza interior ressalta à vista, veiculava através dos olhos marejados o que o coração guardava para em ocasião mais propícia e adequada se abrir perante Julieta numa confissão séria e grata, não já pelo que esta representou como colaboradora mas, essencialmente pela amiga, pela companheira e confidente.

A oportunidade haveria de ser cavada por Cidália, para se expor, e Julieta, que lhe sabia ler a alma, aceitá-la-ia. Dessa singular ocasião, recordar-se-á os passos mais significativos do diálogo havido entre as duas amigas:

- Julieta, antes de mais, e do fundo do meu coração, do meu cada vez mais depauperado coração, faço votos para que sejas a mulher mais feliz do mundo e que estes meus votos, se houver Deus, como acredito, te cubra de benesses.

- Obrigado, muito obrigado Cidália. – A tua gentileza vem-te da alma, do coração … e sente-se que não é forjada nem forçada. As palavras, quando forjadas, não são ditas com convicção e apanham-se as segundas intenções que se escondem nelas porque brilham não de verdade mas, da cosmética. Tu, tens em cada palavra proferida uma auréola de verdade, de sinceridade inquestionável. A nossa relação tem pouco mais de ano e meio mas, o suficiente para dar garantias de confiança mútua. – Apenas, te peço que me permitas dizer-te uma coisa: estranho algo em ti. Não me pareces a mesma Cidália a que me habituaste. Estarei enganada?

- Não, não estás enganada. E já agora te peço uma coisa: dá-me um tempo, para me ouvires. Como sabes, não tenho ligações de proximidade com as minhas cunhadas, e a minha sogra, embora tenha por ela a maior consideração, não é a pessoa certa para eu me abrir sempre que me acho ficar deprimida. Peço-te que aceites ser minha confidente, em nome da minha saúde. Só tu e mais ninguém, poderás fazer o que nem um psicólogo me poderia fazer. Cada dia me sinto mais só e o amor do meu marido, não chega para me fazer feliz. Sei que ele me ama, mas o facto de eu não lhe dar filhos poderá fazê-lo distanciar-se de mim. Minha sogra bem gostaria de ter netos saídos de mim, mas…quem sabe, a mulher certa para Franklim, não terias sido tu…

- Não tens motivos para estares desse jeito…Teu marido ama-te cegamente. O filho desejado, certamente Deus to dará. Tem esperança e fé. Possivelmente, será um problema psicológico que te impede a gravidez. Já conheci casos assim. Nada nos diz que não seja igual. Aliás, julgo que foi o que te disse o médico, quando fizeste consulta de infertilidade. De resto, ainda assim, não seria suficiente para estares deprimida… - Sou solteira. Nunca tive um homem que eu pudesse amar e ser correspondida e me fizesse mãe. Tenho dias que sinto mágoa mas…, deito para trás das costas. Que fazer…? Bem vistas as coisas, estou bem pior que tu…

- Não imaginas como aprecio esse teu jeito positivo de encarar a vida e as suas incongruências. Em boa verdade, direi: invejo-te positivamente.

- Sabes Cidália, naturalmente idealizaste uma vida sem recuos, sem reveses…tal não é certo que aconteça e tu, por força da ficção, da idealização, custa-te a aceitar que na vida há sim e não, bom e mau, certo e errado…e por aí fora…É de todo conveniente que estejas preparada para isso. A felicidade, só acontece nos contos de fadas…

- Talvez tenhas razão. Melhor direi: tens mesmo razão. Confesso que fui educada com algum mimo, algum carinho, quiçá excesso de tudo, talvez mais, muito mais do que seria necessário. A dureza da vida, na fase de crescimento, é talvez o maior ensinamento que poderemos colher para o futuro. Esse, eu não tive. A tua vantagem estará aí. Agora acredito, porque algumas pessoas são tão bem sucedidas. Comeram o pão que o diabo amassou e de que eu me assustava, quando ouvia esse provérbio da boca de minha mãe. É pois, meu desejo, que aceites eternamente a minha amizade. Não quererei nunca perder-te de vista e mais: faço votos para que tenhamos coragem para superar eventuais atritos de uma palavra ou outra, mal dita, ou de um ou outro procedimento menos correcto, entre nós.

- O que estás a dizer, faço minhas palavras também. Como é bom ter o privilégio de te ter por amiga…a honra da tua amizade, cabe-me a mim, agradecer-te.

- Julieta, sinto-me fragilizada…tudo me vem à mente, especialmente, pensamentos sinistros. Temo a doença e parece que ela me quer abraçar, sinto ciúme sem saber de quê ou de quem, sendo que sei ser amada…Parece que o mundo quer desabar sobre mim. Não mereço, melhor direi, não merecia nada disto. Maldita cabeça…

- Na verdade, não estás num momento bom. Agora, pergunto-te, tens motivos para isso? Se os tens, encobre-los muito bem mas, julgo que é pura invenção. Varre da mente essas “tolices”. Nada te falta: és amada, tens saúde física, tens dinheiro, que mais queres? Tens os três elementos básicos da felicidade, tal qual ouvia ao meu avô: saúde, dinheiro e amor.

- Sei. Tudo isso eu tenho. Será que a felicidade rever-se-á apenas nesses três elementos? Por mim duvido. – Quem não vive ou viveu estas “tolices”, não saberá nunca avaliar o sofrimento que dá. Bem sei que eu nunca perceberei, tal como a maioria dos deprimidos nunca perceberão, porque estas coisas acontecem. Pergunto-me muitas vezes, porque será que temos medos: medo da doença, medo da morte, medo da solidão? Incrível a mente humana! – Chego até a culpar a boa da minha mãe e o bom do meu pai, por ser assim… - Deram-me tanto conforto, tanto mimo, tanto carinho…idealizei o mundo para mim, diferente do que realmente é. Pobres pais que estão tão longe e felizes e eu aqui a maldizê-los e a culpá-los do que nunca fizeram e cuja, talvez maior parte de responsabilidades me caiba por inteiro…- Tem paciência para me ouvir. Nem imaginas o quanto me está a fazer bem, desabafar.

- Continua…

- É este teu saber viver, de mulher coragem, arrojada e destemida, que gostaria de ser. Mas, ninguém se faz por si. Chego-me a sentir rejeitada pela sorte… não sei…

- Não, Cidália. Ninguém nasce rotulado para ser infeliz ou feliz. Esses caminhos estão em nós…só temos que encontrar, que descobrir o atalho certo…não sendo a mente humana a máquina perfeita que gostaríamos que fosse, ela guarda potentes meios para atingirmos a realização pessoal. É preciso ter a consciência que há coisas imutáveis e de que jamais sairemos vencedores…essas coisas são de ontem, de hoje e de sempre. Estou a referir-me à morte e à doença. Todos temos de aceitar a inexorabilidade destas realidades…à morte ninguém fugirá, à doença teremos de dar luta e, adiar-lhe as consequências. Concluindo: é importante ser capaz de mudar o que pode ser mudado, aceitar o imutável e ter inteligência e sabedoria para distinguir as duas situações.

- O teu iluminismo é apreciável, e não vem dar razão às minhas preocupações. Terei de reflectir maduramente mas, sei e sinto que vou notar a tua ausência. Provaste-me a razão porque te tenho em grande consideração…

- Não estarei ausente nem afastada de ti e, tanto menos isso acontecerá quanto mais reflectires nas minhas palavras, saídas da minha boca e dirigidas ao teu coração. Estou certa que, não deverá ser nada fácil a ninguém deixar a família longe, e abraçar uma nova realidade, um novo projecto de vida. O “cheiro” da casa dos pais não se esquece facilmente e, só um novo amor o poderá substituir mas, nunca o fará esquecer. Quem disser o contrário, ou mente ou nunca interiorizou completamente o tal “cheiro”. Compreendo muito bem o teu estado de espírito. Enquanto durou a fantasia e a mística do casamento, e a lua-de-mel foi capaz de fazer esquecer essa realidade, viveste um conto de fadas. Depoi, a ficção daria lugar à realidade e as dificuldades surgiriam. Tudo isso é natural e normal. Com o tempo, saberás intuir que aceitar a realidade, é sempre mais dura que aceitar a ficção. Nesta, tudo ocorre com final feliz.

- Sinto-me deslumbrada com a tua lucidez! Que mais poderei pedir a Deus, senão conservar a nossa amizade?

- A nossa amizade está consolidada e sedimentar-se-ia a partir do primeiro contacto havido entre nós. Percebi logo nesse dia que ficaria a ganhar com a tua amizade. Percebi também que, a amizade se faz no egoísmo. Aliás, como o amor. Antes de amarmos, queremos ser amadas, como antes de darmos amizade, queremos recebê-la. Eu quis a tua amizade. Destas pequenas “coisas”, de que nem nos damos tantas vezes conta, se faz a mente humana…

- Ficou bem claro que, irei precisar muito de ti, da tua amizade, inteligência, lucidez e energia positiva.

- Ninguém está acima de nada, nem de ninguém. Eu também não estou. “Amanhã” estarei a precisar de ti, quem sabe, pelas mesmas razões. Lembro-te o provérbio que diz: “nunca digas que desta água, não beberás”.

No final de longa e reflectida conversa as duas amigas abraçar-se-iam demoradamente, com uma certeza; consolidaram-se os apreços em que ambas estribavam a amizade.