NO CAMPO DOS GIRASSÓIS

(Demi Lopes)
 
Andava a passos lerdos, um aqui, outro lá, era assim agora, devagarzinho, mas sempre.

Andou até a esquina, olhou, quase caiu ao “tropicar” (Como dizia sua Mãe quando tropeçava). Olhou de novo, o ônibus ainda não estava vindo, era tarde, passava das onze. A noite era chuvosa, chuva fina, típica da cidade. Bêbados, prostitutas, mascates, boêmios conversam no bar perto. Apertou seu lenço na cabeça, protegeu-se ainda mais dentro de sua blusa velha, o berál a protegia um pouco mais da garoa finíssima, seus pés estavam gelados.  A mala dura servia como assento, era melhor que a calçada molhada. Ficou imaginando, porque deixara seu cachecol, seria muito útil agora, no seu pescoço friorento. Nossa! Cadê o ônibus? – pensou. Voltou a se escorar no poste que era o ponto.

Maria Clara era o nome dela. Lá se foram 75 anos, mas o peso nas costas dizia que tinha mais. Suas rugas, nariz proeminente de espanhola e vestígios de papada no pescoço diziam que já não era mais imponente como dias de outrora. Suas unhas, nem sombra de épocas de beleza e vaidade. Maldizia também a idade por deixar seus cabelos tão ralos e incrivelmente brancos, e bendizia sua memória, por lembrar de tantos detalhes e ser a única coisa que sobrevivera intacta, pelo contrário, cada dia mais cheia de lembranças e saudades.

Arrepiou-se.

Lembrou de novo do Cachecol.

O ônibus não chega nunca. Seria o ponto aquele mesmo?
Dona Geiza a empregada gorda disse que era ali mesmo, mas desconfiada como sempre, a dúvida estava em sua mente, afinal nunca confiou cegamente em Dona Geiza. Quantos anos debaixo de sua teimosia, quantos anos e a tratava como se não fosse sua patroa.

Olhou de rabo de olho e viu que uma dama da noite se aproximava. Meio que cambaleante e com uma garrafa na mão e o cigarro na outra, ela vinha em sua direção, balbuciou algo, algo indecifrável. Olhou e ela estava ao seu lado agora olhando com um olhar morteiro, o cabelo alisado e a maquiagem forte em seu rosto de menina destoavam.

- Vó! – Falou com muita dificuldade e com hálito de conhaque.

- Ô Vó me dá um dinheiro, me dá um dinheiro Vózinha.- A voz não era de criança, mas sim de Cigarra, a Gigarra rouca. Foi o que pareceu pra ela.

- Não tenho fia – Tratou de responder, mas baixinho, talvez com receio... ou talvez por causa do frio.

- Me dá o lenço vó, me dá! – Falou bem pertinho que até cuspiu a garoa que entrou em sua boca.

Maria Clara estava numa situação difícil.

Ali sozinha em um suposto ponto de ônibus talvez, garoando, frio, noite, e agora alguém queria lhe tirar o pouco que tinha. Foi tirando o seu teto contra aquela chuvinha chata e entregando para a moça, que poderia ter sido sua filha, mas era a Cigarra rouca. “instrumento” de inúmeros roubos que já sofrera na vida.

- Bacana Vó - Soltou um som que nem de longe lembrava algum tipo de risada.

Só soube que estava rindo porque outro som a alertou:
- Pára de rir puta!

Seu salvador,não menos bêbado, era um homem que saiu do bar e vinha em direção à eles.

-Pára de rir puta, e vem com o seu marido.

Não parecia ser o marido dela, com o dobro da idade, barba por fazer, cabelos desgrenhados e roupa descomposta.

A Cigarra parou na mesma hora, e graças a Deus o ônibus também.

- Meu ônibus! – Maria Clara saiu depressa, ao seu estilo, e adentrou rapidamente o ônibus sem olhar para trás. Quando enfim conseguiu subir no veículo ainda viu os dois discutindo e tentando disputar a garrafa.

Meu Deus. Lá se fôra meu lenço.

Pensou... Não sirvo mais para este mundo - Percebeu o quanto era frágil.

Conseguiu sentar-se no meio do ônibus com muito sacrifício. Assim que ela embarcou o motorista saiu. Saculejava muito, quase caiu, mas manteve-se firme, a rua de paralelepípedo não ajudava. Ninguém no coletivo, também àquela hora.
Abriu sua bolsinha de mão e puxou um papel escrito à lápis com o endereço.

Agora estava melhor, o frio passara um pouco, fechou a janela por onde entrava um ventinho chato.

O endereço de sua filha Mariana. Conseguira com muita batalha aquelas linhas. Há muito não a via, acho que fôra no Natal do ano passado, pensou... Ou retrasado... Bom, sabe que fazia tempo. A outra criada, a magra, qual era o nome dela... Ela a ajudou muito, ligou várias vezes para o número que tinha gravado, até conseguir o endereço... Boa moça. Gostava mais da criada magra do que da gorda, quando voltasse iria dar um pedaço de bolo de milho para ela, tirou um lápis também da bolsinha e escreveu com muito custo no cantinho do papel para lembrar.

Isso mesmo, iria pegar um pedaço do bolo que sua filha tanto sabia fazer e levar para a magra, Judite! Esse era o nome dela. Sabia que sua mente não falharia, riu por entre os lábios, sentindo orgulho de sua memória, olhou em volta, não tinha ninguém para se vangloriar, a não ser o cobrador que dormia e o vento que assoviava.

Seu sorriso se abriu ainda mais, afinal, estava feliz, estava indo reencontrar sua filha, reencontrar um pedaço de um mundo que ficou para trás, de um mundo esquisito, diferente, mas agora seu mundo novamente. Lembrou da fachada amarela da casa onde moravam, linda, da árvore que crescia na calçada e o quintal de tarde acolhedora. Parecia estar vendo seus dois filhos correndo pelo corredor da casa que dava para os fundos e parecia estar ouvindo Jorginho, o mais novo, ainda franzino, gritar para todos os amiguinhos: Lá vou eu! e olhando por baixo dos braços escorados no pique, fingindo não ver nada. E Mariana respondendo: Não vale olhar! E parecia estar sentindo o cheiro do macarrão numa manhã de domingo e visualizar seu rosto alegre de dona de casa, e olhos brilhantes ao falar dos feitos da semana.

Agora o cobrador estava acordado, e de olhos esbugalhados fitando-a espantado com a risada da única passageira. Meio sem graça, ela desfez o sorriso e recostou a cabeça na janela fria do barulhento ônibus. O cobrador voltou aos braços cruzados que serviam de travesseiro.

Prédios altos, prédios baixos, fachadas de mansões, fachadas de casarões, casinhas, casões, muros, mato, era o que via passar através da janela, para ela era tudo igual, não distinguia ruas, bairros, nada, apenas sabia que a viagem demoraria uns 50 minutos, atravessaria a cidade toda, segundo Judite.

Tudo se transformou, a visão era de um campo de flores, Girassóis deslizando em seus cabelos, que Girassóis grandes, andava no meio deles, Girassóis, sua flor predileta, que lindos, o tempo estava limpo, de um céu azul esplendoroso, parecia flutuar no campo de Girassóis, estava andando, aparentemente sem destino, mas em sua mente sabia para onde ia, estranhamente sabia, e era um lugar bom, não tinha medo de nada, sua respiração parece que melhorara, sua dor na perna não existia mais. Que caminho gostoso aquele...

- Senhora!

O cobrador de olho esbugalhado a chamava:

- Senhora! Já está perto o ponto – Completou, vendo que já tinha acordado.

A realidade voltou dura e fria, e o ponto era o próximo.

A chuva fina ainda continuava, o vento que o ônibus causou ao sair após deixá-la no ponto, quase a derruba, apertou o casaco e aprumou-se na direção da casa. A rua era aquela e o número estava decrescendo, estava perto, a qualquer momento visualizaria o abacateiro na calçada, a qualquer momento vivenciaria de novo o prazer gostoso de estar em casa, não via a hora de abraçar sua filha, emocionou-se ao ver a casa de muro baixo e portão de ferro, mas cadê o abacateiro?

Parou em frente o portãozinho de ferro judiado, era só ferrugem o coitado, olhou o quintal da frente, não estava em melhor estado que o portão. Apertou a campainha, era tarde, imaginou, será que estão dormindo? Foi apertar de novo.

Uma silhueta de mulher apareceu na janela que dá pra o quintal da frente, parou por alguns minutos e depois sumiu. Esperou mais um pouco, ouviu barulho de tranca, fechadura, tramela, a porta estava se abrindo e a silhueta aparece. Estava chovendo fininho sem lua e não dava pra perceber quem era na penumbra, enfim a silhueta perguntou:

- Quem tá aí?

- Mariana... – Maria Clara fala meio que perguntando, meio que afirmando, por achar ter reconhecido a voz.

Aquela voz que vem da porta lateral da casa, titubeia por uns instantes, depois avança em direção ao portão em passos lerdos.

-Mãe!?

Mariana olha a Senhora no seu portão e fica estática à uma pequena distância da calçada.

Por quanto tempo esperou por este momento novamente, reencontrar sua filha e abraçá-la, matar a saudade que tanto a consumia, poder ouvir sua voz, poder tocá-la e quem sabe tomá-la em seus braços como sua menininha e protegê-la do mundo, como se ainda estivesse no colégio. Segurou o nó na garganta, mas não evitou a lágrima que se misturava à garoa. Mariana continuava bela com seus, acho, 45 anos. Apesar de aparentar ter acabado de acordar, seu rosto ainda mantinha os traços de menina, os cabelos teimavam em continuar negros e a pele branquinha lhe iluminava naquela noite escura.

- Tudo bem Mãe?

- Tudo bem filha...

- Que surpresa! Nossa!!  Achou fácil aqui Mãe? Afinal fazem 10 anos.

Não imaginava que tinha passado tanto tempo assim. Mas não foi no Natal passado? Ou retrasado? Pensou Maria Clara.

Mariana continuava ali, parada, olhando para a Mãe.

Silêncio. Só o vento e a chuva agora.

- Aquela moça ligou perguntando o endereço, qual o nome dela? É... Jurema, isso, ligou Mãe.

- Judite.

- Isso... Ligou umas duas vezes acho, muito boazinha menina.
Por fim falou Mariana falou:

- Entra Mãe, senão vai pegar um resfriado – E abrindo o portão convidou-a enfim para dentro. – A dor na perna passou?

Maria Clara concordou com a cabeça, apesar de sofrer muito ainda com as dores, não queria preocupar a filha, queria apenas alegria, queria apenas estar com ela. Foi entrando na casa a, a garoa ficou para trás, entrou na varandinha lateral e depois na casa que um dia havia morado.

- Senta Mãe – Mariana apontou um sofá no canto logo após fechar a porta – Fellipe!! Tem visita!

A Senhora olhou em volta, uma sala agradável, um sofá pequeno onde estava, outro para três pessoas no centro e um para duas mais ao canto, que televisão grande era aquela, e uma enorme luz ao centro, o lustre era imponente.  Cada canto daquela sala lhe trazia lembranças, bem diferente do que era, mas com o mesmo ambiente, mesmo cheiro, mesma atmosfera, era uma benção estar de volta à sua casa.

Sentou-se na beiradinha do sofá, estava encharcada, não queria sujar o sofá da filha.

Olhou para a filha ao seu lado, tinha tanta coisa pra falar, mas não conseguia dizer nada. Seu olhar no dela dizia mil palavras, seu olho marejado era um dicionário escrito em “n” línguas. Fitou-a por, bem, uns 20 minutos. Ensaiou uma fala e começou a balbuciar algo mas Fellipe apareceu na sala ainda arrumando a camisa.

- Boa noite! – Prazer, Fellipe.

- Meu marido Mãe.

Olhou o rapaz, bonito, cabelos alinhados apesar da hora, parecia ser um homem de negócios, ela não havia falado antes sobre seu novo marido, depois da separação imaginou que a filha ficaria sozinha, afinal sofrera muito com a filha nos últimos anos, e quantas vezes jurou na presença da mãe nunca mais se casar.

- Que noite fria hein! – Tenta puxar papo Fellipe.

- Aceita um chá Mãe? – mariana quebra o gelo.

Como tudo tinha mudado, lembrava das horas que passavam conversando, incontáveis noites ficavam até tarde, ela tricotando e Mariana, batendo seu bolo, uma simples pergunta era motivo para divagar sobre o assunto durante quase a noite toda, o tempo custava a passar. Hoje o que existe? Como o tempo passa rápido.

- Percebi que mudou a fachada da casa minha filha... Sempre gostei daquela fachada, amarelo ouro! Dá um ar mais imponente. E o abacateiro? Eu sei minha filha, hoje em dia não existe mais espaço para árvores, dão muito trabalho e ocupam muito espaço eu sei.

- É Mãe, as coisas mudam.

O barulho da freada do carro em frente à casa assustou um pouco o pessoal de dentro.

A Campainha toca e mariana parece já saber de quem se trata.

- Um momento! – Diz pela fresta da janela da sala.

Minha filha, sempre atenta, pensou Maria Clara.

Mariana olha para a Mãe com os olhos vermelhos, olhos lindos aqueles, suas lágrimas são abundantes. Que felicidade! O choro de felicidade é muito bom, nunca gostou que ela chorasse de tristeza, quando caía, vinha com o joelho ralado, aí não, mas agora, choro por ver a Mãe, pela Mãe ter voltado, era um choro legítimo e feliz.

- Mãe, vamos até o portão comigo.

Sem entender nada a Velha espanhola, há muito já havia terminado seu chá, se levanta feliz ao poder acompanhar sua filha.

- Vamos filha, vamos passear. – Maria Clara estava de novo em casa.

Na calçada Judite e outro enfermeiro a espera.

- Dona Maria! Saiu de novo. – fingindo ar de surpresa Judite a repreende. – E ainda por cima não levou seu lenço de cabeça, com essa chuvinha fina ainda pega um resfriado.

- Obrigado por ligar Mariana, estávamos muito preocupados. Não sei como ela conseguiu sair, mas agora graças a Deus está tudo bem.

- Encontramos ela. – Fala o enfermeiro no rádio da ambulância.

- Tchau Mãe! – Entre prantos Mariana abraça a Mãe.

- Tchau filha.

A ambulância parte e Mariana entra para dentro.

Fellipe a ampara nos braços e tenta conter seu pranto:

- Não fique assim querida.

Mariana entrou e mergulhou em seu pranto a noite toda.
 
Maria Clara adorava estes Girassóis, como eram lindos, com o tempo claro eram mais bonitos ainda, o sol estava a pino e como era possível, uma brisa lhe soprava os cabelos negros e grandes, corria entre as flores como uma menina brincando sem pensamentos, sem angústia e apenas a preocupação de correr e se esbaldar de brincadeiras, daqui a pouco vou brincar de ciranda, de amarelinha, de pular corda, ou mais tarde, não sei, pensou. Afinal tinha todo o tempo do mundo, que lugar maravilhoso era aquele.

Acordou com o chacoalhar da ambulância quando parou em frente à Casa de Repouso.

- Chegamos! – Falou o enfermeiro chefe.

Maria Clara sorriu, enfim havia visto sua filha, nossa, como cresceu, seu esposo também.

Antes de descer do carro enfiou a mão no bolso da saia do seu vestido e tirou um pacote com papel alumínio. Que bom, sua memória não a traiu novamente.

Olhou feliz para aquele embrulho.

O Bolo de milho devia estar delicioso.

 
Fim

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Contadores de Histórias
Enviado por Contadores de Histórias em 15/08/2014
Reeditado em 17/09/2014
Código do texto: T4923837
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