O FANTASMA DE ANA

O FANTASMA DE ANA

No momento em que eu ia falar, ela pediu que eu me calasse, não queria ouvir nada que pudesse fazê-la sofrer.

Eu insisti, porém suas palavras eram de forma tão contundentes que resolvi calar-me e ouvir o som que vinha de algum lugar. Nos contornos e ondulações das cordas que iam sendo tocadas, sentia dentro do peito as cordas dos sentimentos vibrando e mesmo que tentasse ir contra aquilo ia sendo consumido lentamente por uma visão surreal de uma realidade que parecia querer fazer-se presente naquele momento.

Como, estão, todos os sentimentos? Seria apenas uma maquina que iria executar um procedimento que antes fora programado por algum tipo de técnico em informática?

Parecia, no entanto, que nada daquilo tinha valor diante de suas argumentações que para mim eram apenas palavras vazias sem nenhum sentido e valor.

Ela levantou-se, pegou a bolsa que estava sobre a mesa, olhou-me lentamente e, com certo ar de desafio, virou as costas e rebolando as ancas saiu, pisando apressada como se tivesse algo a fazer.

Calei-me e fiquei por mais de cinco minutos estático, com o olhar fixo na porta que acabara de se fechar.

O perfume dela ainda rescendia em todo o ambiente, eu poderia deliciar-me com ele ainda por alguns minutos.

Quando o telefone tocou, não imaginei quem poderia ser naquele momento em que eu tentava quebrar aquele elo que me ligava a uma decepção ainda muito recente.

Somente depois de atender ao telefone é que olhei o visor e lá estava escrito o nome dela. Do outro lado, apenas o silêncio, a mudez.

Insisti, tentando com que ela falasse alguma coisa para eu ouvir.

Uma voz masculina, do outro lado, disse:

-Por acaso você conhece a dona deste celular?

-Sim, respondi de pronto.

Ele, então, de forma teatral e sinistra disse:

- Então fique sabendo que ela acaba de ser atropelada e faleceu.

Não podia acreditar no que eu tinha ouvido.

Ainda tentei fazer com que o homem dissesse mais alguma coisa, mesmo que fosse o local aonde eu deveria achá-la. Mas apenas um som insistente dava o tom do momento.

O aparelho havia sido desligado.

Como achá-la e aonde eu poderia procurá-la?

Vesti-me mais depressa do que ela, quando havia saído. Apertei o botão do elevador e desci ofegante como se estivesse correndo uma maratona.

A emoção me tornava frágil, muitas vezes ficava cansado somente em pensar certos fatos. Dizia meu médico que era problema de coração. Então eu retrucava ,perguntado se de amor ou de doença.

Chegando à rua, uma multidão se aglomerava em torno de algo que eu ainda não podia definir, porém meu pensamento dizia que era ela.

Aproximei-me de forma lenta, por sentir medo de confirmar minhas suspeitas. Fui abrindo caminho entre a multidão e quando cheguei ao meio da rua, lá estava ela, estirada no chão de forma grotesca, praticamente toda deformada.

Nem mesmo seu perfume eu podia sentir. Somente aquele cheiro forte de sangue, misturado com os suores dela e outras pessoas.

Aproximei-me dela, tentando ainda com esperança encontrá-la viva.

Cheguei perto, peguei seu pulso, somente um corpo frio e vazio era o que existia ali. Quando me levantei, os bombeiros acabavam de chegar e mesmo sem poder acreditar, ouvi a voz dela que dizia:

-Era este o meu destino, não se culpe, eu quis assim.

Olhei para o lado, tentando encontrá-la, mas ela a morta apenas estava dentro de minhas lembranças, eu não poderia vê-la.

Foi quando senti o toque frio no meu braço, ao me virar, de frente a mim, uma mulher de beleza estonteante perguntou-me:

-Você a conhecia?

-Sim, por que, também a conhecia?

Ela a amiga sorriu ao mesmo tempo em que dizia:

- Era uma grande amiga, mas nos últimos tempos estava com uma idéia fixa de morte.

-Suicídio? Perguntei.

-Não, ela dizia que sentia que ia morrer a qualquer momento.

E complementou dizendo:

- Eu tentava afastar-lhe essa idéia.

- E agora, o que fazer?

Ela, sorrindo disse-me:

- Vou telefonar para o que resta da família dela para providenciar o enterro.

Saímos um para cada lado, somente nos vimos outra vez no dia seguinte, quando a sepultura já estava sendo lacrada.

Ela, mais uma vez aproximou-se e disse:

Aonde vai agora?

-Não sei. respondi.

-Venha comigo, que vou lhe mostrar uma coisa.

Saímos, mesmo sem pensar entrei no carro dela e ela dirigia, enquanto eu a olhava de maneira desconfiada.

Ainda nem sabia o nome dela, e, no entanto, tinha por ela grande empatia.

Depois de uma hora dirigindo, parou na frente de um luxuoso prédio. Descemos e entramos no elevador.

Ela apertou o botão que naquele momento não reparei qual era. Somente quando o elevador parou olhei e vi que o andar era o 13.

Saímos e somente depois que ela abriu a porta do apartamento eu perguntei:

-Afinal o que você quer mostrar-me ?

-Está preocupado com alguma coisa?

- Não, menti.

Na realidade minhas preocupações eram muitas.

Ela esgueirou-se por trás da mesa que ocupava o centro da sala e entrou num cômodo que eu não sabia se era quarto ou algum escritório. Minutos depois vinha trazendo em sua mão um envelope de cor amarelada bastante volumoso.

Aproximou-se de mim, com um sorriso enigmático e entregou-me o envelope, enquanto dizia:

- Tome é seu, ela pediu para lhe entregar.

E arrematou dizendo:

- Este envelope só poderá ser aberto depois de um mês.

- Por quê?

- Não sei, é apenas um desejo dela. Depois você irá entender.

Peguei o envelope e enquanto o manuseava, tentava descobrir o que havia nele, pelo enorme volume. Trinta dias era muito tempo, porém iria satisfazer o último desejo daquela mulher que havia sido para mim muito importante.

Despedi-me da misteriosa mulher que disse chamar-se Ana, tomei o elevador e desci.

Quando cheguei à portaria, lembrei-me de que havia esquecido sobre a mesa as chaves do meu carro que ficara no cemitério, no momento que havia entrado no carro de Ana.

Subi novamente o elevador, toquei a campainha e como ninguém atendesse, peguei a maçaneta da fechadura da porta e girei-a. Quando abri a porta, vi-me em frente a um enorme apartamento totalmente vazio. Pensei ter errado o andar ou o número do apartamento, mas logo desisti da idéia, uma vez que as chaves do meu carro estavam lá, jogadas no chão.

Naquele momento quase pirei. Depois de percorrer todos os cômodos do apartamento e certificar-me de que ele estava vazio, desci e fui à procura do porteiro para tomar informações sobre a Ana.

Chegando à portaria, ele se encontrava lendo uma revista em quadrinhos e quando me viu aproximar-se, perguntou:

- Que deseja ?

- É sobre a Ana!

- Ana, que Ana ?

- Aquela que mora no apartamento 113.

- Moço, o senhor deve ter-se enganado de apartamento e de pessoa.

- Por quê ?

- Porque o apartamento 113 já está vazio há vários dias e neste prédio não mora nenhuma Ana.

- Tem certeza?

- Claro, eu trabalho aqui já faz mais de 5 anos.

Pirei outra vez. Agradeci ao porteiro e saí dali cambaleando, como se estivesse bêbado e até o ouvi dizer:

- Ei, moço, está se sentindo bem, precisa de ajuda?

Sim eu precisava de ajuda, mas não seria dele. Peguei um táxi e disse:

-Direto para o cemitério.

Precisava pegar meu carro e ir embora para casa, tentar refazer minhas idéias e olhar aquele envelope, pois nele deveria haver a resposta para o enigma. Depois do banho, peguei o envelope e por diversas vezes tentei abri-lo, mas uma voz que estava dentro de mim dizia: “espere e satisfaça o último desejo dela”.

Tudo aquilo era muita coisa para minha cabeça que, naquele momento, se tornava ainda mais confusa. Mesmo assim resisti a tentação de violar um compromisso e, pegando o envelope que se encontrava sobre o sofá, levei-o até a escrivaninha e coloquei-o dentro da gaveta e a fechei.

Para fugir ainda mais da tentação, peguei a chave e joguei-a pela janela rumo á piscina, depois de certificar-me que não havia mais ninguém lá embaixo. Já passava das onze da noite e quase todos dormiam.

Peguei uma garrafa de vinho que existia na geladeira, abri-o e, enquanto degustava o delicioso cabernet, meu pensamento ia longe, procurando, através das recordações, entender tudo que ocorrera nas últimas 72 horas.

Quando acordei, vi que o resto da bebida havia-se espalhado sobre o tapete que ficava perto do sofá. Eu havia sido vencido pelo cansaço e dormira ali mesmo. Muitas emoções haviam-me tornado exausto e com a ajuda de quase toda a garrafa, o sono viera logo.

Ainda bem!!

Os dias haviam ficado mais compridos, pareciam ter cada um muitas horas além do normal, tal era minha ansiedade para que ele passasse para que eu pudesse abrir o envelope que guardara na gaveta da escrivaninha.

Todos os dias de ansiedade, haviam feito de mim um autômato, que apenas executava as tarefas diárias, sem participar de outra coisa que não fosse apenas o normal e necessário.

Os amigos que me questionavam, em tom de brincadeira, costumavam dizer:

- Deve ter encontrado outra mulher e está apaixonado.

Somente eu sabia dos acontecimentos e mesmo que eu tentasse falar para alguém seria taxado de louco. Por isso resolvi ficar calado e guardar só para mim segredo tão cruel.

Quando, afinal, chegou o 29 dia, imaginei que não poderia agüentar a expectativa de esperar mais um dia, para pôr fim àquele sofrimento que já se prolongava a tanto tempo.

Acordei bem cedo, quando ia para o escritório rumo à mesa onde estava o envelope, o telefone tocou.

Do outro lado uma voz de mulher disse-me:

- Antes de qualquer coisa, vá à missa que será rezada hoje. Ela é às 10 horas.

Parecia estranho alguém falar de missa, naquele momento. Todos sabiam que essa não era uma das minhas atividades prediletas. Mesmo assim, voltei para o quarto e fui ao banho, para cumprir mais aquele ritual que ia fechar de uma vez por todas as angústias que eu estava vivendo nos últimos 30 dias de minha vida.

Quando entrei na igreja, deveria haver pouco mais de dez pessoas. Lá no púlpito o padre fazia uma preleção e desfiava um rosário das boas qualidades dela. Eu também tinha muitas boas recordações.

Eu olhei em todas as direções, dentro da igreja, tentava encontrar a misteriosa Ana. Queria uma explicação, mesmo sabendo que aquele fato jamais seria explicado.

Não a vi, apenas alguns conhecidos da falecida estavam lá, ela não tinha mais parentes, além da tia que providenciara o enterro e a missa e nem mesmo ela estava ali.

Estranhei.

Quando saí da igreja, parecia um louco e fui dirigindo de certa forma irresponsável, corria para casa, a fim de abrir e ler o que havia no envelope que eu já guardava há tanto tempo.

Minha cabeça parecia um redemoinho de pensamentos revoltos, uns querendo sobrepor-se aos outros. Eram muitas as interrogações.

Estacionei o carro na garagem e subi correndo os andares que havia. Eram apenas quatro. O elevador estava demorando demais. Com a corrida até esqueci-me de ficar cansado como sempre acontecia em casos de grande emoção.

Depois de ir ao escritório, lembrei de voltar à cozinha para pegar uma faca e violar a gaveta. Eu havia jogado fora a chave. Abri a gaveta, peguei o envelope e avidamente como se estivesse comendo alguma coisa gostosa e suculenta, o abri sem nenhum cuidado em mantê-lo inteiro. De dentro deste caíram sobre o colchão da cama vários fotos, cartas, papéis e outro envelope tamanho ofício de cor branca, bastante volumoso e lacrado.

Peguei o pequeno envelope e o abri num ímpeto de ansiedade e de lá retirei uma correspondência que fora escrita à mão. Letra dela e no cabeçalho li.

“ Meu amor”.

Fui seguindo lentamente as palavras escritas, como se estivesse tentando absorver todo aquele drama que ela ia narrando e quando cheguei ao final eu entendi a razão de sua morte. De tudo que escreveu o que mais me tocou foi o que ela disse:

“ -Sabendo de minha doença incurável, não quis fazer você sofrer, por isso, resolvi brigar e sair de sua vida de uma forma pouco recomendável. Era preciso ser assim”

E finalizou dizendo:

“-Minha mãe irá entregar-lhe um envelope”.

Minha mãe? Pensei. Deve ter-se enganado de pessoa.

Coloquei a carta de lado e fui olhando as fotografias, cartas e outros papéis sobre a cama. No meio de tantas lembranças estava uma fotografia de Ana, tendo em seus braços uma criança de colo. No verso,, uma pequena anotação que dizia. Lembrança de quando eu tinha 5 meses.

Naquele momento, minha cabeça começou a rodar e foi essa a última coisa de que me lembrei.

Quando acordei, vi-me deitado em uma cama de hospital, meu braço imobilizado servia de caminho para a entrada do soro em meu organismo.

Apertei um botão que havia do lado da cama para chamar a enfermeira e quando a porta se abriu, quem primeiro apareceu foi ela, sempre linda e deslumbrante, a mulher de minha vida. Seu perfume tomou conta do ambiente.

Sem nada entender, apenas balbuciei algumas palavras antes de ficar novamente desacordado:

- O que aconteceu?

Somente quando reabri os olhos e a vi do meu lado sentada sobre a cama ela me disse:

- Seja bem vindo à vida. Seu cansaço foram os sintomas que fizeram você vir parar aqui no hospital. E complementou:

- Ainda bem que eu o encontrei a tempo de trazer-lhe para cá.

Mesmo sem entender nada do que acontecia ou tinha acontecido, eu suspirei fundo e disse:

- Ufa... estou vivo e você?

Ela sorriu, enquanto dizia:

- O que você acha?

Eu não sabia mais o que pensar, nem tampouco o que deveria falar-lhe, então resolvi ficar calado, sorrir e fingir que nada acontecera.

Será?

28/10/07-VEM

28/10/07-VEM

Vanderleis Maia
Enviado por Vanderleis Maia em 30/10/2007
Reeditado em 07/10/2010
Código do texto: T715629