O ADOTADO

“Todos os dias, em todos os cantos do mundo, centenas de pessoas desaparecem e a maioria delas nunca mais é encontrada”

O tempo estava se esgotando, por isso necessitava preparar-se para a partida que deveria acontecer em pouco tempo. Tinha que providenciar tudo para que nada de errado viesse ocorrer.

Já há muito tempo estava se preparando para o dia da transformação e, como sempre fazia, tinha que estar completo com todas suas faculdades em perfeito funcionamento para a hora certa.

O local já havia sido escolhido há muito tempo, ele apenas tinha que cumprir o velho ritual a que já estava muito acostumado.

No campo profissional estava tudo resolvido e suas obrigações haviam sido transmitidas aos seus colaboradores. Iria viajar e não queria que houvesse questionamentos. Até no âmbito familiar, tudo estava organizado para a partida, coisa que já fizera tantas vezes em lugares diversos e em tempos diferentes.

Seus oitenta e tantos anos naquela vida deram-lhe a capacidade e o discernimento para fazer tudo com naturalidade. Outras vezes já fizera aquela viagem e retorno e como sempre era algo festivo e cheio de alegrias. Algumas vezes, no entanto, tivera que se sacrificar e abreviar o tempo, o projeto assim exigia, para educação daqueles que na vida faziam parte do elo familiar, embora seu maior objetivo fosse outro.

Família ele olhava com indiferença, quando se tratava apenas dos laços afetivos, pois ele sempre dizia que a família era toda a humanidade em todos os lugares e não apenas daquela pequena célula que vivia dentro de um mesmo espaço. Dos quatro filhos, apenas um herdara a terra, os outros haviam partido de maneiras diversas para seu mundo.

Agora, sua nova moradia havia sido estudada exaustivamente, para que ele pudesse atingir o fim colimado naquela nova etapa delimitada há muito tempo. Sua missão o transformara em um quase imortal. Assim era necessário para preservar o restante de sua raça que viera de tão longe para não sucumbir.

A Terra era o local ideal, mesmo apesar de todas suas mazelas, sua humanidade ainda era jovem em formação. A ciência do seu mundo encontrara os meios de preservação e regeneração e valendo-se de matrizes terrenas criava-se a esperança para seu mundo e aquele era um dos meios de prolongar a vida e enganar a morte.

Ele fazia parte de uma elite de seu povo, por sua capacidade reprodutiva ainda ativa, assim como os outros que tinham vindo com ele e estavam em algum lugar da terra, valendo-se das mulheres terrenas para preservar seu povo.

Quando ainda criança, naquela vida, passou por todas as etapas no interior, porém sua mudança para um grande centro também fazia parte deste aprendizado que tinha sido elaborado. Em cada nova vida, um local diferente para diversificar e ampliar a rede genética.

Tudo agora estava pronto, apenas deveria aguardar o dia previsto, quando deixaria os seus e partiria para mais uma etapa a que todos chamam de vida.

Há mais de cinco anos que o casal, todos os meses, dirigia-se à clínica na tentativa de, mais uma, vez obter resultados satisfatórios ao tão desejado sonho de ter um filho. O médico do casal, mesmo valendo-se de todas as novas técnicas de fertilização, ainda não havia conseguido o intento de dar aos dois o esperado filho. As tentativas sempre falhavam. Vários fatores contribuíam para isso.

A baixa fertilidade do marido era o problema maior que o casal enfrentava. A esposa tinha plena capacidade para gerar filhos,: ele, no entanto, era praticamente infértil.

Todo aquele drama acirrava os ânimos e várias vezes o casal discutira em virtude do problema que eles enfrentavam.

Os aspectos cármicos ninguém sabia ou discutia, apenas se olhava aquela vida como resultado de um processo que segundo ele, estava gerando a instabilidade do casamento por falta de um herdeiro.

Ela queria tanto ter filhos que sugeriu ao marido a fertilização com sêmen de um doador, mas para ele aquilo seria o fim de tudo e até mesmo do amor que dizia ter por ela. Não podia admitir ter um filho gerado por sua esposa que não fosse dele. Ele até sentia-se mais confortável em adotar uma criança do que imaginar que o esperma de outro homem pudesse gerar em sua esposa um filho que ele fora incapaz de dar.

O médico ficava entre as duas opiniões e até um psicólogo foi acionado para tentar resolver o impasse familiar que apenas dizia respeito a eles.

Todos os tratamentos efetuados e toda a perícia médica não conseguiam reverter sua infertilidade e com isso a esposa que ele tanto amava, sofria.

Diversas vezes a viu soluçando durante a madrugada. Ele sabia o motivo e fingia até mesmo estar dormindo para não ter que discutir um problema que, segundo ela, era mais dele do que dela.

A situação havia levado o casal ao pároco da cidade onde morava, quando procuraram, através dele, encontrar uma solução ou um milagre para tão doloroso caso familiar.

Comerciante, tinha estabilidade econômica, por isso podia levar a esposa às melhores clínicas que havia, na tentativa de reverter o problema dele.

Enquanto o drama familiar transcorria, amigos o aconselhavam a adotar uma criança, que iria acalmar em definitivo a esposa que desejava ter um filho e pudesse mostrar toda sua capacidade de se dar e amar como mulher e mãe.

-Passagem para onde?

O passageiro ergueu a cabeça e, com firmeza e determinação, respondeu:

-Quero uma passagem para a primeira cidade do Mato Grosso.

-Ok! Custa cinqüenta e dois reais: Respondeu.

Ele enfiou a mão no bolso, pegou o dinheiro previamente contado e entregou ao vendedor, enquanto perguntava:

-O ônibus está no horário?

-Sim, respondeu o vendedor.

Pegou a passagem colocou-a no bolso da camisa e saiu calmamente rumo ao local de embarque para esperar a partida do veículo que iria levá-lo a seu novo destino.

Sentou-se e, enquanto esperava, começou a relembrar os detalhes do seu plano. Depois preencheu todos os seus dados no papel que o vendedor lhe havia entregue.

Já havia dois dias que não se alimentava apenas ingeria água quando tinha que viajar. Não levava nenhuma bagagem, somente a roupa do corpo e pequenas coisas era o que transportava.

Havia abandonado tudo no carro, não necessitava de nada mais que seu próprio corpo para transpor aquela barreira entre dois mundos tão distantes e, ao mesmo ,tempo tão perto um do outro. Apenas um pequeno embrulho era sua bagagem, o isqueiro e “aquilo” que carregava no bolso da camisa.

Deixou os documentos no porta luvas do carro, a mala com seus objetos também haviam ficado no veículo. O carro estacionado naquele lugar só iria chamar a atenção depois de dois ou três dias e até lá tudo já deveria ter ocorrido.

Transportava com ele a cápsula recebida dias antes de um colega, isso ele sempre fazia quando necessitava empreender a viagem e esta já era a sexta.

Sorriu, ao imaginar ver centenas de pessoas, policiais e familiares procurarem e falarem sobre o seu desaparecimento. Era doloroso, mas necessário, não havia outro modo de proceder.

Usava uma peruca de cabelos grisalhos e também colocara um bigode e até se desfizera dos óculos. Tinha como objetivo despistar todos aqueles que deveriam estar em poucos dias em seu encalço, tentando descobrir seu paradeiro. Em outras épocas já mobilizara a polícia quando seus filhos haviam partido. Embora soubesse o destino deles, fingia ser um pai preocupado com o desaparecimento deles e até chorara. Com estas precauções ele nunca foi descoberto.

Riu ainda mais ao imaginar a surpresa que haveria se alguém pudesse adivinhar sobre o seu destino dali a horas. Sempre realizava aquela tarefa e nunca tinha havido problemas.

Olhou o relógio pendurado na parede e viu que faltavam apenas poucos minutos para as vinte e três horas, tempo que marcava a partida do ônibus. O movimento de passageiros era pequeno e além de tudo, dias atrás o movimento do feriado havia esgotado a capacidade de viajar de muitos. Os que viajavam naquele dia e horário eram poucos.

Quando o motorista exigiu-lhe documento de identificação apresentou a identidade que ele mesmo havia criado com todos os dados de uma pessoa que ainda não existia. Ele não poderia ser identificado ao sair da cidade para não despertar suspeita sobre seu real paradeiro. Por isso havia criado uma nova identidade para si. Lembrou-se que em outras épocas aquilo havia sido desnecessário, mas agora os tempos eram outros.

Sentou-se confortavelmente na cadeira e enquanto esperava a partida do veículo, tentou imaginar como seria sua nova morada e como ele seria recebido lá.

Depois se levantou discretamente e mentalmente contou os passageiros que havia no ônibus. Apenas treze pessoas haviam embarcado até aquele momento e quando o veículo saiu da cidade o número de passageiro ainda era o mesmo.

Depois de uma hora, abriu a janela bem devagar e com todo o cuidado para não ser notado,rasgou a identidade e foi jogando pela janela os pedaços do documento que havia usado até aquele momento. Naquela hora da madrugada todos os companheiros de viagem dormiam. Não poderia ser identificado de maneira nenhuma, ninguém iria conseguir fazer ligação entre ele e aquele passageiro. Enquanto o veículo se deslocava na noite estrelada, olhava o espaço, tentando descobrir em torno de qual daquelas estrelas estaria seu mundo, seu verdadeiro lar.

Cinco horas depois, quando o ônibus parou na rodoviária, o único passageiro que desceu foi ele, os outros continuaram rumo a outras cidades.

Na madrugada avançada o único ser vivo que ainda andava pelas ruas desertas era ele. Quando saiu da rodoviária, viu um motorista de táxi, com a porta do carro aberta, dormindo e roncando. Ele iria ao seu destino, andando. Enquanto isso, um bêbado dormia o sono dos justos debaixo de um banco da praça, onde se localizava a estação rodoviária. Aquela era uma das vantagens das cidades do interior.

Apalpou o bolso da camisa, como se quisesse confirmar a existência da cápsula e, ao sentir o pequeno volume sob seus dedos, sorriu e apressou o passo.

Com o pequeno embrulho debaixo do braço, andou por mais de trinta minutos e somente alguns gatos e cães vadios eram seus companheiros na noite.

O frio da madrugada obrigara as pessoas a se recolherem cedo, evitando a necessidade de se exporem ao vento frio e cortante daquela madrugada. Enquanto andava, viu um policial passar dirigindo uma viatura em sentido contrário e nem mesmo se preocupara em olhar para ele.

Ainda bem!

Quando já estava bem perto de destino, parou e, aproveitando-se da falta de luz na rua, abriu o pacote e, ao desembrulhá-lo, retirou deste um cobertor já velho e surrado. Junto a este havia um bilhete.

Olhou em todas as direções, despiu-se rapidamente e, como sentia o frio da madrugada, enrolou-se no cobertor e ateou fogo nas roupas que usara e jogou sobre elas a peruca e o bigode postiço. Andou mais um pouco e depois jogou o isqueiro dentro de um bueiro e saiu rapidamente do local. Se alguém o visse naquele momento poderia imaginar que fosse algum mendigo tentando proteger-se do frio com o cobertor.

O asfalto estava frio e gelava seus pés descalços e, enrolado no cobertor, abriu devagarzinho o portão da casa e sem fazer nenhum barulho, dirigiu-se para traz do carro que lá se encontrava estacionado, evitando tocar nele, para não disparar o alarme.

Ajeitou-se atrás do carro e do jeito que estava, protegido do frio, olhou atentamente a cápsula que trazia na mão e com um sorriso resignado colocou-a na boca e depois de certa salivação engoliu-a.

Naquele momento começava uma nova vida.

Quando o despertador musical anunciou seis horas, Marina já tinha-se levantado para preparar o café do marido que sempre saía muito cedo para o trabalho. Haviam agendado na semana anterior uma nova visita ao médico para tratar do assunto de sua fertilização. Entre o casal havia surgido certa irritação, porque ela queria um filho de todas as maneiras e ela estava culpando-o por sua infertilidade.

Sua vontade em ser mãe, muitas vezes fazia com que imaginasse ouvir o choro de criança, como estava acontecendo naquele momento.

Sorriu, imaginando estar ficando louca, pois o choro de uma criança não era apenas imaginação; naquele momento o marido, ao aproximar-se, disse:

- Querida, está ouvindo ?

- Um choro de criança? indagou ela.

- Sim, isso mesmo, de onde estará vindo?

- Parece ser da garagem.

Marina e o esposo se dirigiram ao local de onde parecia vir o choro da criança. Ao abrirem a porta, perto desta, em frente ao carro, um cobertor velho protegia precariamente uma criança que esperneava com o frio da manhã.

Quase que automaticamente lançaram-se sobre ele ao mesmo tempo, cada um tentando pegar a criança e ao se abaixarem, bateram as cabeças. Riram daquela situação engraçada e divertida e sem mais demora levaram a criança para dentro da casa, tentando protegê-la do frio.

Após levar a criança para o quarto, ela procurou encontrar panos limpos para agasalhar o pequeno e, ao retirar o velho cobertor, um pequeno papel caiu. Abaixou-se, pegou o bilhete e, em voz alta, leu:

“Pelo amor de Deus, cuidem de meu filho”.

Poucas palavras para um pedido de responsabilidade tão grande. Enquanto ela se preocupava em agasalhar a criança, o esposo saiu à procura de alguma drogaria para comprar fraldas e leite para a criança que, naquele momento, gritava. Sabiam que já não era apenas o frio mas, também de fome.

Quando ele voltou com a parafernália de objetos de primeiras necessidades para a criança, também trazia um pequeno chocalho que poderia servir de distração para ela. Depois de mamar todo o leite que havia sido preparado, o menino fechou os olhos e dormiu. O casal sorriu, haviam conseguido encontrar o filho que tanto desejavam.

Ele ligou para sua empresa avisando que não iria aparecer por lá na parte da manhã, pois precisava resolver alguns assuntos familiares.Teria que ir até a delegacia para comunicar o aparecimento da criança e, ao mesmo tempo, falar com o seu amigo, o Dr. Félix, juiz da cidade, onde iria pleitear antes de qualquer outro a guarda e a adoção da criança.

Depois das providências, voltou para casa e, em conversa com a esposa, começaram a disputa para encontrar um nome para o filho com que alguém resolvera presentear-lhes.

Marina queria que o menino tivesse o nome de Pedro, em homenagem ao pai, o marido queria que fosse outro e usava como argumento o fato de o pai da esposa ainda estar vivo. Segundo ele não se deve homenagear pessoas vivas.

Mesmo com as divergências sobre o possível nome para bebê, eles pareciam duas crianças que havia ganhado um presente. Não saíam do quarto de hóspede, local que fora arrumado às pressas para receber o filho.

Mesmo preocupados com a possibilidade de aparecerem os verdadeiros pais da criança, procuravam ignorar o fato, tendo como argumento o pequeno bilhete que estava junto da criança.

E se a mãe ou pai se arrependessem e viessem buscar o filho? O que eles fariam? Iriam lutar de todas as maneiras para ficar com ele.

Procurando precaver-se de tais problemas, acionaram o advogado da empresa para que acompanhasse junto à polícia e mesmo ao amigo juiz, qualquer fato que pudesse indicar a origem da criança.

Depois de exaustivas buscas, foi constatado que não havia desaparecido nenhuma criança na cidade ou mesmo na pequena cidade próxima e que ficava a duas horas de carro.

Quando o delegado disse ter encontrado o carro, toda a família ficou animada. Dentro dele, todos os objetos que o patriarca da família havia levado se encontravam lá, inclusive seus documentos e outros objetos de uso pessoal. Diante de tal fato as buscas foram reduzidas, pois iriam esperar o chamado de seus raptores.

Carro abandonado, objetos pessoais intactos, documentos e dinheiro, tudo indicava que havia sido seqüestro. Por quatro semanas consecutivas um policial de plantão ficou de tocaia, esperando uma ligação dos possíveis seqüestradores. Enquanto o tempo ia passando as esperanças também escorriam como água ralo abaixo.

Depois de três meses sem nenhum comunicado, apenas as notícias veiculadas na imprensa davam como desaparecido um grande empresário. As fotos dele apareciam em todos os jornais de grande circulação e até a rede mundial da internet foi usada.

Todas as diligências foram acionadas, companhias áreas, empresas de ônibus e todo meio de transporte, ninguém havia visto um ancião como aquele que tinha a foto mostrada em várias posições e tamanhos.

Depois de três anos de exaustivas buscas em todas as cidades conhecidas e valendo-se de todos os meios possíveis, a polícia deu o caso por encerrado e o inquérito foi arquivado como insolúvel. Diante de tais fatos, sem a comprovação da morte do pai, o filho procurou a justiça para iniciar o processo sucessório.

Pedro era uma criança precoce, parecia entender tudo, embora apenas tivesse pouco mais de três anos de vida. O casal conseguira através da justiça a posse provisória e, como ninguém reclamara a criança com aquelas características, o juiz viu-se obrigado a conceder ao casal a criança. A adoção foi rápida, pois o casal atendia às exigências da lei.

Muitas vezes a mãe observava o menino que agia como um adulto num corpo pequeno. Marina se realizava através daquela criança que viera a sua porta para completar sua vida e fazê-la sentir-se mãe.

Embora quase não falasse, ele sabia de tudo e assim seria até completar o primeiro ciclo de sete anos de vida. As lembranças do recente passado não haviam sido esquecidas, ele apenas nada poderia falar. Depois, quando as lembranças recuassem, ficaria assim ainda por muitos anos para, novamente aprender a viver num mundo que, embora não fosse o seu, era aquele que havia adotado para ser o seu lar até que novamente, voltasse as suas origens.

Somente quando completasse o novo ciclo de sete vidas em lugares diferentes, poderia voltar a viajar rumo às estrelas, onde o restante de sua verdadeira família o esperava junto aos seus muitos filhos terrenos, uma vez que, na Terra, ele sempre seria apenas um adotado.

31/10/06 -VEM

Vanderleis Maia
Enviado por Vanderleis Maia em 08/10/2007
Reeditado em 15/08/2008
Código do texto: T686304