VUUL E O MENINO
 
 (Ginete Negro)
 
No princípio era Vítor e aquela imensa estrutura (que tomava como sua).

E o menino era o deus daquele mundo. E vagava pelo lugar.

A descoberta dos muros foi um acaso. Para Vítor, o que mais podia existir além dele, da argila e da água? Desde tempos imemoriais lembrava-se das andanças solitárias pontuadas unicamente por pegadas disformes sobre o solo vencido. A amálgama dos elementos nos quais solas nuas deixavam marcas compunha um horizonte espelhado. Amontoados de argila formavam minis cadeias de montanhas resguardadas por rios e pranchas de mar que mais pareciam sistemas insulares. O domo dessas montanhas não ultrapassava meia altura das canelas do menino.

E foi errando de cenho caído como um Javé pré-adâmico ou um Gulliver desolado que, inesperadamente, deu com a testa numa superfície dura. As passadas largas chegaram a patinar na lama devido ao impacto, mas Vítor permaneceu de pé. Que assombro lhe sobreveio ao perceber, do outro lado, num corte abrupto, ausência de terra e dos minúsculos mares! E o eterno alvor dos céus dominando tudo!

Vítor tratou de premer o rosto contra aquela novidade invisível. Embora a visão tenha captado, o tato sentenciou: uma parede. E extremamente lisa. Mas logo a crosta de argila enluvando seus dedos arrojou-se naquela estrutura e lhe deu um pouco de forma. Rastros sujos e horizontais confirmavam aos olhos aquilo que mãos já sabiam. O menino, então, concebeu duas ideias, mas deu ação à mais exaustiva delas.

Consistia em entupir as palmas brancas com argila e ir-se deslizando sempre para a direita, no franco intuito de vislumbrar o comprimento daquele muro opaco. Tornou-se uma espécie de caranguejo humano — as digitais friccionando barro contra o vidro e as pernas abauladas, precisas, avançando lateralmente.

Infatigável, afundava as mãos no lodo e enrijecia o tronco. A trilha marrom jazia onde ele passara e, em seguida, via-se o estirão límpido que pretendia lambuzar com a mesma argila. O muro era colossal e dividia seu mundo em dois por quilômetros, milhares deles!

Finalmente, o limite! A destra de Vítor tateou algo como uma junção, um ângulo separador de um novo muro. Por isso, abarrotou de argila o seu indicador e raspou o encontrado vértice em movimentos verticais deixando um risco de, talvez, dez centímetros.

A tarefa recomeçou. Enquanto dedilhava a superfície imaculada e arrastava os pés de lado, uma hipótese resplandeceu na sua mente:

— E se o Universo não for infinito? E se eu estiver equivocado?

O menino, cambaleando de cansaço, desvendou mais três ângulos e se sentiu triplamente exausto. Ainda assim, não desistiu, nem diminuiu a força motriz do seu empenho.

— Maravilha! — rejubilou-se. Ao longe, meio ao branco ofuscante, notou listras lamacentas que seguiam.

As primeiras marcas. O ponto de partida da incumbência. Aquilo injetou ânimo onde estava escasseando. Com músculos tesos e passos vacilantes, o pequeno Vítor concluiu a tarefa auto-infligida: uniu as derradeiras listras às do início e, satisfeito, deixou-se precipitar de costas, já sem energia, sobre as pequeníssimas cadeias montanhosas.

— É bom descansar um pouco — disse Vítor a si mesmo. — Pernas, como vocês doem! Joelhos, como latejam! Dedinhos, quão dormentes estão! Quase não os sinto! Gastei o grosso das minhas forças para descobrir o quê? Que meu mundo é limitado, e quadrado! —Inclinou o dorso e roçou polegares nas pálpebras exprimindo dúvida. — Quem teria construído isso e isolado este mundo? Visto que nada existe além de mim e que meu caminhar tem séculos e séculos... Alguém teria ocupado esta terra antes do Tempo? Ou no disparo do primeiro segundo da eternidade? No Universo além das paredes, haverá algo diferente deste? — Subitamente, Vítor entregou-se ao êxtase. — E haverá outra criança, também? 

Sua esperança tornou-se um salto. Vítor retesou os membros e os arremessou em direção ao muro. Os pulsos esticavam as palmas, e as palmas davam aos dedos uma elasticidade incomum — fruto daquele afoitamento a dominar o descobridor que dava asas às perspectivas:

— Como será essa criança? Terá um corpinho todo amarelado, igual ao meu? Dois olhos, bochechas, parceria de nariz e boca? É possível que tenha três olhos e nenhum nariz? Ou, pelo contrário, uns cinquenta narizes a farejar esse mundão esbranquiçado e vazio? He-he-he! Nem sei se sou bonito, afinal, o reflexo dos laguinhos é tão incerto... Sem meus dez soldadinhos espreitando o rosto, de que maneira saberia o que está encravado em minha cabeça? E a criança será tão inteligente como eu? Será? Será?

Entretanto, o menino não identificou bordas na estrutura, tampouco falhas. A ânsia de encontrar um meio de transpor o muro tomava proporções assombrosas e descia sobre Vítor como um maligno possuidor. Fixava-se ao liso transparente agitando os braços no raio máximo de um Homem Vitruviano. Erguia calcanhares para alargar o alcance. Comprimindo o ventre infantil ao comprido daquela parede, tratou de pôr as mãos noutros quadrantes mais ao alto.

Insucesso total.

Vítor desatou em extenuadas lágrimas. A parede, além de larga, parecia tomar grande altura. Ato contínuo, o menino se sentiu oprimido, amedrontado, desesperançoso frente à possibilidade anulada de desbravar o espaço posterior ao seu mundo. Em linhas gerais, ele sucumbiu à tristeza e pesou-lhe no espírito uma gigantesca bigorna intitulada SOLIDÃO.

— Sozinho! Abandonado! Nem sei... Sou único? Isolado? Aprisionado? Se há alguém do lado de fora, transparente como essas paredes, que apareça e tenha dó de mim! — E Vítor apequenou-se numa fisionomia descaída. No seu desespero de conjunto unitário, apanhava punhados de barro e os esfregava no torso nu como alguém impondo castigo a si próprio.

Numa dessas mãozadas ao peito, deteve-se. Chamou sua atenção a compactação das informes bolotas de massa sob os dedos, os sulcos proporcionados por eles. Em seguida, veio o estalo.

— Sim. Sim... Sim! — E a expressão pesarosa deu lugar à alegria infrene.

Sabia exatamente o que fazer.

Um pedaço de argila, após sucessivas compressões, saiu do oco das mãos em forma de batata. Vítor embolotou outro naco barrento e o seccionou em quatro pecinhas roliças. Com o auxílio crucial dos dedos médio e mindinho, mensurou dois cilindros de argila em cada, moldando, assim, as pernas e os braços que foram enxertados na massa oval. Após descoser (extrema delicadeza!) os vinte dedinhos, colheu outro naco, de espessura menor, e coroou seu Frankenstein com uma cabeça.

Lentamente, pôs o boneco em pé.

— Você será divertimento para mim, e eu te serei por pai e amigo! — Porém, rapidamente Vítor potencializou sua disposição. — E se... além de amigo... eu fosse Deus??

Fabricou dez outras batatas de terra, dez pequenas esferas e quarenta rolinhos do mesmo e único material. Dessa vez, ocupou-se primeiramente das sutilezas de pés e mãos. Deixando-os em riste, admirou-se da criação: onze bonecos de argila! Onze homens-batatas.

— Hum... Posso fazer mais destes. E quero!
           
Vítor se permitiu engolir pela própria faina criadora. Dizia-se que trinta brinquedos adicionais bastariam, mas não parou.

 A próxima meta resvalava na casa dos setenta. Ultrapassou.
           
Os membros ágeis davam forma à argila com rapidez impressionante. Ao todo, quatrocentos e setenta e nove bonequinhos ocupavam um retângulo insular. Cedendo a gomos de cansaço, Vítor estipulara terminar em quinhentas criações. Entretanto, passando olhos nos quatro cantos de seu campo, disse:

           
— Mas é tão grande o mundo, vastíssimo o aquário! Sendo Deus e Senhor, pode deixar tanto espaço desabitado? Evidente que não, Vítor!

           
Sob esse pretexto, o menino tomou fôlego e acelerou o processo até perder o algarismo real de criações. Supunha ter trazido ao mundo mil e quinhentos daqueles pequenos seres estáticos, embora, a olho nu, indubitavelmente houvesse mais de cinco mil. No perímetro de poças d’água — que ele chamava de praias ou planícies —, ao menos vinte bonecos davam o tom de ocupação. Nos grandes espaços devassados pelas pegadas do menino-Deus, então, agrupavam-se praticamente exércitos, verdadeiros batalhões de bonecos marrons.

           
Em cálculos complicados, Vítor pretendia cobrir todos os recantos do seu mundo quadrangular — criar vilas, comunidades, quiçá países —, mas tal empreitada despendia o fabrico de, no mínimo, setecentos bilhões de unidades. Como o número recheado de zeros assustava, por ora, resolveu parar de manipular argila.

           
Lavou-se num dos maiores lagos para a preparação do grande momento. Em voz trombeteante, lançou aos ares:

 
— Ouçam, todos. Eu sou o Amigo, eu sou Deus. Ordeno que o sopro da Vida invada seus corpos!

           
Não se sabe de onde partiu a corrente elétrica que sacudiu os homens-batatas, mas milhares de braços alçavam-se e abaixavam-se mecanicamente. As bolinhas onde dois furos imitavam globos oculares deslocavam-se com extremo vagar se comparadas ao frenesi dos membros.

           
Maravilhado, Vítor pôde acompanhar a evolução dos bonecos. Alguns nãos saíam do lugar, plantados como estacas. Outros arriscavam passos curtos, trêmulos, mal pensados, mas obtinham êxito. Houve, ainda, quem dominasse a força das pernas e deitasse a correr!


E as conversações!... Os pobres soltavam vogais; quando muito, tímidos trissílabos uns aos outros!
           
Como se abraçavam! Quanto amor chamuscava os peitorais feitos de terra!

           
Pela inexistência do Sol e de qualquer astro para basear relógios (o céu, essa eterna alva!), não se podia precisar fatias de tempo, mas era patente que o pleno desenvolvimento das concatenações de ideias entre os brinquedos demorou bastante. Vítor adorava observá-los — cosia-se às paredes opacas como um deus distante a deliciar-se com a suprema criação de seus dedos.

           
Era de pasmar. Os bonecos (ainda que involuntariamente) estabeleciam sistemas sociais diversificados, e os de maior estatura adotavam os indivíduos que fossem, talvez, dois milímetros mais baixos — como pais recebem filhos. Passado isso, resolveram organizar-se em ajuntamentos — ocuparam planícies, topos de montanhas e demais terras —, sempre carregando um nome em comum entre os do mesmo clã.

           
Andando próximo aos limites do seu território-mundo, Vítor se surpreendia com a dedicação das criaturas. Elas construíam casas imensas, casebres do tamanho de um artelho, pontes sobre lagos menores e tantas outras coisas. Ao verem o seu Deus e Amigo, tratavam de sorrir e bater palmas, felicíssimos. Usualmente o menino puxava um dos bonecos (na velocidade de sucção) e o arremessava para o alto, permitindo que ele lhe caísse ao ombro esquerdo ou direito. A plateia do chão ria às largas bandeiras, gargalhava sem parar, sobretudo quando o Amigo os convidava a brincar deitando de bruços no solo e abrindo os braços como asas. Os homens-batatas subiam e, logo, Vítor levantava-se a correr como harpia sedenta por voar. Os bonecos se agradavam imensamente da brincadeira!

           
Em determinado momento, enquanto reproduzia o mesmo divertimento junto a outros bonecos, o menino ouviu gritos atingindo suas costas:

           
Ami-o! Ami-o! Ami-o!

           
Deu meia-volta. Um grupo inumerável de homens-batatas vinha apressado ao encontro e sustentando rostos tensos. Imediatamente, Vítor abaixou-se até o solo e deixou os brinquedinhos descerem dos braços.


O batalhão praticamente o cercou; mãozinhas maleáveis tocavam o dedão do pé como quem pede acompanhamento. O mais alto daquela turba vozeou:
           
Um coiso! Vul-vul-vul! — e o bracinho, acompanhando a onomatopeia, rodeava na pantomima de uma espiral perfurante ou algo que o valha.

           
— Rodando assim?

           
Xim! Xim! Odandu, odandu! Vul-vul! — replicava o maioral dos bonecos.

           
Espantoso, também, como velozmente se estabanavam aquelas criações. Vítor foi ao encalço tão assustado quanto eles. E teve de apertar o passo, pois o ocorrido se dera longe dali.

           
O menino chegou às terras do clã Aiuel. Tamanha desolação lambeu o lugar! Centenas de homens-batatas se rasgavam em pranto. No encontro de dois morros jazia algo como uma derrapagem embarrigada em meia-lua. Obra provável de uma queda brusca e pesada. Alguns pingos d’água precediam aquele desenho no lodo e o conectavam ao lago que os Aiuel batizaram como Ixiú. Um rastro em desalinho saía do esparrame e seguia até a Praia de Xiausó.

           
Vul-vul odandu caiu Xiausó — um segundo boneco dedilhava o calcanhar do Amigo Vítor. — Vuul cabô vida papai! Aiuel-kenô tixti, tixti!... Lácrima tixti, Ami-o! Aiude-me! Ô-favô! Aiude-me!

           
E somente ali Vítor pôde notar que a criatura — tida como Vuul — se precipitara sobre duas casas, ceifando a existência de dez dos seus bonecos.
           
A súplica do desesperado Aiuel-kenô doeu no fundo de sua consciência. Instintivamente acocorou-se o menino para fabricar outro boneco — sem demora, porém, se deu conta que jamais poderia criar um novo pai para o pobre órfão.

           
Segurou o choro sob um esforço inatural — como Deus e Amigo da criação, não queria demonstrar fraqueza. No cérebro, pensamentos afobados entrechocavam-se. “Quem é Vuul? Pode existir algo além de mim, coisa não surgida de minhas mãos? Sempre vivi sozinho, ao largo de qualquer companhia, por milênios. Resolvi conceber uns parcos gatos pingados a quem chamo ‘minha criação’ e, de repente, aparece um adversário, um inimigo sedento por dizimá-los!” Esbravejou feito um desabafo:


— Maldito Vuul, declaro guerra contra ti!

Nem terminou a reflexão e levou um susto tremendo, digno do passo retrocedido fortuitamente. A dez metros de distância, um tipo de cajado rosa saltava em riste. Partira do Grande Mar de Ianuí. Aquele monstro cilíndrico girava ao redor de si numa celeridade fora do comum. Vuul ainda se sustentou no ar por quinze segundos antes de se estatelar contra centenas de bonecos.

Gritaria geral. Vuul rebolou na lama e por cima de alguns montes. Sagaz, esmagou tudo ao alcance, passou feito um rolo compressor naquelas paragens. Em seguida, rastejou no rumo do Lago Eatapeia, onde encontrou refúgio.

Furioso, Vítor se arrojou em direção ao lago. Como uma fera faminta, meteu a totalidade do braço direito Eatapeia adentro. Dedos vorazes destrinchavam o fundo inacessível aos olhos. Então, a empunhadura agarrou um cilindro delgado e elétrico.

Puxou aquilo para a superfície. Vuul girava igual a uma broca, e a pouca aderência da argila quase o fez escapar do abraço contentivo de Vítor. O menino teve de usar a força das pernas no intento de prender o demônio em forma de serpente.

Fuça à fuça com Vuul, o pequeno Amigo se encheu de asco: a criatura possuía uma cabeça muito semelhante a cogumelo ou dente canino, cujo centro abrigava um buraco. A cada soco e tentativa de estrangulamento por parte do menino, um jato líquido escapava do orifício e descrevia uma longa parábola.

A batalha entre Vítor e Vuul estava acirradíssima. O menino abraçava à força tamanha que veias lhes saltavam do pescoço e da testa. Por sua vez, o demônio Vuul tentava desvencilhar-se com o chicotear da cauda e a colérica rotação em si mesmo. Vítor tratou de dar fortíssimas mordidas ao longo do tronco escamoso da serpente.

Milhares de bonecos vibravam com a cena: — Ami-o vai a-nhá! Xalva genti, Ami-o! Xalva!

O forte Vítor jogou joelhos por cima da cauda do monstro e desferiu série sem conta de sopapos. Vuul expelia mais e mais líquido, parecia agonizar. Esganando o pescoço da serpente, o menino Amigo reuniu toda sua energia no punho direito...
 
*    *   *
 
— Vitinho. Vitinho. São horas, filho.

Uma luz virginal atravessava os meandros verticais das cortinas, branca e limpa — tal qual a face de círio da sofrida Anabela.

— Não recolha todas. Abra só a primeira janela — dizia a mulher ao tio e cuidador de Vitinho. Dirigiu-se ao precioso objeto de adoração: — A noite foi boa com você, bebê? Sonhou bastante?

Ãezzzinha!... — o garoto, a muito custo, conseguiu exprimir. Deitava a cabeça sobre um travesseiro empoçado de saliva noturna. A boca esgazeava num redondíssimo zero, as arcadas moviam-se sob luta constante e forçosamente lenta. Cada vez que tentava falar, os olhos esbugalhavam e o maxilar entortava, assim como os frígidos dedinhos que envergavam prestes a quebrar.

Garoto de dez anos usando o elmo da paralisia cerebral — mesmo assim, um guerreiro!

— A médica receitou mais um remédio. — Escutava o tio enquanto destravava a cadeira de rodas. Anabela fez um adendo, apontando para a almofada do assento. — Acho melhor ele tomar a medicação antes do banho.

— Mas sempre dei a chuveirada antes de qualquer xarope — protestou o cuidador.

Xxxxaaarrrop... Ã-ão!... — esforçava-se Vitinho, lançando uma expressão grave ao tio e balançando negativamente o queixo.

— Faz diferente dessa vez, maninho — respondeu Anabela carinhosamente.

Propagaram-se buzinadas duplas vindas da rua. A mulher, paramentada até o pescoço, deu um salto. — É a Lídia.

Deitou um apaixonado abraço no filho — usualmente sentindo a mesma fisgada dolorosa no coração de mãe que se policia em ser mais presente perante um Vitinho deficiente.

— Mamãe não demora, tá? mais, bebê!

Maaaamaaalinnnda — vocalizava o menino.

— Ô neném!... — trincou o rosto num espasmo de dor e saudade pré-concebida. Virando-se para o irmão, perguntou. — Quer algum troço do centro, Volnei?

— Um só: quando o sol se esconder detrás dos prédios da Avenida Quintino, que você volte para nós!

Sorrisos e beijos trocados. Pouco depois, um veículo abandonando a entrada da residência — o disparo corriqueiro da rotina do cuidador e seu pupilo exigente de atenção.

Volnei alinhou os braços do sobrinho para virá-lo de bruços. Despiu o menino e destacou os adesivos laterais da fralda branca.

— Atravessou um sono limpinho, não é, Vitinho? Pena estar molhadinho. Deixa. Titio Vol vai ajudar o bebê a se secar.

Pudesse a mão humana ser útil somente para exames!...

Talvez pelo calor matinal, o cuidador teve de se desnudar, também, e afastar vagarosamente as pernas do sobrinho paralítico — o ouro da irmã.
Reposicionou-se.

Fios de saliva descambavam da boca de Vitinho e maculavam o travesseiro oposto. Logo, uma mão forrada de panos finos tapou o vazamento.
— Assim, Vitinho... Deixa titio cuidar de ti... Deixa titio dizer de novo: você tem o bumbum da sua mãe, querido...

O menino se indagava o motivo pelo qual, mesmo deitado, carregava o tio sobre si. E o corriqueiro hálito quente nas entranhas dos cabelos, a barba mal aparada fustigando sua nuca, o cheiro de alcatrão emanando do bigode grisalho.

Também escapava do seu conhecimento explicação para a intensa vontade do titio Vol em desbravar aquele vale entre as duas macias colinas do seu corpo; e amassá-las com dedos esbraseados; e chupá-las como se fossem seios de mel.

Dois braços cinquentenários fizeram um laço contra os seus e...
No princípio era Vítor.

E aquela imensa estrutura (que tomava como sua).

E Vuul.

Raios! Vitinho não conseguia entender por que Vuul se imiscuíra no Princípio, no seu Princípio!

Sob o peso espichado e quente do Tio Volnei, soltou do olho lágrima única, solitária, mas não totalmente triste. O menino forte como um Deus ultrapoderoso contava as horas para chegar a soldadura noturna dos céus e poder dormir de novo. Nela, ensaiaria uma maneira de encarcerar Vuul — o demônio que, nos sonhos, intentava destruir seu povo.

E que, no mundo dos acordados, o penetrava sem qualquer laivo de piedade.

 

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Contadores de Histórias
Enviado por Contadores de Histórias em 12/08/2014
Reeditado em 17/09/2014
Código do texto: T4920146
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