A guerra não era para os fracos

Por: Marcos R. Oliveira
 
    Selva do Vietnã, ao anoitecer, um destacamento do exército norte-americano avança devagar, parcialmente encoberto pela vegetação. Penetravam perigosamente nas imediações da província de Vihn, que ficava um pouco acima da zona limite entre o Norte e o Sul do país. O sargento Riley, com seus quatro homens, tinha ordens para tomar de assalto um vilarejo naquela região. Deveriam estar próximos, mas a selva intrincada dificultava a orientação e locomoção.

    As ordens que vinham de Washington, prontamente acatadas pelo general Westmoreland que estava no comando das forças americanas, eram claras: conquistar pontos chave que estivessem em disputa, com o intuito de estabelecer bases e campos militares que facilitassem a escalada rumo a Hanói. O general liderava com braço forte, distribuindo seu exército sem dar fôlego ao inimigo. O que não significava que não cometesse erros, afinal, no calor da guerra, apenas uma tênue linha separa a decisão vitoriosa daquela que conduzirá fatalmente à tragédia.

    Uma chuva leve principiara a cair, encharcando os uniformes que ganhavam peso. A selva rapidamente transformava-se em um lamaçal, acorrentando os soldados ao chão. Ali, na escuridão, seus corpos mesclavam-se às folhas em uma camuflagem perfeita, apenas perceptíveis aos insetos, companheiros leais daquele destacamento.

    Conforme prosseguiam, o sargento refletia se haveriam de enfrentar resistência militar. A princípio não, pelas informações do comando, se aquelas estivessem corretas, tratava-se de um vilarejo pequeno, sem importância para as forças do Norte, habitado apenas por civis. Se confirmadas essas condições tinham ordens para que fosse evitado derramamento de sangue. E estava assim absorto em seus pensamentos quando ouviu um dos soldados:

- Sargento, luzes à nossa frente! Exclamou Brady, o mais franzino dos cinco e que era dotado de uma perícia incomum com armas.


    Riley olhou na direção apontada e contemplou, à distância, fracas luzes amarelas bruxuleantes. Era aquele o lugar.

- Muito bem, senhores, falou o sargento, não quero disparos desnecessários. Se nos atacarem respondemos ao fogo inimigo, mas sem ferir inocentes. Deve ser uma missão fácil, provavelmente são apenas camponeses, vamos evitar penalizar esses miseráveis.

- Ah! Isso infelizmente não posso prometer, sargento! Exclamou Carl, outro soldado. Sabe que quando ouço disparos minha mira vacila de forma vergonhosa, o que posso fazer se perco o autocontrole tão facilmente? E soltou uma gargalhada. Carl, por ser um dos mais velhos e experientes do grupo via-se no direito de fazer gracejos com o sargento, por vezes chegava a questionar abertamente suas decisões.
Riley não respondeu. Fez um sinal com a mão e os cinco avançaram.


    À medida em que se aproximavam do vilarejo à sua frente, a vegetação começava a rarear e as suas lúgubres habitações tornavam-se visíveis. Tinha o formato de um “U”, composto por duas fileiras de casinhas separadas por um estreito campo descoberto, as duas linhas eram conectadas no seu final por uma construção maior com duas aberturas retangulares que deveriam servir como janelas. Não havia movimento algum, o lugar parecia estar completamente abandonado, exceto pelos dois ponto de luz que tremeluziam no centro do campo, a decadência tomava conta daquelas míseras taperas. A chuva constante fustigava aumentando a impressão de desolação do conjunto.  Ao entrar no perímetro do vilarejo o sargento exclamou:

- Brady, você e eu vamos pela direita, os outros três pela esquerda, avancem em silêncio e abaixados. Façam uma varredura e nos reunimos naquele casebre maior no final.


    Mal acabara de falar e fora saudado pelo fogo inimigo. Balas zuniam sobre suas cabeças provindas de artilharia pesada forçando o grupo a recuar. Eram esperados, pensou, imaginava que aquele silêncio sinistro não era um bom sinal, mas não esperava uma recepção tão calorosa. Gritou:

- Recuar! Vamos melhorar nossa posição e fazer cantar nossas armas! Aqui estamos muito expostos!


    E as balas continuaram a varrer aquela espécie de clareira, desta vez em duas direções. A quem contemplasse aquela batalha arriscaria que os norte-americanos levavam vantagem, suas metralhadoras destroçavam brutalmente a madeira das casas, o seu matraquear era intimidador, e muitas vezes fatal. Era uma disputa interessante, de um lado a artilharia e treinamento eram notadamente superiores, do outro havia homens que lutavam com toda a força pela terra em que viviam. A uns, se vencessem, ser-lhe-iam concedidas medalhas, a outros se pudessem saborear o prazer da vitória, deveriam contentar-se com as migalhas.

    A luta parecia estender-se infindavelmente, regada pelo crepitar ininterrupto das armas. Os dois lados já haviam identificado o posicionamento inimigo e o fogo era ali concentrado.  Os vietcongues tinham três atiradores, um em cada fileira e um ao fundo. Brady deu a volta pela direita e atingiu o que estava daquele lado. E depois de despejarem um fogo infernal nas cabanas à esquerda, o disparo que vinham dali também cessaram, restava apenas um. A abordagem corria bem, pensou o sargento, apesar da surpresa inicial. Já ia ordenar novo avanço quando Carl chamou sua atenção, fazendo um sinal e tocando no cano do fuzil que trazia consigo.

    Carl percebera o comportamento daquele último atirador, ora os disparos vinham de uma das aberturas, ora da outra e sempre espaçados pelo mesmo intervalo de tempo. Notou também que, não obstante a escuridão, o vulto do inimigo também alternava entre as duas janelas, “esperto o nosso amigo amarelo, pensou, sabe que um alvo móvel é mais difícil de ser atingido, mas daqui a pouco se tornará ainda amarelo quando todo o seu sangue jorrar pelo buraco que vou abrir na sua carcaça imunda”.

    O sargento aquiesceu e Carl arrastou-se até uma das casas à esquerda, mantendo-se oculto na penumbra, acomodou-se, posicionou o fuzil e fez mira, em seguida, a um sinal seu avançaram todos os quatro em direções diferentes. Viu o vulto surgir lá no fundo e recomeçar a atirar “Bingo! Exclamou baixinho”.

    Mirou na janela da esquerda, o inimigo apareceu ali e disparou. Carl permaneceu imóvel. Segundo depois novamente a mesma rajada compassada, mas dessa vez da abertura à direita. Seus colegas avançavam disparando e em busca de cobertura. Foi então que a metralhadora inimiga cuspiu fogo pela terceira vez:
Brrraaaaaaaaaaaaaap...


    Carl disparou e viu uma sombra escura ser arremessada para trás e desaparecer dentro daquela última tapera, acertara, subitamente os tiros cessaram.

- Aquele já era sargento! Gritou Carl.

- Bela mira! Acertou na mosca! Fez uma ótima leitura da tática infernal dele, esse deu trabalho.

- Vou conferir o estrago! Respondeu Carl.

- Vá com cuidado, pode haver mais deles, falou Brady, que conhecia o comportamento intempestivo do amigo.


    Carl sacou sua pistola e desapareceu pela parte de trás da fileira de casas à esquerda. Foi deslocando-se entre elas em completo silêncio, envolto pelas sombras. Sua habilidade de infiltração era sem precedentes, nunca fora surpreendido em campo, orgulhava-se disso. Já estava na metade do caminho quando vislumbrou a silhueta de um dos atiradores, estava sentado de costas para ele, com a arma depositada sobre o colo. Ouviu que gemia baixinho, certamente não fora ferido de morte, sua respiração era rápida e ofegante. Carl colocou a pistola na cintura e sacou sua faca, era personalizada, com o cabo detalhado em madrepérola, velha companheira sua.  “Pouparei seu sofrimento”, pensou. Deslizou até o inimigo que não percebeu a aproximação e, em um só golpe, abriu sua garganta de orelha a orelha. Sentiu o sangue quente jorrar sobre seus pulsos. Deus! Como era bom aquilo! Arrastou o corpo e escondeu-o em um ponto escuro próximo ao matagal, não queria ser censurado pelo sargento, ele tinha coração fraco. E a guerra não era para os fracos, todos sabiam disso.


    Continuou para seu destino e, ao desviar o olhar para a direita por um momento, percebeu que Brady acompanhava-o pelo centro do campo. Chegou ao fim da linha deu a volta por trás, aquela última construção era bem maior, deveria ter dois andares, certamente era o principal ponto de defesa do vilarejo. Olhou através de uma das aberturas traseiras e contemplou, sob a fraca luz do luar que se infiltrava pelas frestas da madeira, o corpo imóvel que atingira. Saltou pela abertura e estremeceu ao perceber, ali, em pé, na escuridão de um dos cantos que ficava distante dele, com a metralhadora em mãos, uma daquelas horrendas faces amarelas.

    Duas rajadas explodiram quase que em uníssono. Carl viu o corpo à sua frente cambalear e ir ao chão, com o crânio esfacelado, apenas uma massa sangrenta, a mira de Brady era singular. Levou suas mãos ao peito, sentiu algo quente brotar dali, seu olhar mortiço alternava entre os dois cadáveres, não compreendia... E foi então que uma idéia transpassou sua mente e entendeu tudo. O inimigo não era apenas um a deslocar-se entre as aberturas e disparar, mas sim dois em posições fixas apenas abaixando e alternando os disparos entre si.

    Seu excesso de confiança tornara-se prepotência. Um último esgar, uma cusparada de sangue, e tombou ao chão.
As tropas americanas ainda dizimariam milhares de vietnamitas no transcorrer da guerra, mas por enquanto, era um a menos em suas fileiras. 
 
 
 

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Contadores de Histórias
Enviado por Contadores de Histórias em 22/04/2015
Reeditado em 18/05/2015
Código do texto: T5216531
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