O FANTASMA

Saímos bem cedo.

Tínhamos que chegar a Cocalinho antes das onze horas. A estrada, como sempre, era um caos. Os buracos se sucediam uns aos outros e em poucos trechos, dos oitenta e quatro quilômetros da rodovia, conseguíamos passar dos 50 km por hora.

Nosso compromisso havia sido agendado uma semana antes. Falaríamos com o prefeito da cidade; ele deveria pronunciar-se sobre o loteamento e as exigências legais que havia para a regularização do projeto.

Durante a viagem, meu irmão dirigia, enquanto eu, a seu lado vez por outra o interpelava e perguntava sobre alguma coisa corriqueira.

Quando já estávamos perto da cidade, ele falou-me:

- Vamos aproveitar nossa ida à cidade para visitarmos um grande amigo.

Eu, absorto em meus pensamentos, apenas indaguei:

- Heim ?

- Vamos visitar um amigo que se mudou para Cocalinho, dizem que ele se encontra meio tantã. Respondeu ele.

- O que aconteceu com ele? Perguntei.

Meu irmão, querendo me colocar ciente de todo o drama do amigo, começou:

“Há muito tempo ele mora na cidade. Vivia em Goiânia e, quando se aposentou, deixou a família e se mudou para esta cidade. Depois de algum tempo, quando uns amigos vieram visitá-lo, encontraram-no falando da namorada que havia arranjado e que havia morrido. Na realidade, ninguém conseguia entender o que ele falava, por isso alguns apenas escutavam, não lhe dando atenção e procuravam mudar de assunto.”

- Deve haver alguma explicação. Respondi.

-Talvez, só que até hoje ninguém sabe o que realmente aconteceu.

Depois daquele diálogo, ficamos mudos por longo período e só voltamos a falar quando uma vaca, que havia rebentado uma cerca de arame, invadira a estrada e encontrava-se deitada tranqüilamente no meio do caminho.

Depois de passarmos pela vaca, fomos seguindo, procurando escapar dos buracos que surgiam em cada curva ou mesmo depois de alguma lombada.

A rodovia que liga Goiás à cidade de Cocalinho no Mato Grosso está praticamente abandonada e deverá ficar muito tempo ainda sem asfalto. O movimento é pequeno e o interesse dos governantes é bem menor.

Sempre alegam falta de dinheiro.

Quase toda produção pecuária e agrícola é escoada por Goiás. Logo que saímos de Mato Grosso e ao atravessamos a ponte que une os dois estados, encontramos as rodovias com asfalto e estas levam a qualquer parte do Brasil.

Quando estávamos a menos de 2 quilômetros da cidade, passamos por uma bela morena de cabelos pretos, longos e lisos. Ao passar por nós, sorriu de forma maliciosa e insinuante. Era realmente uma mulher muito bonita. Se fosse eu quem estivesse dirigindo teria parado para lhe oferecer uma carona, mas como era outro, apenas lhe retribui o sorriso enquanto nos afastávamos.

Chegamos à cidade e logo fomos à Prefeitura tratar do assunto que nos trouxera àquele lugar.

Embora tivéssemos agendado nosso compromisso com o prefeito, fomos informados de que ele havia ido para a fazenda. Só voltaria na segunda-feira. Ainda era sexta e nós havíamos viajado para nada...

Em virtude disso, a única alternativa era retornar .

Quando saíamos da prefeitura, perguntei ao meu irmão sobre a visita que deveríamos fazer ao amigo, então ele respondeu:

- É mesmo! Vamos visitá-lo.

Como já estava perto das 12 horas, resolvemos almoçar e, somente depois, iríamos falar com o amigo dele.

A churrascaria, embora simples, estava bem servida de ventiladores de teto que amenizavam o calor da cidade mas esfriava toda e qualquer comida que viesse ser colocada sobre a mesa.

A carne era de boa qualidade, porém a alface e a salada ficavam a desejar, por isso apenas me servi de carnes, arroz e uma farofa preparada com pequenos pedaços de carne que haviam sido recicladas do churrasco do dia anterior. O feijão também tinha boa qualidade.

Sempre vemos isso em pequenos restaurantes e churrascarias de beira de estrada ou mesmo de pequenas cidades. Nada se perde, tudo se aproveita.

O calor estava de rachar mamona. Ainda deveria demorar alguns dias antes de a chuva cair. Na região Centro-oeste as chuvas somente começam, para valer, depois de setembro.

Tomamos refrigerante após o almoço e, depois, com um pouco de coragem, nos dirigimos ao carro para irmos procurar o amigo de meu irmão.

Ele não estava em casa. Ficamos sabendo que se encontrava na beira do rio. Seguimos para lá e logo o encontramos sentado debaixo de uma manguba. A árvore havia sido plantada na beira do rio onde havia uma praça bem junto ao porto da cidade.

Quem conhece o Araguaia e a cidade sabe e conhece os detalhes que aqui são descritos. O porto tem uma rampa e uma escada e serve de caminho para muitos. As águas naquela região correm mansamente.

Ele, sentado do jeito em que se encontrava, parecia sonhar. Seu olhar estava distante como se estivesse esperando por alguém que viria das águas. Aproximamos-nos e somente quando chegamos a seu lado é que ele nos viu em pé, olhando-o.

Quando paramos, ele ficou alguns segundos nos olhando como se fôssemos todos para ele estranhos. Eu era, mas meu irmão o conhecia já há muitos anos e, mesmo assim, ele demorou alguns segundos para reagir e nos cumprimentar.

No intervalo, entre sua apatia e o ato de nos cumprimentar, pude viajar e analisar a figura que se encontrava sentado no banco só com seus pensamentos.

Deveria ter uns setenta anos, os cabelos quase todos brancos, haviam sido pintados. A calvície se pronunciava na fronte, mas ainda não tomara totalmente a cabeça do Josafá.

Este era seu nome.

Ele parecia cansado e ao mesmo tempo sadio.

Quando nós o cumprimentamos, ele pareceu acordar de um sonho que o mantinha longe, então disse:

- Meu amigo, há quanto tempo, vamos, sente-se.

Meu irmão apresentou-me ao amigo de longa data e ficamos algum tempo conversando sobre banalidades e das coisas corriqueiras da cidade. Em certo momento da nossa conversa ele nos interrompeu e sem mais delongas, perguntou-me:

- Seu irmão lhe falou de minha loucura ?

Eu, que havia sido pego de surpresa, fingi inocência e respondi:

- Loucura, que loucura?

Josafá, que naquele momento parecia estar disposto a falar de seu problema, disse:

- Bem, é que dizem por aí que estou meio louco, embora eu tenha contado toda minha estória com detalhes, ninguém acredita que seja verdade.

- Está disposto a falar dela agora? Perguntei.

- Claro, mesmo que você também possa achar que eu sou realmente louco.

Naquele momento meu irmão sentia o desconforto, por estar diante do amigo e ter-me falado sobre o problema dele. Parecia que ele havia lido seu pensamento, por isso o seu desconforto.

Depois de uma pequena pausa, ele começou:

“Já faz uns quinze anos que o fato ocorreu. Eu havia chegado de mudança na cidade. Estava disposto a morar aqui em definitivo. Estava aposentado, com os filhos criados, resolvi morar aqui, por ser um local tranqüilo e ficar a beira do rio que eu adoro. A mãe dos meus filhos morreu num acidente há mais de 17 anos, por isso eu queria viver aqui e aproveitar os anos que restam de minha vida, fazendo aquilo de que mais gosto”.

Ele parou um pouco a narrativa, enfiou a mão no bolso da bermuda “jeans” e tirou dele um maço de cigarros meio amassado e uma caixa de fósforos. Depois de acender o cigarro e dar uma tragada e soltar lentamente a fumaça, voltou à narrativa:

“Como eu ia dizendo, eu não tinha compromissos com nada, portanto queria viver o resto dos meus dias do jeito de que eu mais gosto. O contato com a natureza é para mim motivo suficiente para minha mudança de uma cidade grande para um local como este”.

Eu estava um pouco incomodado com a fumaça do cigarro; mudei-me de local e pedi que continuasse. Aleguei que era alérgico a fumaça de cigarro, muito embora eu tivesse fumado por vários anos.

Ele, ao notar minha preocupação, jogou o cigarro no chão e pisou sobre ele e depois continuou:

“Um mês depois de estar morando aqui, eu estava sentado justamente neste banco, quando uma moça passou pela praça e sorriu para mim, com certo ar de malícia. Eu que já me encontrava viúvo, morando sozinho, resolvi arriscar e retribui o sorriso, enquanto tentava puxar conversa, solicitando uma informação. Não tive nenhum acanhamento em me insinuar para ela, procurando assim uma aventura ou algo parecido”.

Acendeu novo cigarro, deu nova tragada, soltou a fumaça pelas narinas e depois de olhar longe como se procurasse alguém, continuou:

“Depois daquele primeiro encontro, passamos a nos encontrar durante toda a semana naquele lugar e após esse período já estávamos indo para cama e assim ficamos tendo este relacionamento amoroso por mais de dois meses. Depois ela não mais apareceu em minha casa. Devido à saudade que eu sentia, fui procurá-la. Eu sabia o endereço que ela me havia fornecido.

Num dia de domingo, dirigi-me ao endereço que ela disse ser sua casa. Eu estava com receio da reação dos pais dela, em virtude da grande diferença de idade existente entre nós. Ao chegar a sua casa, vendo que a porta estava fechada, bati palmas. Depois de momentos a janela abriu-se e apareceu um senhor de idade e falou”:

- Um momento, por favor, que já vou atendê-lo.

“Após minutos que pareceram horas, ele abriu a porta e pediu que eu entrasse. Enquanto entrava, ia observando os detalhes daquela casa simples, porém bastante organizada e limpa. Sobre uma mesinha no canto da sala havia um porta-retratos e nele a foto dela. Ao ver o foto da amada, meu coração se encheu de alegria. Ao parar no meio da sala, o dono da casa, pediu-me que eu me sentasse.”

- Por favor, se assente, disse ele:

“Sentei-me num sofá já bastante gasto”. O ancião, que se chamava Antônio, após sentar-se em frente, perguntou:

- O que realmente o senhor deseja?

Eu que procurava minha amada fui logo falando:

- Seu Antônio, é sobre a sua filha. Disse-lhe.

- Minha filha, o que tem ela?

- Bem, é que eu gostaria de falar com ela.

Quando acabei de pronunciar a frase “gostaria de falar com ela” notei que seus olhos arregalaram-se e ao mesmo tempo dizia:

- Não é possível falar com ela, seu moço.

- E por quê? Perguntei.

Ele me olhou demoradamente e, depois de alguns segundos, respondeu:

- Por acaso o senhor está brincando comigo?

- Não, e por que eu brincaria com o senhor?

- Porque a minha filha, que o senhor está procurando, já morreu.

- Morreu?!

- Claro, toda cidade sabe do acontecido.

- Menos eu. Respondi e acrescentei: Já faz dois dias que eu não a vejo.

- Sabe, seu moço, o senhor deve estar enganado de pessoa.

- Por quê?

- Porque ela morreu há quinze anos.

Imaginei que deveria estar havendo algum engano sobre a pessoa. Talvez a foto daquela mulher que estava em cima da mesa, no canto da sala, não fosse de sua filha e talvez de outra pessoa. Enquanto eu procurava encontrar uma explicação, ele foi até a mesa e trouxe o quadro que continha a foto da mulher que eu procurava. Ao se aproximar ele disse.

- Aqui está a foto de minha filha que morreu.

“Naquele momento eu não podia acreditar que aquilo que estava acontecendo fosse real e então perguntei-lhe”

- De que sua filha morreu?

- Parto. Ela engravidou de um viajante que apareceu por aqui que depois desapareceu sem deixar notícias. Quando ela soube que ele havia desaparecido, começou a passar mal e logo veio a morrer. Alguns dizem que ela tomou veneno. O moço sabe como é cidade do interior, tem poucos recursos.

Depois do relato do seu Antônio, eu não sabia se estava sonhando ou se tudo o que estava ouvindo era apenas uma brincadeira de mau gosto. Depois de mais alguns detalhes que foram passados, saí e então começou meu pesadelo.

Quando Josafá parou o relato, notei que ele já havia fumado cinco cigarros e que algumas lágrimas haviam escorrido pelo rosto. Ele tentou com o dorso da mão interromper a descida das lágrimas. Elas continuavam a escorrer e descer rosto abaixo.

Parou o relato e, depois de enxugar o rosto, pediu desculpa e então falou:

- Eu sei que é difícil de acreditar na minha história e o mais impressionante é que eu estive com ela na cama várias vezes, dormimos juntos e um completava o outro.

Olhei para ele e disse:

- Sua estória é realmente muito estranha e difícil de acreditar, mas sei também que existem fatos que nunca conseguimos explicar.

Eu não queria continuar a conversa para não fazê-lo sofrer ainda mais, então encerrei o assunto.

Ele sorriu de forma resignada e enquanto se levantava, falou:

- Vamos até minha casa que lhes vou mostrar a foto que o pai dela me deu.

Saímos e fomos andando pela rua rumo a casa dele que ficava ali perto. Chegamos a uma casa pequena, mas aprazível. O local era o ideal para família de poucas pessoas. Entramos e depois de sentarmos, ele pediu para esperar, pois ia buscar a foto do “motivo da sua loucura”. Minutos depois, trazia na mão um porta-retratos e nos entregou.

Meu irmão olhou a foto, sorriu e me passou:

Quando peguei o porta-retratos e olhei a foto, um arrepio passou por meu corpo. Lembrei-me de que já havia visto aquela mulher. Ela havia sorrido para mim quando estávamos entrando na cidade. Ao notar que havia acontecido alguma coisa estranha comigo, meu irmão perguntou-me:

- O que foi?

- Nada! Menti.

Eu não queria colocar mais lenha na fogueira e quando saímos e já voltávamos para casa falei ao meu irmão:

- Lembra-se da mulher que eu disse ter visto quando estávamos entrando na cidade?

- Sim, respondeu ele. Por quê?

- É ela, tenho certeza de que é ela.

Meu irmão riu e falou:

- Não me venha você também com suas loucuras.

No momento eu não podia mais prolongar a conversa e tentar provar um fato insólito como aquele e, mentindo, falei:

- Estava brincado, estava apenas testando você.

Ao que ele respondeu:

- Ainda bem, o hospício já não agüenta mais, tantos loucos!

Embora eu soubesse que eu não havia tido uma alucinação, encerrei a conversa, mas, como num ato de brincadeira, emiti o som que se vê em filmes de terror.

-UUUUUUUuuuuuuuu.

Ele começou a rir e a única coisa que me restava fazer era rir daquele estranho caso. Embora eu soubesse que outros estariam chorando pelo mesmo motivo.

27/08/06-VEM

Vanderleis Maia
Enviado por Vanderleis Maia em 17/10/2007
Reeditado em 18/07/2018
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