O conto da montanha

"Fortaleza, três de março de 2008.

Sr. João,

Minha rua acordou mudada. Os vizinhos não se conformam com o latrocínio da noite passada. Aquele bandido que roubou e matou o seu Ladislau quando este chegava a casa, onde morava sozinho, morrera em tiroteio com a polícia, embora merecesse fim pior. Poucos moradores das casas dispostas ao longo daquela rua e próximas à casa do seu Ladislau saíram pela manhã. Foi pelas dez da manhã, quando eu fui pegar o jornal na calçada mais tarde do que costumava ir, visto que era sábado, que eu pensei tê-la visto. Ela ou aquilo estava do outro lado da rua, de costas, batendo palmas em frente à casa do seu Ladislau, com aquela foice familiar encostada no muro. Eu chamei-lhe a atenção. Ela virou-se e, avistando-me, tomou sua foice com uma das mãos e aproximou-se, com o capuz sempre escondendo o rosto, aparecendo apenas, de vez em quando, dois olhos brilhantes. Disse-me, então, ao chegar a um metro de distância de mim: "Onde está o seu Ladislau?" Eu respondi-lhe dizendo que ele havia morrido e contei-lhe o ocorrido na noite passada.

-Droga! Eu cheguei atrasado! - Disse ele. Inicialmente pensei que fosse a morte, mas agora sabia que não era, porque era 'ele' e não 'ela'.

-Posso ajudá-lo em alguma coisa? - Perguntei.

Ele olhou-me fixamente e eu pude imaginar um sorriso malicioso. Recuei para dentro de casa e tranquei a porta. Ainda bem que eu não o tinha chamado, senão eu não teria nem chance de me defender. Eu estava despreparado, pois fazia tempo que eu não me deparava com um deles, mas mesmo assim fui direto pegar meu baú no porão. Trouxe-o até a sala e, limpando a poeira em cima dele, abri a sua tampa, que não estava trancada. Tirei de dentro dele um colete de metal; uma besta automática capaz de engatilhar e de disparar três flechas de cada vez; uma aljava comportando dez flechas transparentes e brilhantes, de um cristal desconhecido e muito duro; uma luva de couro mal curtido, de um animal também desconhecido, mas que não apodrecera ainda; um livro muito antigo; e um vidrinho de cristal arrolhado com um líquido preto no seu interior.

Eu escovei os dentes, tomei banho, vesti-me com roupa comum - calça comprida jeans, tênis esportivo e camisa de abotoar de poliéster com algodão - pus o colete metálico, acho que o metal era uma liga de ferro, carvão e outro metal que desconheço; vesti minha mão direita com a luva de couro, pus a aljava no ombro pala alça, coloquei o livro entre o colete e o abdome. Guardei meu vidrinho cristalino no bolso dianteiro esquerdo da calça e empunhei a besta com a mão vestida. Agora eu estava equipado com material suficiente para matar uma parca. Esta é uma criatura extremamente perigosa, que possui três semelhantes seres, mas cada um destes possui uma destas partes do corpo visível: as pernas e a bacia, o tronco ou a cabeça; a parca, porém, é completamente invisível e não pode livrar-se da nascente homônimo. Sua história começou há muitos séculos atrás, por volta de 1200 d.C., quando uma linda e jovem camponesa portuguesa desapareceu. Ela era amante de muitos trovadores da época e o seu desaparecimento não passou despercebido. Esses trovadores reuniram-se para procurá-la e a encontraram enterrada às margens do rio Tejo. Eles sabiam que ela estava planejando fugir para o Condado Portucalense, onde viveria à custa deles, mas o pai era um homem muito perturbado e a matou.

Os trovadores, em número de seis, resolveram procurar a bruxa da nascente do rio Tejo, que era conhecida por dar vida aos mortos e que, dizia a lenda, costumava aparecer após o assassinato de uma bela jovem, atraída por sua alma.

Eu era um jogral aspirando à posição de trovador, faltava-me a execução musical; por isso eu era aluno de João Garcia de Guilhade, um trovador dos mais originais do século XIII que deixou 54 cantigas líricas e satíricas. Nós costumávamos treinar o acompanhamento musical de cantigas trovadorescas de amigos, como Pablo Soares Bonaval, um segrel que devia mais do que bebia. Em uma dessas ocasiões quando, chegamos a casa deste último algumas horas após o almoço, tivemos que pernoitar lá por causa de uma notícia que nos chegou de surpresa, interrompendo a execução de uma cantiga de amor com acompanhamento musical. Um vizinho entrou na casa assustado e disse:

-Joana Ben Talhada foi encontrada morta às margens do rio Tejo, perto da nascente. Estão dizendo que foi o pai dela.

Ainda hoje lembro o assombro expresso nas faces de Bonaval, pálido, olhos arregalados. Levantou-se e foi pôr o casaco e as botas.

- Os senhores me acompanham? – perguntou.

- Mas é claro, amigo – disse Guilhade.

- Venham no meu carro, senhores. Estou só – disse o vizinho – há espaço para seis pessoas.

Fomos no carro de Martim Fernandes Charinho, trovador, assim como Guilhade. Contou-nos, ainda no carro, a sua relação com Bem Talhada. Ela era bela, possuidora de uma formosura que encantava homens de todas as partes. Seus cabelos castanho-claros desciam-lhe até a cintura e combinavam com a cor dos seus olhos castanhos, mais belos ainda em conjunto com o seu sorriso simpático, a sua pele rosada e as suas curvas ainda mais portentosas devido ao seu jeito mimoso.

No caminho, fomos surpreendidos por um grito. Era a voz do cocheiro. A carruagem parou e ouvimos uma gargalhada cruel propagando-se pelos ares, assustando os próprios animais. O assombro foi geral.

- Deixe-me olhar o que está acontecendo – pedi a Charinho.

- Venha comigo, cavalheiro, e veremos os dois juntos! – respondeu o dono da carruagem.

O cocheiro havia desmaiado e os cavalos estavam agitados. Acordamos o boleeiro, mas ele não lembrava nada do que ocorrera antes de os cavalos pararem. Ele acalmou os cavalos e disse:

- Vamos. Não é bom pararmos aqui, sinhô.

- Sim, vamos João.

Não era longe dali até a casa de Bernardo Soares, o pai da vítima e possível assassino, porquanto não demoramos a chegar.Ali, trovadores de todas as partes viriam chorar a morte de Joana, mas, naquele momento, somente cinco estranhos estavam a interpelar o pai da vítima sobre seu envolvimento no crime. Chegamos no ato da confissão. Percebendo que chegávamos, um deles veio-nos receber.

- Falai quem sois, vós que vêm na carruagem! – gritou ele enquanto João estacionava a carruagem debaixo de uma árvore, ao abrigo da iluminação lunar. Era lua cheia.

- Sou Martim Fernandes Charinho! Os demais me acompanham!

Ah! - exclamou o primeiro. E, aproximando-se, ajudou Charinho a descer da carruagem – Vem, meu amigo, estamos tentando saber tudo o que aconteceu. Não percamos a oportunidade de ouvir da boca do assassino! Pedirei para os outros esperarem aqui, por favor.

- Aires Gomes?! – exclamou Bonaval – Sou eu, Pablo!

- Então vens tu também, amigo! Porém, ninguém mais.

Os sete poetas ouviram os detalhes do assassinato e anotaram cada palavra. Bernardo matou sua filha porque soube que ela estava grávida e ela não sabia a paternidade do filho. Antes de afogá-la, ele molestou-a mais uma vez. Depois do relato, os poetas espancaram o velho patife e amarraram-lhe as pernas e os braços, deixando-o preso a uma árvore seca, sem folhas, velha e sombria.

Naquele momento, percebi uma discussão entre eles e vi Pablo afastando-se do grupo apressado.

- Aonde vais, senhor Pablo?

- Disseram que o assunto a ser tratado diz respeito apenas aos integrantes da sociedade secreta Trova Negra, da qual não faço parte. Melhor assim, pois dizem que seus integrantes praticam heresias, mas jamais um trovador trai um amigo.

- Esperamos o dono da carruagem no seu interior até que ele veio despedir-se de nós, pois precisava conversar ainda algumas horas com os outros trovadores negros:

- João irá levá-los até a casa de Bonaval. Obrigado por virem, amigos! E lembrem-se: um poeta de verdade jamais trai um amigo poeta!

Voltamos pela mesma estrada. Pernoitaríamos na casa de Bonaval, eu e Guilhade. O anfitrião mostrou-nos nossos aposentos e fomos todos dormir. Eu levantei-me de cama sem fazer barulho. Vesti-me, abri a janela furtivamente e senti o vento frio que soprava lá fora. A Lua ainda estava no alto. Desci do telhado e caí sobre o celeiro, mas minha queda foi amortecida pelo telhado de palha e madeira. Selei um cavalo e parti, acelerando apenas quando já havia atingido a estrada. Eu decorara o caminho até a nascente, pois tivera a idéia de observar às escondidas a reunião da Trova Negra quando tomei conhecimento da sessão.

Os trovadores ainda conversavam quando eu retornei. A carruagem havia voltado. Eu amarrei meu cavalo em uma árvore a alguns metros de distância dali e aproximei-me por entre as árvores para não ser visto. Eles falavam sobre uma bruxa que fora enforcada na nascente do rio Tejo, acusada de sacrificar belas donzelas para lhes roubar a beleza através de um ritual que aprisionava a alma. Antes de morrer, a bruxa rogou por sua vida e, sem sucesso, pôs uma maldição sobre aquelas paragens: sua alma ficaria presa onde ela agonizasse e, quando uma bela jovem morresse, a alma desta atrairia o espectro daquela, que assumiria a aparência da jovem, podendo retornar à vida.

Escutei ainda que um deles era estudioso de Ciências Ocultas e curioso em Magia Negra. Então pude adivinhar o plano deles: queriam trazer Joana Ben Talhada de volta à vida. Mas como é o que irei explicar agora.

Charinho estava nervoso. Vez por outra olhava ao seu redor, temendo o surgimento inesperado de alguém. Sua mão segurava um terço. Eu não sei se ele temia a bruxa ou a Igreja. Eu não temia nenhuma das duas.

- Conheço um ritual para atrair um espírito maligno - disse Aires, o mago - outro para dominá-lo, outro para despertar um espírito amedrontado e outro para fazer o espírito amedrontado encarnar com a ajuda do espírito maligno.

- Isso não é perigoso? - indagou Charinho.

- Acalme-se - continuou Aires - sei o que estou fazendo. Já tenho o material dentro da casa do velho Bernardo.

Eles foram-se afastando até que eu não os pude mais ouvir. Entraram dentro da casa e, durante meia hora, permaneceram lá dentro. De repente, eu ouvi uma gargalhada e a casa pareceu estremecer, como se tivesse acordado de um longo sono. Da casa ecoou um grito:

- Tragam o velho! - gritou Aires.

Dois trovadores desamarraram e arrastaram Bernardo para dentro da casa. Tudo parecia agitado, havia assombro naquela casa. Eu estava dominado por um sentimento de horror, mas minha curiosidade era mais forte. Aproximei-me e pude espiar por debaixo do assoalho. Charinho estava desacordado e todo amarrado. "A bruxa o possuiu", disse Aires. Eu tremia de medo.

De repente, Martim acordou e perguntou:

- Por que estou preso?

- É a bruxa. Ela está fingindo - disse Aires.

Um deles, Fernão Zorro, perguntou:

- Como sabes?!

- Solte-me, amigo, ou ele vai me matar! - suplicou Charinho.

Zorro puxou uma faca e começou a cortar a corda que prendia as mãos do amigo. Na mesma hora, Aires tentou se aproximar, mas Fernão, que parecia ter enlouquecido, cortou o próprio pescoço. Depois disso, Charinho deu uma gargalhada esganiçada.

Os outros dois poetas correram dali, mas foram presos ao chão pelas raízes da árvore sombria, que se movia por encantamento.

Aires, que ficara paralisado, continuou preparando os rituais e, quando parou, virou-se para Charinho e curvou-se diante dele, mas, numa última tentativa, Gomes recuperou o controle sobre o próprio corpo, pegou uma faca para matar Charinho, mas o corpo de Zorro voltou à vida e tentou impedi-lo. Os dois lutaram e Charinho deu prosseguimento ao ritual, pronunciando as palavras mágicas, enquanto impedia Aires de desmanchar o ritual através do corpo de Fernão.

Depois de cortar as mãos de Zorro e atirá-lo porta afora, Gomes entrou num duelo de Magia contra a bruxa do Tejo. E quando já estava quase derrotado, deu uma última investida contra ela usando o ritual de segurança que ele havia preparado em segredo. E invocou os espíritos do equilíbrio espiritual para usar quatro almas contra o espectro da bruxa, prendendo-a ao mundo dos sonhos.

Quando acordei ainda me lembrava Dela e fiquei arrepiado...

Ulisses de Maio
Enviado por Ulisses de Maio em 03/11/2009
Reeditado em 16/01/2010
Código do texto: T1902611
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