CANIBAIS
 
 
Eles haviam planejado esta viagem há muito tempo.
 
Começou como brincadeira no meio de uma bebedeira num barzinho lá pelas bandas do Morumbi em São Paulo, vários amigos reunidos tomando cerveja e jogando conversa fora, em determinado momento começaram a falar dos lugares que gostariam de conhecer. Um falou de Florianópolis, outro lembrou de Fernando de Noronha, e por aí foi... Gramado, Salvador, Argentina, Chile, Amazônia e até o Egito foi citado por um deles. No auge da euforia, Marcos propôs uma aposta: cada um escreveria em um papel o nome de um local para visitar e um resumo das atividades turísticas que gostaria de fazer, depois de todos os papéis amassados, uma garçonete iria escolher “as cegas” e iriam todos viajar em conjunto para o local sorteado cinco anos depois.
 
Eram oito amigos sentados naquela mesa de bar cinco anos atrás, sete estavam presentes e provavelmente o único faltante fora o responsável por estarem cumprindo a promessa. Roberto havia morrido em um acidente de moto poucos dias depois de fazerem a promessa, e foi justamente pela memória do amigo que partiu prematuramente que para eles aquela brincadeira virou a principal meta de suas vidas. E assim, vestidos com camisetas com a foto de Roberto no peito e muitas mochilas nas costas, a viagem para a Amazônia teve início.
 
Fazendo jus à máxima que a sorte não acompanha os incautos, o destino sorteado foi provavelmente o mais desafiador entre todos, pois o inspirado ganhador, Vitor, havia previsto uma verdadeira aventura em seus “devaneios cervejíferos”, com direito a vários dias de caminhada na parte praticamente inexplorada da gigantesca floresta.
 
Apesar de jovens, não eram tolos (ao menos quando estavam sóbrios) e ao longo dos anos se prepararam para a verdadeira provação que iriam passar: cuidaram da parte física, fizeram cursos de orientação e sobrevivência na selva, estudaram a região e escolheram a melhor época do ano para evitar a temporada das chuvas.
 
Voaram até Manaus, depois viajaram vários dias pelos rios alternando entre pequenas e médias embarcações, gradativamente quanto mais adentravam na floresta mais iam deixando os vestígios de civilização para trás. Por fim, ao ver suas intenções se seguirem viagem para o coração da floresta negada pelo seu guia, compraram alguns caíques de uma pequena aldeia ribeirinha e seguiram viagem sozinhos. Achavam que tinham passado com méritos pelas provações até o momento e com a confiança inconseqüente típica da juventude, decidiram continuar desbravando os mistérios da maior floresta do planeta, rindo ao lembrar o último alerta do seu guia: “Tomem muito cuidado, entre os rios Xingú e Araguaia, existem coisas estranhas”.
 
Deixaram os caíques amarrados em um local seguro e ingressaram na mata, após alguns dias de caminhada começaram a descobrir que as partes inexploradas da Região Amazônica ainda escondem muitas surpresas relativas ao nosso passado remoto. Encontraram estranhos monumentos, esculturas que lembravam totens, figuras que pareciam com homens esculpidos de forma macabra, com membros amputados ou com a face transfigurada como uma máscara de horror.
 
A turma se dividiu, com um grupo liderado por Marcos insistindo que deviam retornar, enquanto Vitor e Luciano defendiam com veemência a continuidade da aventura, sob alegação que tudo tinha transcorrido muito bem até aquele momento e podiam fazer história com os registros que estavam fazendo. Para desânimo de alguns, decidiram continuar a exploração.
 
A partir deste momento, as conversas a noite passaram a ter como assunto principal as estórias que tinham ouvido dos nativos da região e que até então tinham sido relegadas a meras fantasias passadas de pai para filho. Tiago relembrou ter ouvido algo sobre cidades perdidas chamadas de “Moradas dos Deuses”. Carlos falou que um ribeirinho havia lhe alertado quanto ao perigo de se depararem com tribos de índios selvagens e todos se lembravam do alerta do guia: “tomem muito cuidado, entre os rios Xingú e Araguaia acontecem coisas estranhas”. Já estavam preparando-se para dormir quando Vitor, com um ar sombrio e com a voz quase num sussurro murmurou:
- Eu estudei por muitos anos tudo que encontrei sobre esta região e afirmo que tudo isso é bobagem. O único risco real que podemos estar correndo é se nos depararmos com os Tumarús, a tribo canibal perdida da Amazônia.
- Você esta de brincadeira, só pode ser sacanagem – comentou Carlos em meio a um sorriso nervoso.
- Pois saiba que estou falando sério, quinhentos anos atrás existiam várias tribos que praticavam o canibalismo, a mais violenta eram os Tupinambás que habitavam a região sudeste do Brasil. Reza a lenda que alguns índios não aceitaram as mudanças impostas pelos homens brancos, viraram dissidentes, criaram uma nova tribo, os Tumarús e migraram para o interior da floresta amazônica. Existe uma chance real deles ainda existirem isolados do mundo civilizado.
- Você esta louco? E sabendo de tudo isso você nos arrasta para uma porra destas? – Gritou Tiago enquanto era contigo pelos demais ao tentar agredir Vitor.
- Sinceramente, não acho que tenhamos mais sorte de encontrá-los do que todas as expedições muito bem estruturadas que já tentaram – falou calmamente Vitor.
- Muito bem, já chega por hoje. O melhor a fazer é irmos dormir e resolvermos este assunto amanhã de cabeça fria. – interveio Marcos dando um fim à discussão.
 
Amanheceu, mas o que a luz do sol trouxe consigo não foi a sensação de tranqüilidade e sim de desespero. Todas as suas coisas haviam sumido. Seus equipamentos de localização: celular via satélite e o GPS. Os medicamentos, os repelentes contra mosquitos. Até mesmo os suprimentos: enlatados, vitaminas, café, açúcar. Não havia restado nada.
 
Entraram em pânico, alguns gritavam enlouquecidos. Outros choravam. Vários diziam que iam morrer. Vitor foi a voz da razão em meio ao caos que se instalou, primeiro deixou que o impacto inicial passasse, depois falou calmamente que se agissem de forma racional teriam a situação sobre controle. Tratou de eliminar qualquer tipo de argumentação sobre “espíritos malignos da floresta terem sumido com suas coisas”. Ponderou que provavelmente alguma tribo indígena ou mesmo garimpeiros em busca de dinheiro fácil haviam roubado seus pertences furtivamente durante a calada da noite.
 
Nos dias que se seguiram Vitor provou ser um líder pragmático e competente, possuía um conhecimento sobre a região e métodos de sobrevivência na selva muito além do que os amigos imaginavam. Localizou uma planta cuja semente, se fosse amassada, servia como repelente natural contra os mosquitos. Conseguia alimento das mais variadas formas, desde armadilhas para capturar pequenos animais quanto ervas e frutas variadas.
 
Apesar de todos deverem suas vidas as habilidades de Vitor, algumas coisas perturbavam cada vez mais alguns integrantes do grupo, principalmente Marcos. Ele alegava que Vitor estava cada vez mais diferente, introspectivo e ao mesmo tempo feliz com a situação em que se encontravam. Além disso, uma coisa intrigava os colegas e gerava desconfiança sobre a conduta de Vitor, pois apesar de todas as suas habilidades, dizia que não conseguia se localizar para retomarem o caminho de volta para casa. Vários preferiam acreditar que na verdade Vitor estava fascinado com aquela vida e os levava dia após dia para as entranhas da floresta.
 
O tempo passou lento, mas horas viraram dias e dias viraram meses. A tensão crescia e as atitudes de Vitor deixaram de ser estranhas e passaram a ser sinistras. Ele havia abandonado completamente o uso de roupas convencionais, andava descalço e trajando somente uma espécie de sunga. Falava o mínimo necessário e na maior parte do tempo se comunicava através de gestos. Abandonava com freqüência o acampamento e permanecia muito tempo embrenhado na mata. Várias vezes ao retornar com alguma caça ela estava parcialmente devorada e sem nenhum vestígio de sangue na carcaça. Certa vez, ao ser questionado sobre isso por André, limitou-se a dizer que comer os animais desta forma lhe garantia mais energia.
 
Mais algum tempo passou e o comportamento de Vitor continuava a piorar, ele já não se importava de se alimentar na frente dos colegas de animais praticamente vivos que ele bebia o sangue ainda fresco e estraçalhava a carne crua a base de dentadas. Marcos ficou ainda mais angustiado quando Carlos relatou que ao acordar durante a noite, viu Vitor sentado junto à fogueira em uma espécie de transe sussurrando palavras em um dialeto ininteligível. A preocupação aumentou quando Luciano e Flávio começaram gradativamente a seguir Vitor em praticamente todos os seus hábitos, inclusive em sua macabra dieta.
 
A situação chegou ao limite em torno de uma semana depois, quando ao acordar pela manhã não localizaram Tiago junto ao acampamento. Localizaram alguns rastros e rapidamente organizaram uma expedição tendo Vitor como guia. Algumas horas depois se depararam com uma cena dantesca, Tiago jazia deitado sem vida no solo com os olhos esbugalhados, o filete de sangue coagulado deixava claro que havia recebido um forte golpe pelas costas, o lado direito do seu rosto estava destroçado por mordidas, deixando sua arcada dentária parcialmente à mostra numa imagem bizarra e seu tórax havia sido parcialmente devorado.
 
Após alguns segundos do choque inicial, todo o stress acumulado ao longo dos dias entrou em erupção, sacaram suas facas de caça e instintivamente o grupo se dividiu em silêncio se observando. De uma lado estava Marcos, seguido de Carlos e André, todos com seus músculos tensionados pronto para atacar. No lado oposto ficaram Vitor, Flávio e Luciano em posição um pouco mais defensiva, mas igualmente alertas. Os dois grupos de amigos ficaram se estudando, em dúvida se deviam ou não ser os primeiros a atacar. O instinto de sobrevivência lutava contra a razão em uma batalha silenciosa, ao mesmo tempo que suas mentes não sabiam se estavam de frente para amigos ou inimigos.
 
Vitor foi o primeiro a falar:
 
- Calma, estamos entre amigos lutando contra um inimigo comum.
 
- Porra nenhuma, vocês mataram o Tiago. – vociferou Marcos.
 
- Você ficou louco? De onde tirou esta idéia? – respondeu Flávio.
 
- Loucos estão vocês, andando seminus e bebendo sangue de animais alegando que ficam mais fortes. – disse Marcos.
 
- Pois isso é pura e simplesmente uma questão de sobrevivência, quanto mais adaptados estivermos ao ambiente, mais chances teremos de escapar. – argumentou Vitor.
 
- Não me venha com essa. Não é só isso. Acha que engoli aquela sua história que alguma tribo ou garimpeiros roubaram nossas coisas? Confesse, foi você que deu fim em todo nosso equipamento quando havíamos decidido retornar. – questionou Marcos.
 
Vitor respirou fundo e com ar resignado falou:
 
- Confesso que realmente fui eu que peguei nossos equipamentos, mas tive os meus motivos. Fiquei em pânico quando vocês disseram que iríamos voltar, não tenho mais nada, vendi tudo que tinha para fazer esta viagem e depois de vários indícios que vimos tinha certeza que encontraríamos a Tribo Perdida. Era a chance da nossa vida, ficaríamos ricos, famosos, iríamos dar palestras pelo mundo todo, escrever livros. Eu tinha certeza que podia garantir nossa sobrevivência mesmo sem nenhum recurso e eu escondi o GPS em local seguro, com isso nosso retorno também estaria garantido.
 
Como que despertado de um transe e aos gritos de mentiroso e assassino André investiu contra Vitor de faca em punho, Luciano tentou proteger Vitor e acabou recebendo o golpe mortal. Em seguida tudo aconteceu muito rápido, o grupo de Marcos investiu contra Vitor e Flávio e uma furiosa luta teve início. André se engalfinhou com Vitor, enquanto Flávio que era o mais forte entre eles atacou Marcos e Carlos. Caído e praticamente dominado, com André correndo em sua direção, em um ato de desespero Vitor lançou sua faca que atingiu em cheio o peito do amigo. Ao levantar-se viu que Flávio dava seu último suspiro de joelhos em frente a Marcos e Carlos. Em menor número e desarmado, Vitor iniciou uma fuga desesperada.
 
Marcos e Carlos decidiram seguir no encalço do amigo, haviam chegado a um consenso que Vitor iria atrás do GPS e esta seria sua única chance de saírem da floresta.
 
Seguiram Vitor por vários dias, eles haviam desenvolvido várias habilidades de sobrevivência na selva ao longo destes meses. Apesar das claras tentativas de tentar despistá-los, eles eram bons rastreadores e estavam decididos a não deixar aquele louco assassino retornar para a civilização.
 
Encontraram Vitor por pura sorte, pois em determinado momento haviam pego uma trilha errada e acabaram encontrando os caíques que haviam providencialmente escondido. A tocaia foi fácil de ser executada, pois haviam chegado antes de Vitor que estava preocupado em fazer diversos desvios a fim de despistá-los e imaginava que ainda estava sendo seguido, ou seja, sua atenção estava toda voltada para a retaguarda.
 
Nem sequer pensaram na hipótese de simplesmente capturá-lo, uma morte rápida foi toda misericórdia que concederam ao antigo companheiro, nem mesmo as últimas palavras de Vitor em que suplicava que era inocente os sensibilizaram. Embarcaram rapidamente nos caíques e ganharam o rio em direção a Manaus.
 
Ao entardecer acamparam próximo a margem, fizeram uma pequena fogueira e se alimentaram de raízes que haviam recolhido. Marcos havia sentado de costas para Carlos, virado em direção ao rio enquanto brincava com a faca desviando alguns gravetos. Após algum tempo em silêncio começou a falar como se estivesse falando consigo mesmo:
 
- Eu sei o que realmente aconteceu por lá. Nós entramos demais na floresta, encontramos forças muito antigas que estavam adormecidas. Acabamos penetrando na Morada dos Deuses, nem mesmo os índios mais selvagens se aventuram por aquelas terras. A única burrada que Vitor cometeu foi ter escondido os equipamentos. Não foi ele que matou Tiago. Ele estava realmente possuído, mas era por Akunt, um espírito de luz que estava tentando nos ajudar.
 
Carlos começou a dar um sorriso nervoso, e mesmo achando que o colega estava passando por algum tipo de surto psicótico devido aos horrores que haviam passado, resolveu não contrariá-lo e deu andamento no diálogo:
 
- Mas se não foi Vitor quem matou Tiago, quem foi então?
 
- Foi Panú, o espírito do mal. O que se alimenta dos vivos.
 
- A tá... sei... e como você poderia saber isso tudo?
 
- Porque há várias luas, de dia eu sou Marcos e a noite EU SOU PANÚ.
 
Carlos se aproximou, e o pânico lhe dominou totalmente quando Marcos se virou, pois no lugar dos seus olhos havia somente grandes buracos negros nas órbitas. Carlos ficou paralisado de medo e em seguida sentiu a lâmina cravando fundo em seu peito. Ainda viveu alguns segundos para sentir as primeiras dentadas em seu abdômem.
 
 
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