O FERRADOR, O MOLEIRO E O XABREGAS

O FERRADOR, O MOLEIRO E O XABREGAS

Decorria o ano de 1948. No Março desse ano, uma figura de homem baixo, atarracado, cabelo escuro, barba espessa e espigada de três dias, olhos negros e pequenos, tez morena, braços peludos e veias salientes, rosto marcado por vincadas rugas e cara de poucos amigos, que não coração, como se viria a confirmar no futuro.

Era assim, o ferrador, de nome Torcato que, havia descido do planalto barrosão até ao vale do Cávado, em busca de trabalho. A velha Cucciolo em que se fazia deslocar, causaria à época, algum espanto geral. Ela era as suas pernas e carrejão. No sport, dentro de um saco de serapilheira trazia as ferramentas de trabalho: uma navalha para aparar cascos, pedra de amolar, cravos, taxinhas, ferraduras de vários tamanhos, lixa, grosa, martelo e óleo para amaciar cascos…

Este profissional, homem muito experimentado na arte, descendente de pai e avô paterno no sangue e no ofício, desceria ao vale Cávado desde as terras de Entre Pontes, em Vilar da Veiga até ao ponto onde os rios Cávado e Homem se abraçam, à Ponte do Bico.

Depressa se afirmaria como profissional respeitado pela qualidade e garantia do serviço prestado e pela simpatia que inicialmente não parecia possuir e da qual haveria de ser posta em desconfiança pelos Minhotos.

Há falta de trabalho na ferradoria, dedicava-se à “capadura” de porcos, acto que exercitava com especial maestria. “Caçava” o jovem suíno entre as pernas, com o traseiro a jeito e, com a navalha de enxertar, primorosamente afiada, aplicava-lhe uma incisão inter testicular e de seguida um nó nos cordões vesiculares seminais findo o qual, costurava com o golpe com linha de coser. Antes, desinfectava com aguardente, o poderoso anti séptico com que o povo, especialmente o povo se servia quando se golpeava ou como dizia o Sr. Luís Malandro, trolha de profissão, apreciador inveterado dessa bebida: se desinfectava por fora também desinfectava por dentro…

Torcato, buscaria estas paragens mais meridionais em consequência de crise de trabalho na sua área de acção laboral por efeito imediato da queda de exploração do volfrâmio, nas minas da Borralha. Ao tempo, os caminhos de acesso ao centro extractivo fazia-se recorrendo ao gado muar e asinino por serem mais resistentes, mais rápidos e mais inteligentes que o gado vacum, de modo que, os ditos machos e burros proliferavam abundantemente. O desgaste dos cascos era o resultado de inúmeras e por vezes longas caminhadas, serra acima, serra abaixo. Os resistentes animais de carga recebiam atenção adequada às necessidades dos seus donos e por via disso havia muito trabalho de ferrador, só que nada é eterno e Torcato sentiria na pele os custos da modernidade. Onde outrora havia inúmeros ferradores, só os mais velhos e sem ambição se acomodariam à terra que os vira nascer.

Da conjugação de vários factores, entre os quais: o fim acelerado da extracção e o aparecimento do tractor em substituição dos meigos burros, teceria o fim de uma ancestral profissão. Os proprietários dos venerandos asnos, ir-se-iam aos poucos desfazendo deles e dariam lugar à criação de bovinos. Estes produziriam trabalho agrícola e carne e criariam mais riqueza que os sóbrios burros cujo desempenho se circunscrevia à função de animal de carga e transporte. Os lavradores, haveriam também eles de alinhar na modernidade, recorrendo ao tractor para os trabalhos agrícolas mais árduos, tais como: lavrar, transporte de matos, vinhos, madeiras ou lenhas. Como resultado final, os perdedores maiores da mudança viriam a ser, o ferrador e o burro. Este, haveria de ver o início do seu fim, com a quase extinção.

Torcato, não perderia a noção dessa realidade e lançara-se no sentido jusante do Cávado, onde ainda escasseava mão-de-obra de ferradoria. Dessa migração, dariam contentamento os moleiros que abundantemente proliferavam em todas as aldeias marginais ao Cávado. Nesta região, só de tempos a tempos surgia um ferrador que não satisfazia as necessidades e o Sr. Basílio moleiro, lamentava-se dessa sua sorte. Os seus animais de carga, por falta de assistência traziam os cascos em chaga e mal podiam caminhar. O seu ganha-pão, dependia e muito, dos dóceis asnos. Xabregas, o mais velho dos três, com toneladas de milho e farinha transportado no dorso, tinha os cascos desgastados e em chaga. O Sr. Basílio, lamentava-se, mas pouco podia fazer. Xabregas não podia parar. Só quando adoecia com cólicas, gozava féria de estábulo. Nessa altura, os duzentos quilogramas de farinha ou cereal que o Xabregas transportava diariamente, seriam divididos em sacos de vinte e cinco quilogramas e a cabeça ou as costas das filhas e filhos, substituíam-no no transporte. De solipas ou chancas, João e Zé e de socas ou descalças, Maria e Celeste, faziam em passo ligeiro, sob sol, frio ou chuva o itinerário palmilhado durante mais de vinte anos, pelo corajoso e indómito animal. Os outros dois, um burro e um muar, ainda na meia-idade e vigorosos, eram guiados por mãe e pai, respectivamente.

Nas alturas em que Xabregas baixava ao estábulo por doença, os filhos manifestavam-se ao pai, o bom Basílio, para que o vendesse ou o desse a ciganos pobres que, quando em vez passavam na aldeia, nas suas viagens nómadas.

Basílio moleiro defendia-se dos argumentos dos filhos, dizendo-lhes que foi o Xabregas que os ajudou a criar e que se eles gostam do pai, também deveriam ter respeito e gratidão por ele. Esta sensibilização de pai na defesa do velho e obediente burro, fez com que os filhos jamais tivessem emitido juízo de desprezo por aquele que na “sombra” ou de modo activo, tantas vezes sob sol escaldante, frio glacial ou chuva diluviana, nunca renunciaria às ordens recebidas do patrão. Aliás, Basílio moleiro respeitava-o tanto que não ousava montá-lo, mesmo no fim da distribuição das farinhas. Caminhavam lado a lado e conversavam. Xabregas entendia o que o patrão lhe dizia e este, quando o arreava, gostava de o mimar com uma mão cheia de grão de milho que ele devorava com inusitado prazer. Era uma mansidão! Os filhos em pequenos passavam-lhe por baixo da barriga e jamais Xabregas esboçaria um coice ou relincho de desagrado.

Anatomicamente, caracterizava-se por ter umas orelhas grandes e peludas, cabeça volumosa, focinho curto e lábios grossos, dentes grandes e esverdeados uns e amarelados outros, patas grossas, abundante pêlo grosso por todo o corpo em tom castanho-escuro e envergadura a sugerir robustez. Temperamento dócil…

Em Basílio sentia-se uma tristeza enorme por o seu preferido estar a caminhar para a inactividade, velhice e quiçá, morte. A aposentação vinha-lhe a caminho e nem por isso o patrão manifestaria vontade de o ver fora de portas, conforme chegaram a preconizar os filhos. Foi nesta altura que Torcato conheceria Basílio e este lhe mostraria o Xabregas e os seus cascos dilacerados pelas duras jornadas e ausência de assistência.

A chegada do ferrador, constituiria um momento alto de satisfação de Basílio moleiro. Após observação atenta dos cascos, Torcato recomendaria descanso de três a quatro semanas. No dizer dele, os cascos teriam de se refazer para poderem num futuro receber os “sapatos”, quiçá os últimos, que calçaria na sua já longa vida de mais de vinte anos.

Basílio aproveitaria a ocasião para ferrar os outros dois animais e aperceber-se-ia que estava diante de um profissional competente, zeloso e respeitador da condição animal. Antes de os abordar, dava-se a conhecer, falando-lhes, acariciava-os fazendo-lhes cócegas na barriga ou passando-lhes a mão ao longo do dorso e solicitava um punhado de milho ou trigo, que lhes dava em mão. Nunca ferrava um animal sem efectuar este ritual de carinho. Gabava-se até, de nunca ter sido escoiceado.

Rapidamente o nome de Torcato se propagaria e o trabalho que lhe faltou no Barroso, sobrava-lhe no vale do Cávado.

Há altura, teria cerca de cinquenta anos e uma vida amargurada por três filhos perdidos na meninice e mulher. Joaquim, o primogénito, morreria com quatro anitos, de febres intestinais e diarreias abundantes que o desidrataria. Amaro, morreria afogado por congestão, aos dez anos, numa lagoa no rio Cabril e para final da sua amargura, também a mulher morreria de parto quando dava à luz uma menina, sendo que esta, não resistiria também. Não mais voltaria a casar. O seu passado, que poderia ter sido feliz, marcá-lo-ia para sempre. Agora, acarinhado por clientes e por muito trabalho, diga-se, trabalho que fazia com dedicação e supremo prazer, ajudá-lo-iam a minorar o infausto passado.

Ganhava dinheiro, gozava de saúde e aqueles que com ele privavam e de quem se fez amigo, sugeriam-lhe casamento, que ele, declinava sempre. Dizia a esses amigos que ainda não tinha feito o luto e respondia-lhes lapidarmente:” para lembrar, basta ter memória, para não esquecer, bastaria ter coração”. Continuava: o meu passado está no coração e não na memória.

Á parte as sugestões de amigos, Torcato gozava de felicidade. Um dia, havia-lhe chegado aos ouvidos a fama de um ferrador da cidade de Braga, chamado Faustino, o qual ainda acumulava a fama de “veterinário”. A vontade de o conhecer, não mais deixaria de o acompanhar.

Nunca alguma vez havia ido a Braga. O seu Cucciolo nunca passaria além de Palmeira. O medo de entrar na cidade apequenava-o e apoquentava-o, até que um dia confessaria ao Sr. Basílio moleiro aquele acto de coragem que era entrar na cidade e conhecer de viva voz um mestre de referência.

- Sabe Sr. Basílio, já há tempos que me falavam de um tal Faustino ferrador e …

- Esse nome não me é estranho, não senhor.

- Ai não!? Então já conhecia o nome? Pois fique sabendo: eu já o conheço em pessoa e nem queira saber o que me aconteceu. – Nunca tinha ido a Braga, nem a pé nem de outro jeito. Foi então que entrei em Braga algo desconfiado. Mas valeu a pena…