Entre a Crescente a Cruz

Por: Vampire Lord

 
Uma flecha passou zunindo e fez os cabelos louro-esbranquiçados de Fábio Strieder balançarem timidamente no exato instante em que ele removia a espada do peito do sarraceno à sua frente. O sujeito de quase dois metros de altura tombou sobre os joelhos, os olhos arregalados e o sangue salivando da boca. Strieder concentrou a força nas mãos, ergueu a lâmina prateada alto e a baixou em um clarão metálico que dividiu em dois o rosto truculento do infiel. — Por Deus e para Deus! — gritou em euforia e triunfo.
A batalha ocorria principalmente nas muralhas da fortaleza. Eram largas o bastante para três homens caminharem lado a lado ou para que um amontoado de homens tentasse se matar em uma confusão sanguinolenta. Sangue esguichava dos golpes brutais, cimitarras, espadas e machados digladiavam furiosamente na confusão, tilintando e luzindo sob a forte luz do sol matutino. Homens gritavam, berravam. O metal das armaduras rangia, os ossos quebrados e ou triturados estalavam. O cheiro do sangue subia alto no céu. No pátio, lá embaixo, de frente para o portão de madeira fortificado, os soldados esperavam, aflitos e ansiosos, pelo momento em que as imensas portas tombariam diante da força dos aríetes que ribombavam regularmente naquela manhã. Fábio Strieder sabia que a qualquer momento a horda dos demônios entraria pelo pátio, urrando como se saídos direto do inferno para tomar a vida dos bons homens que tentavam, a todo custo, manter a fortaleza sob a bandeira de Cristo.
O ataque não fora inesperado. Quando chegaram homens trazendo mensagens de que Jerusalém havia caído, Fábio convocou seus vassalos e se preparou para o cerco. O pouco que havia sido plantado naquela estação fora estocado dentro dos muros, fossos foram cavados para nutri-los com a água potável, rapazes foram transformados em guerreiros e mensageiros foram enviados aos remanescentes dos reinos cristãos na Terra Santa, e outros para a Europa, alertando do baque.  Que Deus atendesse suas preces rápido o bastante, Fábio pensou enquanto observava os homens partindo e desaparecendo na aridez da paisagem.
A guerra tão esperada, no entanto, demorou a chegar.
Foram dois anos de espera e preparo sem que nenhuma notícia, rumor ou presságio prenunciasse a chegada dos infiéis e Fábio temia que essa longa espera encorajasse os homens a abdicarem de seus votos e juramentos e partissem para tentar a sorte noutro lugar. Temia isso mais do que a chegada do inimigo. Defender a fortaleza que ele conquistara fazia quase dez anos era essencial, agora mais do que nunca: se caísse, o principal ponto de acesso dos cristãos ao que agora era território muçulmano estaria perdido.
E quando começaram a se erguer os rumores de que os infiéis não ousariam avançar tão longe, a guerra chegou. Ouviram primeiro o som das trompas distante e depois viram, como se fossem miragens provocadas pelas ondas de calor que subiam da terra estorricada e seca, a mancha de homens que lentamente marchava na direção dos muros, as bandeiras pendendo dos mastros pela falta de vendo em um número incontável e em tantas cores que assombrava o olhar, e acima de todas, um enorme estandarte em vermelho, maior que uma tenda, preso em mastros que o mantinham esticado e visível a qualquer olho: A Crescente estrelada do Islã. Foram quatro dias e três noites observando o avanço da horda inimiga sem que nada pudesse ser feito. Dois vassalos haviam sugerido que reunissem os cavaleiros e fossem ao encontro do inimigo em campo aberto. “Com Deus do nosso lado seremos invencíveis!”, Wolfgam dissera com tanto fervor que Fábio Strieder quase se deixou levar.
— Quantos? — ele perguntara quando os homens vieram lhe avisar que Saladino havia chegado.
— Dois mil, talvez três — Thomas, seu capitão e o homem de maior confiança ali, respondeu.
As lembranças se dissiparam quando o barulho da guerra retornou aos seus ouvidos. O aço batendo no aço, madeira tentando destruir madeira, o zumbido das flechas lançadas às cegas, as pedras se chocando contra as muralhas da fortaleza. Fábio correu os olhos pela muralha e viu a aflição dos homens que esperavam pela chance de banhar suas lâminas em sangue infiel.  Era a mesma aflição que ele tentava ocultar dentro de si e odiou, naquele momento mais do que em qualquer outro, não ter o dom da oratória como tinha seu irmão ou o senhor seu pai, falecido havia anos agora. Suspirou, limpou o suor das têmporas e brandiu a espada contra outro sarraceno miserável que subia pelas escadas engastadas nos muros.
— Não vamos resistir — William, seu primogênito, dissera. O rapaz estava cozinhando dentro da cota de malha, as bochechas vermelhas e os olhos negros apertados. — Não vamos resistir.
Fábio ignorou. O portão, castigado pelo aríete, começava a ceder. Os homens no pátio, até então sem participar da batalha, cerraram os punhos nos cabos das espadas e das lanças e esperaram pelo pior. No leste da muralha, onde o ataque havia se intensificado, mais escadas eram erguidas do chão e batiam contra o muro, e mais sarracenos conseguiam subir e burlar a defesa. O fim parecia próximo aos olhos de Strieder.
— Resistiremos ou morreremos lutando — gritou ao brandir a espada outra vez. — Deus está conosco! — gritou antes de acertar o infeliz que havia saltado à sua frente.
Uma lança voou na sua direção e Fábio a rechaçou com a espada. Um homem peludo da pele oleada veio por cima dele, urrando enquanto brandia uma cimitarra banhada pelo sangue cristão. As lâminas se chocaram com fúria e Fábio sentiu a mão da espada vacilar por um segundo; recobrou-se e jogou o corpo para a esquerda, deixando o oponente passar por ele; juntou as mãos no cabo da espada e a estocou contra as costas do rival, e então subiu, rasgando-o até o pescoço. William finalizou o homem encaixando o machado no crânio dele.
— Deus está conosco! — alguém gritou.
O fim da manhã se aproximava. O céu estava cada vez mais azul e as nuvens cada vez mais esparsas. Fazia dias que nenhum vento soprava naquela terra que insistiam em chamar de santa. O portão, então, cedeu e uma leva de muçulmanos avançou pelo pátio da fortaleza e se chocou contra os homens de Fábio em uma luta sangrenta e violenta que o fez lembrar das canções que os poetas da corte do seu pai costumavam cantar sobre a época em que a Inglaterra fora assolada pelos nórdicos, canções que enalteciam e rimavam da glória das paredes de escudo. Não havia glória naquilo, Fábio pensou. Espadas perdiam seu uso naquele emaranhado de homens que se imprensavam, e coitado do infeliz que tropeçasse e caísse! Um braço voou daquela massa, depois alguns dedos e uma cabeça, sangue e tripas pintavam o chão empoeirado. Gritos de dor e êxtase, o clangor da batalha era uma sinfonia sinistra até que, de repente, em meio ao caos e a confusão, ouviu-se um som límpido ser trazido por uma brisa repentina.
Clarins! Clarins soavam na primeira hora da tarde.
A esperança se renovou no coração dos homens do pátio e na muralha na forma de um grito de triunfo. Fábio Strieder serrou os olhos ao ver a mancha que se movia vinda do norte. Os sarracenos, cientes daquele movimento, atraídos pelo som continuo que elevava-se acima de qualquer outro, viraram sua retaguarda para conter o avanço inesperado, gritando ofensas e urrando em desafio; mas o som dos clarins era mais forte e efetivo.
— Bizâncio? — William perguntou.
Fábio negou com um aceno. Seu coração batia mais forte e ele se permitiu sorrir. Seus olhos fitavam os estandartes que tremulava acima dos demais, em desafio a Crescente dos infiéis. Um era um campo vermelho como sangue onde três leões dourados rugiam para amedrontar os inimigos. O outro, um fundo dourado, resplandecente como o próprio sol, em cujo centro ondulava um pavão negro. O Coração e a Espada do Leão haviam chegado para resgatá-los na hora de sua maior necessidade.
— Inglaterra — disse, tirando os cabelos suados do rosto. — O rei vem em nosso auxílio.
E seu irmão, Flávio Strieder, também, pensou antes de unir seu grito esperançoso ao dos demais. 

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Contadores de Histórias
Enviado por Contadores de Histórias em 29/04/2015
Reeditado em 18/05/2015
Código do texto: T5225007
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