O primeiro a ver quem eu era!

O sono não vinha e estava impaciente. Duas horas? Três? O travesseiro sempre me foi um péssimo amigo. Sempre insiste em me dizer terríveis verdades sobre cada último dia. Foi assim por minha vida inteira. Temo que isto nunca mude. Levantar agora e ir até a sacada não é boa idéia porque a noite está muito fria. Aliás, este tem sido um mês frio. Esta tem sido uma vida fria.

Arrependido por ter feito meu dia igual a todos. Triste por não ter podido experimentar mais. Com trinta e seis anos e quase nada pra contar pra quase ninguém.

Tenho estado tão só nos últimos tempos. Nem internet me satisfaz. Olhei todos os sites que existem. Pelo menos os que considero interessantes. Agora, nada de Nymex, Ozires.gov, merchantile.com ou apolo11.com. O que eu queria mesmo era dormir. Dormir um pouco. Mas tenho que passar pelo deitar e não dormir. Tenho que passar pelo lembrar do nada que fiz. Nada de cuidar do aquário. Nada de cuidar de mim. Nada de cuidar de ninguém. Não dar felicitações. Não cumprimentar as pessoas na rua. Se possível nem ir à rua. Pouco olhar para o espelho. Nada de barbeadores. Assim talvez eu me aproxime de quem eu sou. Sei que não sou este. Esta figura insone. Não posso acrescentar nada nem na minha vida, quanto mais na vida de outrem. Será que elas não entendem que não sou nem de longe alguém pra se ter por perto? O que será que terei que fazer para que se convençam que eu preciso estar sozinho. Um dia sem erros pode me deixar vivendo um pouco de paz. Um dia sem este apego todo pode me dar a oportunidade de deixar com que as coisas simplesmente sigam. E esta é minha maior dificuldade: deixar que as coisas sigam.

Terei que apelar para a “Seiva de Lótus” mais uma vez.

E no mesmo ritual eu me envolvo. Ampolas... Seringas... Ligas...

Por que eu pensei que seria diferente hoje? Por que eu acreditei ainda.

Uma gota esférica, vermelha brilhante, surge bem ao lado da agulha.

Por que eu preciso tanto disso para ser eu mesmo?

Só tenho tempo de guardar meus fetiches e seguir para a cama. Um emaranhado de lençóis tão antigos quanto eu mesmo. Restos, retalhos e farrapos do tempo em que eu olhava o mundo com os olhos de criança. Hoje nem olho mais nada. Tenho olhos mas não vejo. Tenho ouvidos mas não ouço. Vivo pra dormir e durmo para suportar o peso da minha vida. Quarenta e dois quilos mais magro que em minha adolescência, sinto que no meu corpo corre um líquido marrom, com gosto de infância e não é sangue.

Deito-me e lanço o monte de lençóis sobre mim. Gosto de dormir na mesma posição que as rainhas egípcias eram mumificadas. Gosto de sentir-me afundar na cama.

Ouço sons de sinos. Muitos sinos. É ele chegando pra me ver. Eu sei. Posso sentir sua presença em meu quarto. Mesmo de olhos fechados eu posso ver. É ele sim. Hoje está belíssimo. Reconheço-o pelo isqueiro que trás em uma das mãos. Reconheço-o por sua cara de reprovação que faz quando uso de meus artifícios para chamá-lo.

- Estou aqui. – Ainda tenho tempo de falar. Antes que que o sono devore minha vontade.

- Claro que você está aí. – Ouço uma resposta em seu sorriso, percebo um sorriso na resposta dele.

Logo sinto um peso sobre meu corpo. Um sufocamento. O coração dispara e sinto que quase não respiro. Ali naquele quarto empoeirado eu me sinto independente. Ele faz sua parte muito bem. Deixando claro quem ainda manda. E eu? Eu fico quieto. Sorvendo o momento. Ouvindo sinos descompassados com meu coração. Eu sou sozinho. Numa escuridão onde quase ninguém me entende. Qualquer dia desses vão me encontrar sufocado aqui. Alguns tolos ainda terão a audácia de proferir palavras de saudade. Alguém dirá que fui boa pessoa. Isto se não descobrirem o que guardo em meu armário. Se não olharem embaixo de minha cama quando vierem buscar meu corpo. Isto até me desnudarem para um banho. Isto até entrarem em minha esfera pessoal. Espero ter este tempo. Espero que alguém que nunca me veja diga o quanto fui bom, porque quem me conhecer nem ao menos segurará na alça de meu caixão. E pensar que elas insistem tanto.

Quando pensei que não suportaria mais a dor sobre meu peito, fui distraído por uma dor na lateral de minha cabeça. Por um momento jurei que Ele estava derramando algum vinho em minha boca e descendo pela garganta acabaria de me embriagar. Mas não era vinho. Poderia até ter a mesma cor sob a luz do relógio do Garfield, mas era quente e até calmante. Engoli quase que me engasgando. Senti um gosto ferruginoso. O mesmo gosto que senti quando o Yoda me acertou um soco na roda da História. O mesmo gosto que senti quando em casa, furei a língua para colocar um piercing. Tentei engolir mais uma vez, mas senti o lado direito do meu corpo como que inflando. Seria capaz de jurar que estava deformado. Que iria explodir. Não podia me mover. Estava caindo num sono estranho que não era o sono artificial que eu cultivava. Era um sono de calma. Uma vontade de ficar mais um pouco. Tentei sorrir, imaginando quem seria o primeiro a ver quem eu realmente era.