Retorno à grande muralha

Enquanto eu esperava a partida do veículo, começou a voltar ao pensamento às últimas lembranças que se haviam alojado dentro de minha cabeça e sempre me levavam àquele lugar.

Tantas vezes tentara abster-me de relembrar fatos tão estranhos, porém, aquele momento que anunciava uma partida, parecia que eu era obrigado a retornar ao passando já bastante distante para recordar fatos que eu sempre evitava trazer para os meus pensamentos. Era como se eu voltasse a sofrer todas aquelas situações de novo.

Instintivamente balancei a cabeça como se pudesse, com aquele movimento, espantar as lembranças que me cutucavam a alma e me obrigava a sentir tudo de novo de forma que me fazia sofrer.

Olhei para fora através das janelas do veículo tentando com isso afastar os pensamentos ao mesmo tempo em que procurava, com minha visão, achar algum atrativo do lado de fora que pudesse me desviar de um retorno ao lugar que eu não desejava.

Do lado de fora várias pessoas passavam despreocupadamente e ninguém poderia imaginar que dentro do veículo, perto dali, pudesse haver um espírito inquieto e ansioso com a partida que há muito desejara.

Olhei novamente o relógio que se encontrava à minha frente e notei que apenas 15 minutos haviam passado desde que eu me instalara naquela cadeira que eu reservara para minha viagem. Eu sabia que ainda alguns minutos seriam necessários para que o veículo iniciasse a viagem de volta ao lugar que eu desejava.

Fechei os olhos tentando com isso aplacar minha ansiedade, porém neste momento os pensamentos voltaram ainda com mais força, pois nada mais me tirava a atenção naquele momento.

Sem mais demora, levantei-me e me dirigi a Toilette onde consegui num pequeno refrigerador uma garrafa de água que ainda se encontrava fria. Depois de beber a água com sofreguidão, joguei o vasilhame no lixo e retornei a minha cadeira. Decidi que teria que enfrentar todos os fantasmas que tentavam de todas as maneiras se avizinhar de minha mente e que eu procurava afastá-los para não ter que sofrer.

Procurando afastar as lembranças que não eram das melhores, tentei desviar minha mente para as praias que visitara naqueles dias de férias. Mas, sempre que procurava visualizar minha imagem andando por aquelas areias brancas e finas, surgia os invasores que vinham colocar-se dentro do meu pensamento como se fossem os eternos penetras que procuravam interferir e comandar os meus pensamentos.

Consciente de que nada poderia me afastar daqueles momentos de angústia e tristeza, resolvi voltar ao local onde eu deixara algo inacabado e que precisava ser resolvido, sob pena de muitas vezes ter que revolver a mente as lembranças que naquele momento eu tentava apagar.

Libertando a mente, senti como se estivesse partindo em uma nave de velocidade incrível e em fração de segundos eu me encontrava naquele mundo de que já há muito tentava esquecer para não ter que novamente sofrer.

Diante de mim a enorme muralha servia de anteparo ou proteção de alguma coisa que eu ainda não podia entender. No momento, apenas uma imagem me vinha à mente, que seria a muralha da China tão conhecida e visitada.

A diferença, no entanto, era o modo como esta teria sido construída. Ela era constituída de enormes blocos de cristal, como se fossem diamantes lapidados que decerto poderia instigar a cobiça e o desejo de qualquer incauto que ousasse andar por aqueles lugares.

A cena, a princípio parecia ser deslumbrante, pois enorme claridade era emitida pela muralha em determinados momentos, quando eram refletidos os raios do sol, incomodavam.

Com minha capacidade de análise, tentava entender qual seria o objetivo de construção tão fantástica.

Durante vários minutos andei percorrendo ao lado da enorme muralha que se perdia no horizonte. Embora a construção não fosse muito alta, notei que seria difícil de escalar em razão da natureza dela.

Os enormes blocos de cristal que constituíam a muralha, além de translúcidos eram lisos e até pareciam ter sido cobertos com uma película de um material que ajudava a escorregar.

Do lado onde eu me encontrava, apenas uma vegetação rasteira compunha a cena daquelas pradarias que se perdiam na mesma proporção em que ia a muralha. Do outro lado eu ainda não podia imaginar o que poderia haver, pois ainda não conseguira em momento algum sair do chão.

A muralha embora não fosse tão alta como a da China, talvez impedisse sua ultrapassagem ainda mais que aquela, em razão do material de que fora feita.

Andei por um tempo que não pude determinar, em razão de não estar com relógio, porém imagino que tenha sido mais de duas horas, sem, no entanto, conseguir encontrar em nenhum lugar da imensa muralha um local onde eu pudesse escalar.

Em virtude da vegetação rasteira que existia do lado em que eu estava, não consegui em momento algum encontrar nenhum galho ou mesmo qualquer pau que pudesse me servir de escada e pudesse me ajudar na escalada e ver o que se encontrava do outro lado.

À medida que o tempo passava aumentava minha curiosidade. Notei que o sol que antes se encontrava no meio do céu, começava a se deslocar para o outro lado da muralha e pela velocidade com que se deslocava entendi que teria pouco tempo com luz.

Durante todo o dia, andando ao lado da muralha, procurei uma brecha ou uma passagem que pudesse permitir minha passagem para o outro lado. Enquanto o tempo passava, mais eu queria transpor a muralha que se prolongava além de onde minha visão alcançava.

Durante a caminhada pequenos animais passaram correndo, enquanto alguns pássaros voavam despreocupadamente pousando nos arbustos que se espalhavam por toda a região.

Com a chegada da noite, minha preocupação passou a ser maior e diante daquela insólita viagem, sentei-me e encostando minhas costas nos blocos de cristal, tentei imaginar o que deveria fazer naquele momento.

Juntei alguns gravetos, algumas folhas secas e após várias tentativas conseguia acender um fogo que deveria me aquecer durante algum tempo, pois o material de combustão era escasso.

Passei a noite praticamente acordado, entre um cochilo e outro. Ouvi diversas vezes vozes que pareciam vir do outro lado da muralha. Em certos momentos fiquei escutando atentamente, procurando descobrir o rumo das vozes, entretanto muito raramente conseguia distinguir os sons que se tornavam quase que inaudíveis.

Fui vencido pelo cansaço e adormeci encostado no paredão frio de cristal e somente quando o sol começou a surgir novamente eu acordei. Então, espreguiçando-me coloquei os músculos e ossos nos lugares. O corpo doía em todos os lugares e durante algum tempo espreguicei-me tentando me recompor-me

Abri a sacola e retirei dela alguns biscoitos, fui comendo devagarinho. Precisava de muita salivação para diluir o alimento. Para beber somente me restava uma garrafa de água e eu sentia que tinha que economizar, pois não sabia como seria o dia nem se iria encontrar algum lugar onde pudesse encontrar o precioso líquido.

Olhei atentamente a muralha e tentei avaliar a altura dela e pelo que pude perceber deveria ter um pouco mais de três metros.

A largura, bem a largura eu não podia imaginar, pois não conseguira nada que me pudesse colocar à altura dela e vislumbrar o outro lado ou mesmo o topo dela.

Após alguns segundo avaliando a situação, a única alternativa que restava era continuar em frente. Deveria existir em algum lugar uma passagem ou uma escada ou outro objeto qualquer que pudesse servir de apoio para subir no paredão de cristal.

E assim segui, por mais de dois dias, tendo conseguido apenas encontrar no caminho um pequeno riacho que nascia por debaixo da muralha e se perdia nos campos que se estendiam em todas as direções.

Minha alimentação teve um pequeno acréscimo de alguns frutos que encontrara num lugar que parecia ter sido um antigo pomar que ficava bem perto do córrego que seguia rumo ao leste, em sentido contrário à muralha.

Vi alguns animais correrem apressados e com medo de algo que somente eles viam. Tudo parecia estar em perfeita paz, daquele lado da muralha, o que impedia que eu pudesse vasculhar o outro lado, que eu imaginava ser mais bonito do que aquele em que eu estava.

Em todo período em que tinha ficado por ali, tentando descobrir uma passagem ou algo que me possibilitasse transpor aquela parede de cristal, no último dia, parecia que ficaria louco. Em momentos da minha caminhada, beirando o muro, ouvi conversas, risos e gritos que pareciam ser de crianças. Gritei, tentando me comunicar com os outros, mas nenhuma resposta veio em socorro ao meu anseio.

Quando o sol começava a ser encoberto no distante horizonte, as vozes se calaram e novamente aquele silêncio sepulcral tomou conta do imenso espaço vazio que se estendia até onde alcançava minha visão.

Mais uma noite me esperava para curtir na solidão onde a única coisa que se via era nada. Quando a lua começou a despertar, ouvi novamente sons e palavras de pessoas que pareciam vir do outro lado e, novamente num ato de solitário desespero, gritei várias vezes, tentando chamar a atenção. Nada.

No alvorecer do sétimo dia, quando os primeiros raios de sol se anunciavam no horizonte distante, levantei-me lentamente, tentando com isso colocar-me inteiro novamente. Dormir sentado ou deitado no chão não é nada agradável. Naquela noite não fizera frio, como em outros dias, mas as vozes continuaram por toda a noite.

Em certos momentos pareceu-me que também havia música sendo tocada. O cansaço havia-me vencido, por isso conseguira dormir, mesmo sendo um sono nada reparador, devido às inúmeras vezes que acordava.

Eu tentava descobrir como tinha ido parar naquele lugar. Sabia que deveria existir uma razão. Mas tudo ficava apenas dentro do plano das especulações.

Eu queria ir embora, já não mais desejava transpor a muralha, esperaria o momento e a hora certa. Só havia um problema: Eu não sabia como voltar nem mesmo como havia chegado àquele lugar.

Quando me conscientizei disso, fiquei aliviado. Fechei os olhos e respirei fundo, tentando com isso reequilibrar-me, foi então que ouvi uma voz dizer:

-A passagem, por favor!!

Abri rapidamente os olhos e vi-me sentado em confortável poltrona e ao lado desta, em pé, uma mulher estava com o braço esticado esperando que lhe mostrasse a passagem.

Meio assustado e ainda sem entender, respondi:

- Passagem, que passagem?

- Moço, sua passagem para a viagem.

-Ah!. Sorri, com certo ar de desapontamento e enfiando a mão no bolso da calça, tirei de lá o bilhete e entreguei-o a mulher, enquanto lhe perguntava:

- Este ônibus vai para onde mesmo?

Estava perguntando, porque a muralha tinha- me deixado fora de sintonia com o mundo, onde eu agora estava.

Ela, sorrindo, com certo ar de resignação, respondeu:

- Senhor, estamos indo para o destino que você escolheu.

Mesmo com a resposta dela, eu estava sem entender nada, mesmo assim, resignei-me e depois de pegar o bilhete de volta, coloquei-o no bolso da camisa, fechei meus olhos e retornei novamente a minha viagem.

O destino pouco importava, queria apenas viajar e ir a qualquer lugar, onde houvesse outros espaços para serem explorados ou visitados.

Tudo, afinal, era apenas fruto de um pensamento.

05-12-07

Vanderleis Maia
Enviado por Vanderleis Maia em 11/12/2007
Reeditado em 07/08/2008
Código do texto: T773237