CARTA DE AMOR

Por: Mirlene Souza
 
            Querida Helga,
 
            Tenho sonhado com seus olhos cor de chumbo. E são esses pequenos vislumbres de seu rosto o meu último alento. Sua lembrança suave é a única coisa capaz de aquecer meu coração, já que meu corpo congela no meio desse inverno impiedoso. Não contávamos que a batalha adentraria o inverno e nossos uniformes não são muito adequados para suportar o frio que faz aqui. Para piorar, nossas provisões estão quase chegando ao fim e não temos a menor perspectiva de quando nos serão enviadas novamente. Ou se serão enviadas. Sendo muito honesto, estamos nos sentindo abandonados pelos nossos superiores. Abandonados para morrer de fome, frio ou pela bala de um fuzil russo. O que vier primeiro.
 
            Tudo o que há no front são ruínas, escombros e neve. Muita neve. Uma vastidão branca que nos deixa mais desolados e deprimidos a cada dia. Alguns dos nossos começam a dar sinais de insanidade e as coisas só tem ficado piores desde que nosso oficial comandante morreu. O pobre homem teve algum tipo de surto e correu em disparada em direção às metralhadoras russas, em pleno fogo cruzado. Os mais otimistas acham que ele não suportou a pressão de ficar todos esses meses atolado na lama e na neve. Particularmente acredito que ele perdeu qualquer esperança de sair daqui e decidiu como queria morrer. Antes que o inimigo decidisse por ele.
 
            Todo o cenário é bastante dramático, como você pode imaginar. Mas quero que saiba que tenho buscado forças em suas doces recordações para seguir lutando. Se não pela pátria, pela minha própria vida. A memória de seu sorriso me conforta. A lembrança do toque delicado de sua pele branca e fina me dá fôlego para continuar vivo por mais um dia. A vontade de ter novamente entre meus dedos seus cabelos dourados e sedosos, trançados daquele jeito bonito, é o que renova as minhas energias.  E todas as vezes em que estou a ponto de perder o controle é na imagem dos seus olhos cor de chumbo, vagando por meus sonhos e misturando-se à fumaça cinzenta dos bombardeios, que eu me refugio e busco abrigo.
 
Com amor.
Para sempre seu,
F...
 
...Ouviu-se um estrondo. Uma densa névoa negra, carregada de poeira e fuligem, encobriu o ar. Depois que se dissipou foi possível ver a extensão da tragédia. Praticamente nada ficara de pé. E sobre uma pilha de corpos e destroços, ainda quentes, dedos magros e pálidos apertavam o papel. E um par de olhos cor de chumbo fitava, sem vida, o céu sem nuvens.
 

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Contadores de Histórias
Enviado por Contadores de Histórias em 29/04/2015
Reeditado em 18/05/2015
Código do texto: T5225002
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