Vida de bailarina
 
Doralice estava fraca. O infarto comprometeu uma área importante do seu velho coração.  A falta de ar e a dor intensa faziam com que lágrimas escorressem pelos profundos sulcos do seu rosto.
 
Quando chegou ao Hospital foi retirada da ambulância e um enfermeiro habilidoso a conduziu rápido pelos intermináveis corredores pintados de branco. Doralice sabia que estava a caminho do fim. A idade avançada e os sérios problemas de saúde não a deixavam acreditar, nem por um momento, que poderia sobreviver.
 
No consultório, o cardiologista, após avaliar os exames foi logo falando:
 A Senhora terá de ser submetida à cirurgia de ponte de safena: A ponte de Safena é um procedimento criado para restaurar o fluxo de sangue para o coração e bla, bla, bla...
 
Doralice nada respondeu. Sempre teve medo da dor da morte, e morrer durante a operação não seria nada mal.
 
Enquanto era preparada para a complicada cirurgia, passou dois dias em um quarto particular. A dor física era amenizada pelos medicamentos. Mas a angustia de ter passado uma vida inteira sem concluir o seu maior sonho a sufocava. Doralice queria ter tido uma vida de bailarina. Porém, nasceu com uma perna atrofiada e passou por dezenas de cirurgias que nunca tiveram o resultado esperado.
 
A última intervenção cirúrgica a deixou entre a vida e a morte, foram meses em coma até que se restabeleceu e ouviu dos médicos que nada mais poderia ser feito.
 
Antes de ir para a sala de cirurgia olhou várias vezes pela janela. Sempre imaginou morrer em um dia chuvoso, achava chique aquele montão de guarda chuvas abertos ao redor do féretro. Não estava com sorte, o dia estava lindo. Também não tinha parentes. Poderia ter sido famosa, ter tido uma família grande e muitos amigos. Assim o fim não seria tão solitário e, se caso chovesse, o número de guarda chuvas seria imenso.
 
A herança que os pais deixaram foi mais que o suficiente para manter-se durante a vida.  Mesmo com suas limitações despertou o interesse em alguns rapazes, mas preferiu passar a vida imaginando como seria caso fosse uma bailarina.
 
 Suas únicas companhias eram as empregadas, que acabavam gordas como porcas e um gato preto com uma mancha branca no peito que sempre era substituído por outro à medida que o tempo passava.
 
 Doralice outra vez foi conduzida pelo enorme corredor, dessa vez o enfermeiro não tinha pressa e parou em frente ao berçário para parabenizar um amigo que acabara de ser pai. E estava ali babando, olhando a criança pelo vidro incrivelmente transparente.
 
 Doralice sorriu ao olhar para as criancinhas e desejou em silêncio toda a sorte do mundo. Viver é muito difícil, pensou. Seria preciso muitas vidas para concluir todos os sonhos. Felizes são os artistas, que mesmo de mentirinha têm esse privilégio.
 
 
O enfermeiro se despediu do amigo e dessa vez a conduziu com pressa a caminho do fim.
 
 Na sala de cirurgia a equipe médica a saudou com um leque de rugas ao redor dos olhos. Preferia que estivessem sem máscaras, seriam os últimos sorrisos que iria ver. O anestesista tinha olhos claros, e depois de um aceno deu início ao procedimento.  Pouco depois, tudo escureceu. Ela podia sentir o bisturi passar deslizando lentamente sobre o peito e depois os ossos sendo afastados.
 
Doralice começou a sonhar com as crianças do berçário.  A primeira que lhe veio à mente foi o filho do amigo do enfermeiro. No sonho, antes de completar dezoito anos, ele matou o pai. Uma menina seria jogada em uma lata de lixo e depois de encontrada seria adotada por uma família que jamais lhe contaria sobre sua origem. Outra seria médica, e um menino escurinho que chorava sem parar se tornaria o Presidente do Brasil.
 
Por algum tempo Doralice perdeu totalmente os sentidos. Até que ouviu um estalo como se alguém ligasse um televisor. Sua vida começou do fim para o início. Achou que oitenta e seis anos iriam demorar muito para passar. Mas a vida foi tão sem graça e rotineira, que passou voando naquele flashback tão clichê. A única parte engraçada foi quando viu as brigas que tinha com as empregadas quando os gatos sumiam. Com medo de perderem as mordomias elas sempre traziam outro. Doralice falava para todas que seu gato Romão tinha mais de setenta anos e que se não tomassem conta dele seriam despedidas. Depois se trancava no quarto e morria de rir. Já havia perdido a conta dos gatos que teve. Certa vez uma empregada, a mais roliça que teve, chegou a pintar um gato amarelo de preto. Outra trouxe uma gata com um olho furado que chegou a ter uma ninhada de gatinhos brancos que só não foram jogados no vaso sanitário porque ela os viu primeiro e disse que seu gato os havia adotado e milagrosamente começou a dar leite.
 
A parte mais triste foi quando chegou à cirurgia que quase a levou a morte: Viu o desespero dos pais, as colegas chorarem e o Paulo, que era o menino mais bonito da escola, pedindo a Deus para que ela vivesse, pois queria casar-se com ela.
 
Viu a morte dos seus parentes queridos e chorou. Depois sorriu ao ver seu quarto repleto de fotografias de espetáculos famosos e uma coleção de caixinhas de música cujas bailarinas rodopiavam ao som das mais lindas sinfonias.
 
As imagens foram sumindo, sumindo, dando lugar a uma sensação de torpor. Enquanto sentia o coração parar os médicos faziam de tudo para trazê-la de volta. O corpo tremia com o desfibrilador, mas Doralice já não estava mais ali. Enquanto morria via uma linda bailarina interpretando o clássico: A morte do cisne. Ao fim do espetáculo uma plateia alucinada gritava: Ana, Ana, Ana. A bailarina do sonho se chamava Ana.
 
Doralice não queria parar de sonhar, mas de repente ouviu um estalo e ao sentir dor não reconheceu o próprio grito.
 
O médico a exibiu para a famosa bailarina que acabara de ser mãe e disse:
 
 Sua filha parecia estar sonhando quando a despertei para esse mundo. Vamos torcer para que se torne também uma grande bailarina.
 
 Se for a vontade da Ana Doutor, me sentirei lisonjeada.
 
A menina procurou o seio da mãe e antes de perder a antiga consciência entendeu que a morte não é o fim: É o começo para uma nova vida cujos sonhos não terminam jamais.

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Contadores de Histórias
Enviado por Contadores de Histórias em 22/08/2014
Reeditado em 17/09/2014
Código do texto: T4932168
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