QUANDO VOCÊ PRECISAR...

Nota do autor: Republicação.

Todo o casal tem pequenas manias, segredinhos, nomes carinhosos para tratar um ao outro e em alguns casos alguma linguagem em código também, coisas que só os dois entendem e parecem sem nexo para os outros. Kevin e Jane também tinham sua pequena brincadeira em código.

Kevin era piloto de avião e ganhava a vida prestando seus serviços de taxi aéreo para gente endinheirada, por muitos anos trabalhou para uma empresa canadense. Quando ele vendeu tudo que tinha, inclusive sua casa e ainda assumiu dívida para comprar seu próprio jato Learjet 60, seus amigos disseram que estava louco. Ele nunca duvidou que fosse prosperar rapidamente, mas agora, passados três anos que havia montado seu próprio negócio seu sucesso era evidente e já estava a poucos passos de comprar sua segunda aeronave.

Jane era fotógrafa free-lance especializada em fotos de locais turísticos, tinha um faro excepcional para captar os melhores ângulos e transformar suas fotos em verdadeiras obras de arte. Acompanhava Kevin em praticamente todas as suas viagens pela Europa e pelos Estados Unidos, o que lhe garantia vasta “matéria prima” para seu trabalho. Era uma profissional de competência reconhecida pelo mercado e vendia suas imagens para diversas revistas, o que lhe garantia um bom dinheiro todo o mês.

Kevin e Jane já estavam juntos há mais de dez anos, ele estava na faixa dos trinta e oito e ela com trinta e quatro anos. Estavam com a vida estabilizada financeiramente e planejavam ter filhos no máximo em dois anos. Parecia que eram feitos um para o outro e raramente brigavam – se é que ficar alguns minutos emburrados um com o outro pode ser considerado briga.

Típicos dos casais também tinham suas “coisas da gente” como diziam. Uma das que mais se “orgulhavam” era sua linguagem Ke-Jan que consistia em uma linguagem escrita criptografada e relativamente simples para quem conhecesse as “regras”, mas completamente sem sentido para qualquer outra pessoa. A técnica era simples, bastava substituir a letra original pela subseqüente no alfabeto e para traduzir fazer o caminho inverso. Portanto, a título de exemplo, a frase: “EU TE AMO!”, logo se transformava em “FV UF BNP!” em sua linguagem Ke-Jan. Outra variação da linguagem Ke-Jan era escrever bilhetinhos com frases pela metade, deixá-los sorrateiramente por perto e esconder a outra parte com a continuação em algum lugar inusitado. Normalmente enquanto procuravam (às vezes levavam dias para achar), ficavam imaginando o que o outro estava querendo dizer. Era normal encontrarem nos bolsos ou ao lado da cama frases como “ONTEM EU VI NOVAMENTE...” e algum tempo depois pelo entregador, dentro de um envelope acompanhado com um buquê de rosas: “.....QUE NUNCA CONSEGUIRIA VIVER SEM VOCÊ”. Na maioria das vezes os bilhetinhos serviam para quebrar o gelo após alguma conversa mais séria ou simplesmente como forma de pedir desculpas ao outro por alguma palavra ou outra mais rude em alguma discussão. Sempre funcionava.

Este era um daqueles raros dias em que Jane estava chateada com Kevin, sentada em sua poltrona do luxuoso ônibus, ainda se lembrava da discussão ocorrida na noite anterior.

Kevin havia sido contratado por um grande investidor do mercado financeiro para levá-lo com a família até a pequena cidade de Aspen, verdadeiro paraíso de neve encravado nas montanhas rochosas do Colorado. Como a viagem era só de ida e eles estavam há mais de três anos sem férias, haviam programado para ficar uma semana em Aspen em um verdadeiro retiro romântico. No terceiro dia, Kevin havia recebido uma ligação de um antigo cliente lhe pedindo para pegá-lo em Denver e levá-lo até Aspen. Como a distância era muito pequena, em torno de quatrocentos quilômetros, a viagem seria extremamente rápida e Kevin argumentou que não poderia perder a oportunidade, pois com apenas um dia de trabalho poderiam “livrar” todas as suas despesas de hospedagem. Mesmo relutante Jane concordou com seus argumentos, mas naquele mesmo dia recebeu uma ligação de Kevin dizendo que havia acontecido um grave problema com seu cliente e ele teria que levá-lo até Nova York no dia seguinte, além disso, Jane teria que pegar um ônibus à noite para encontrá-lo em Denver. Como isso acabava com os planos que haviam feito, tiveram uma grande discussão, mas Jane acabou cedendo, pois Kevin alegou que se tratava de um sério problema de saúde ocorrido com o filho do seu amigo-cliente e não havia aeronaves disponíveis.

Ainda perdida em seus pensamentos enquanto olhava a estrada coberta de neve pelo vidro do ônibus, Jane acariciou o pequeno telegrama que havia recebido poucos minutos antes de fazer seu check-out no hotel. Não tinha remetente, mas ela sabia que só podia ser de Kevin:

*“QBSB B QFTTPB NBJT JNQPSUBOUF EB NJOIB WJEB! UF BNP NBJT RVF UVEP”.

DPN BNPS, LFWJO.

PS. Quando você precisar......

*Tradução:

“PARA A PESSOA MAIS IMPORTANTE DA MINHA VIDA! TE AMO MAIS QUE TUDO”.

COM AMOR, KEVIN.

PS. Quando você precisar.....

Jane esfregou as mãos e se encolheu um pouco mais na poltrona, o frio havia aumentado muito e a calefação do ônibus estava perdendo a batalha para a pequena corrente de ar gelada que vinha da rua ela não sabia por onde. Passando as mãos no vidro da janela semi congelada, tentou visualizar algo na estrada, mas parecia que a neve e o vento haviam tomado conta da noite e ela só conseguia visualizar de relance algumas copas de árvores esbranquiçadas que margeavam a estrada sem uma viva alma.

Em pouco tempo Jane dormia profundamente. Passado algum tempo, sentindo um estranho desconforto abriu os olhos, a temperatura havia caído muito e todo seu corpo tremia em espasmos incontroláveis. Olhou seu relógio e viu que passavam poucos minutos da meia noite. O ônibus estava quase vazio e imerso em uma escuridão praticamente total, apenas algumas pequenas luzinhas espaçadas em algumas poltronas emitiam frágeis feixes de luz amarelada. Tomada de uma sensação de pânico incontrolável, levantou-se abruptamente e começou a caminhar pelo corredor, passou por um passageiro gordo que dormia despreocupadamente. Continuou caminhando e viu uma mulher de uns quarenta anos com uma menina ao lado, ambas dormiam e pareciam indiferentes ao frio cada vez mais insuportável. Cada vez mais nervosa, apressou o passo em direção a frente do ônibus para falar com o motorista, ao passar notou que todos os passageiros dormiam. Velhos, crianças, homens e mulheres, sem exceção, todos dormiam um sono profundo e tinham uma expressão de paz e tranqüilidade no rosto.

Sentindo-se no limite da razão, continuou pelo corredor até parar próximo ao motorista, respirou aliviada vendo-o pelas costas dirigir normalmente o veículo. Mesmo sentindo-se ridícula, resolveu chamá-lo, a simples voz de outra pessoa era tudo o que precisava para livrá-la de vez daquele infundado sentimento de pânico que ainda teimava em apertar-lhe o peito. Chamou a primeira vez:

- Boa noite senhor, poderia me dar uma informação?

Ele não respondeu. Chamou-o novamente, agora um pouco mais alto:

- SENHOR, por gentileza...

Nada... Com aquele crescente pânico aflorando gritou diversas vezes:

- SENHOR.. SENHOR... POR FAVOR, SENHOR..

Até que sem aviso prévio e com o corpo continuando a dirigir mecanicamente, sem mexer o restante do corpo, o motorista foi virando lentamente a cabeça por sobre os ombros num ângulo impossível em sua direção. Ficou fitando-há em silêncio por algum tempo, com a expressão vazia e os olhos esbugalhados, enquanto suas mãos e pernas grotescamente continuavam ativas ao volante, sem a mínima necessidade de apoio do resto do corpo para conduzir o veículo com maestria pela traiçoeira estrada encravada nas montanhas. Após alguns minutos e ainda mantendo a mesma postura bizarra, perguntou com uma voz sussurrada:

- Pois não senhora. Em que posso ajudá-la?

Lutando para manter sua sanidade, Jane respondeu com sua voz mais parecendo um ganido: - Quanto falta para chegarmos a Denver?

- Falta menos de meia hora para o nosso “destino”. Agora por gentileza, volte para o seu lugar. – sussurrou ele enquanto sua cabeça virava lentamente para frente em meio a estalidos estranhos de seu pescoço.

Jane permaneceu imóvel por um tempo, não conseguiria se mexer mesmo se quisesse. Ainda em pé no corredor ficou olhando a estrada através do pára-brisa dianteiro. O ônibus se movimentava numa velocidade impressionante, os fachos dos faróis eram como espadas luminosas transpassando a noite nevada. As árvores passavam como borrões esverdeados e a visão da densa vegetação dava a sensação de envolver o ônibus como um barquinho de papel afundando nas águas escuras de um lago. Logo após uma curva fechava, o vulto escuro de um grande pássaro saído do mato chocou-se com força contra o vidro... Jane não conseguia acreditar nos seus olhos, quando viu por poucos segundos a aparência demoníaca poucos metros a sua frente.. O bicho voador era peludo e lembrava uma aranha voadora, seus olhos eram vermelhos, sua mandíbula espumando e arreganhada como um cão raivoso... e as garras.. Meu Deus... Ele tinha GARRAS... GARRAS..- pensou ela em desespero - Tão rápido quanto apareceu, o macabro ser sumiu repentinamente pela lateral do ônibus e desapareceu na escuridão da noite.

Após a paralisia inicial, Jane entrou em desespero. Virou-se rapidamente e começou a correr em direção ao seu lugar no fundo do ônibus... Ao passar pelo o primeiro passageiro sentado que dormia - um homem negro de uns quarenta anos - começou a gritar e sacudi-lo freneticamente... não adiantou, ele continuava imóvel... investiu a base de tapas no seu rosto... uma, duas, três, quatro vezes... NADA... Ele nem se mexia. Passou ao próximo passageiro que viu, repetiu a mesma ação com todos que via pela frente sem nenhum sucesso... em seu frenesi alucinado, de tanto bater em uma mulher, chegou a derrubá-la de sua poltrona... NADA!

Sua mente recusava-se a raciocinar, agora seu corpo era movido pura e simplesmente pela força mais antiga e natural que possuímos... o instinto. Todas as suas células corporais estavam em alerta, seus músculos abastecidos com doses cavalares de adrenalina.

A princípio Jane só ouvia o próprio som de sua respiração acelerada e o barulho dos pneus em contato com o solo. Mas havia algo mais, ela sabia, chegou a sentir antes mesmo de ouvir. Até que sua capacidade de audição ampliada pelo medo captou aquele som: começou baixinho no teto do ônibus, levemente compassado, parecia o roçar de um longo vestido em contato com o chão ao caminhar... Meu Deus. Eram passos! – pensou Jane – Passos no teto do ônibus em movimento!!!

Com uma angústia cada vez maior em seu peito, Jane ajoelhou-se no corredor, fechou os olhos e unindo as mãos começou a chorar e rezar em voz alta, enquanto rezava começou a ouvir risos baixinhos vindo das janelas laterais... até que ouviu uma voz que parecia vir de todos os lugares e ao mesmo tempo sussurrar em seus ouvidos entre risinhos debochados:

- Ele não vai ajudá-la Jane... Ele não pode... Não aqui... Existem regras que você não compreende e nem mesmo Ele pode quebrar... Abra a janela para mim Jane... Seu sofrimento acabará rapidamente, tudo ficara bem...

Jane abriu os olhos e virou-se abruptamente em direção a lateral esquerda do ônibus... Ali, do lado de fora com o rosto colado na janela, fitando-a com um sorriso macabro estava uma figura encapuzada, tinha sinistros olhos com a íris vermelha e a pupila preta, o formato lembrava olhos de gato, sua face era a imagem do próprio mal encarnado.

- Pelo amor de Deus, o que é você? – balbuciou ela.

- Não Jane, não por Deus... mas por algo tão antigo quanto Ele. – E ao som de muitas vozes falando ao mesmo tempo, respondeu:

- Me chamo LEGIÃO... PORQUE SOMOS MUITOS! – E sua imagem desapareceu na frente dela, em meio a uma gargalhada macabra.

Em estado de choque Jane se dirigiu para sua poltrona no fundo do ônibus. Ao chegar, viu parcialmente um vulto que não estava ali antes, sentado na poltrona ao lado da sua. Jane estancou de repente, olhando para a figura com um tipo diferente de pânico lhe dominando.

- Venha até mim Jane, sente-se ao meu lado. – falou a figura com a voz calma.

- Não. Isso não é real... Eu estou ficando louca...

- Por favor, Jane, estou aqui para lhe ajudar. Mas você precisa vir até mim.

- Não... você é algum demônio... ou eu estou sonhando... ha ha ha.. é isso... tudo é um pesadelo... ha ha.. – falou Jane entre um e outro sorriso esganiçado parecendo estar à beira da histeria.

- Jane, acredite em mim. Sou eu, Kevin... – falou ele estendendo a mão - sente-se ao meu lado meu amor.

- Não... eu não agüento mais... vocês não vão mais ficar brincando comigo... estou com sono, vou sentar e dormir como os outros... pra mim chega! Eu desisto! – falou ela fazendo menção de afastar-se.

- Senhora Jane Brown Smith. Você não pode dormir. E você NÃO VAI DESISTIR.

Jane estancou ao ouvir seu nome completo, mas logo se refez e falou:

- Puxa... você quase me pegou demônio, você é mesmo muito bom... falando exatamente do mesmo jeito que Kevin quando esta bravo... mas eu realmente não agüento mais, vocês venceram e além do ma... – Jane parou no meio da frase, ao olhar para a figura que lhe fitava ternamente com um olhar suplicante enquanto segurava voltado para ela um bilhetinho rabiscado as pressas que dizia:

*”TPV FV NFV BNPS! UF JNQMPSP RVF BDSFEJUF FN NJN. UVEP WBJ BDBCBS CFN!”

*Tradução:

”SOU EU MEU AMOR! TE IMPLORO QUE ACREDITE EM MIM. TUDO VAI ACABAR BEM!”

Jane encheu os olhos de lágrimas e começou a mover-se lentamente em direção ao homem que lhe estendia os braços fraternalmente, enquanto caminhava Jane pensou que nada tinha feito sentido aquela noite... ela ainda não tinha certeza absoluta que fosse Kevin, mas pensou que se tivesse que morrer, preferia que fosse olhando para o rosto dele.

Logo que ela sentou ao seu lado, ele a tomou em fortemente em seus braços e ela sentiu uma emoção indescritível de alegria e segurança. Ela se aninhou em seu peito como uma criança amedrontada e desatou num acesso de choro incontrolável, enquanto ele afagava seus cabelos e beijava sua nuca dizendo baixinho que tudo ia terminar bem. Passaram vários minutos assim, até que gradativamente Jane foi se acalmando. Assim que se recompôs, Jane perguntou:

- Kevin, o que esta havendo? Que loucura toda é essa? Quem são estas criaturas horríveis? O que houve com estas pessoas? Como você veio parar aqui?

- Jane, você vai entender tudo. Mas agora você precisa confiar cegamente em mim. Temos pouco tempo.

- Mas...

- Jane, por favor, confie em mim. Na hora certa você vai entender tudo, mas agora você tem que fazer exatamente o que eu disser. Me prometa Jan – falou ele chamando-a pelo seu apelido.

- Ok, Kev. Vou fazer exatamente o que você me disser.

- Daqui a pouco o ônibus vai fazer uma breve parada, só vamos ter uma chance.

- Ok, e o que devo fazer?

- Nós vamos descer juntos...

- Descer? Não Kev, eu te imploro. Eles estão lá fora... Eles vão nos pegar...

“NÃO JANE, NÃO VAMOS PEGAR VOCÊ... PODE VIR, ESTAREMOS AGUARDANDO...”

- Kev, é aquela voz... eles estão lá fora, e veja as janelas, estão todas cobertas de sangue... e eles... e eles estão me olhando... estão me chamando Kev... eu não quero... por favor, não...

Agora as duas laterais do ônibus estavam tomadas de seres macabros que olhavam para dentro, fazendo sinal para eles saírem.

- Jan, estamos lidando com algo acima da compreensão humana, são seres amaldiçoados e ardilosos, a mentira é uma de suas armas. Não posso lhe falar mais nada. Lembre-se o que lhe falei, confie em mim, faça tudo que eu disser.

“ISSO KEVIN, TRAGA ELA PARA NÓS, FAÇA SUA PARTE E VOCÊ VAI RECEBER TUDO O QUE LHE PROMETEMOS”.

- Jan, pegue a minha mão, precisamos ir em direção a porta.

Após hesitar pela última vez, Jane pegou a mão dele e começaram a andar pelo corredor. Kevin ia à frente, caminhando lentamente com Jane logo atrás. Mal tinham dado alguns passos quando Jane olhou para a direita e viu um dos demônios, ele estava mastigando... tinha algo nas mãos... sua boca estava toda lambuzada de sangue... e ele segurava... Deus misericordioso, ele segurava um pequeno braço de criança amputado nas mãos enquanto o levava a boca calmamente lhe olhando com os dentes arreganhados. Eles são mentirosos pensou ela, isso não passa de um ardil... Apertou a mão de Kevin mais forte e continuou andando.

Avançaram um pouco mais, estavam no meio do ônibus, ao passarem por uma criança que dormia, ela levantou abruptamente... com os olhos ainda fechados e com movimentos que lembravam um fantoche segurou o braço de Jane enquanto falava:

- Por favor, senhora, me leve com você. Eu estou com medo.

- Kev, espere. Temos que levar esta criança.

- Não podemos.

- Por favor, senhora, eu estou com muito medo, não sei o que houve com minha mãe, por favor, me tire daqui.

- Kev, por favor, eu...

- CONFIE EM MIM !

- Me perdoe. - falou Jane para a criança que chorava baixinho enquanto eles se afastavam, para logo depois cair inanimada novamente na mesma posição original, como se nunca houvesse se mexido.

“ISSO JANE... ABANDONE A CRIANÇA... TEMOS UM LUGAR ESPECIAL AQUI PARA PESSOAS COMO VOCÊ QUE NEGAM AJUDA A PEQUENOS INOCENTES...”

- Kev...

- Jan, confie em mim.

Continuaram caminhando, o frio estava ficando insuportável, o chão estava tomado de uma névoa típica de grandes câmaras frigoríficas. Haviam acabado de passar por sobre a mulher que Jane havia derrubado no corredor, quando com o braço ela deu um bote parecido com uma cascavel e agarrou o tornozelo de Jane... Ao olhar para a mulher ao tentar se desvencilhar, ela apenas lhe disse antes de lhe soltar: - Cuidado... lá fora eles mordem! – Jane apertou os olhos com força, colou sua cabeça nas costas de Kevin e deu os últimos passos até chegar à porta.

- Jan, prepare-se, esta quase na hora. Logo depois que eu falar com o motorista, ele irá abrir a porta e precisamos descer rapidamente ou não conseguiremos. Você não pode hesitar ou estaremos perdidos, você entendeu?

- Si... Sim... Kev – gaguejou ela.

- Agora o mais importante. Assim que passarmos esta porta você terá que fechar os olhos, não os abra em hipótese alguma, aconteça o que acontecer. Você entendeu?

- Sim não abrir os olhos em hipótese nenhuma.

- Outra coisa, eu poderei falar com você, mas você não pode falar comigo... nem me dirigir à palavra... nem me chamar... dizer o meu nome... NADA... Sinta o que sentir, pense o que pensar. Você só deve obedecer a minha voz... Por favor, Jan, Minha Princesa... isso é muito importante... diga que você vai fazer exatamente o que eu te falei...

- Sim meu amor, eu vou fazer exatamente o que você me falou.

- Jan, aqui neste lugar o amor tem poder, ele pode vencer todo o mal porque se ficarmos unidos Deus estará conosco. Esta pronta?

- Sim, só mais uma coisa: eu quero que você saiba que eu te amo mais que tudo na vida Kev.

- Eu sei Jan, sempre soube, nunca duvidei disso desde o primeiro dia em que nos vimos. E aconteça o que acontecer, saiba que sempre te amarei.

As palavras às vezes são pequenas para expressar os sentimentos, mas o beijo que trocaram não deixou dúvidas que nada mais precisava ser dito. Afastaram seus corpos lentamente um do outro e apenas com um olhar sabiam que estavam prontos e que havia chegado a hora. Kevin sussurrou algo no ouvido do motorista e em segundos ele estacionou o ônibus a margem da estrada.

“VENHA KEVIN, TRAGA JANE PARA NÓS COMO UM BOM GAROTO... ENTREM NOS NOSSOS DOMÍNIOS”

Tudo aconteceu muito rápido, assim que o veículo parou, a porta abriu repentinamente, Jane fechou os olhos e sentiu Kevin apertar sua mão e puxá-la com força em direção a escuridão gelada.

Assim que pisou no chão, Jane perdeu o equilíbrio e quase caiu, mas conseguiu manter-se de pé apoiada na mão firme de Kevin.

- Isso meu amor, muito bem continue – falou Kevin.

Jane caminhava com dificuldade, o caminho parecia estar coberto de neve e a cada passo suas pernas afundavam quase até o joelho. Com os olhos fechados e imersos na escuridão total, Jane sentia o vento gelado açoitar seu corpo. Sentia-se completamente desorientada, não fosse à mão de Kevin a guiá-la com determinação e firmeza.

Jane ouvia na noite sons de asas batendo, risos debochados, crianças chorando desesperadas e grunhidos animalescos indescritíveis.

Haviam transposto somente alguns metros e o silêncio de Kevin era desesperador, não fosse o contato com sua mão e ela já teria entrado em pânico. Jane começou a ouvir passos logo atrás dela e sentiu um frio subindo por sua espinha... sentiu uma respiração muito próxima do seu ouvido esquerdo... logo seguido de um sussurrar que lhe fez gelar a alma: - Bem vinda aos meus domínios Jane, abra os olhos e contemple meu reino e meus súditos... Abra os olhos agora e prometo que seremos rápidos, caso contrário faremos Kevin passar por um sofrimento indescritível... – Jane se concentrou no que Kev havia lhe dito e por instinto apertou ainda mais forte a mão dele. Na mesma hora ouviu Kev falar: - Confie em mim.

Continuou caminhando... deu um tropeção e caiu de joelhos... ao se apoiar para levantar encostou em algo peludo e ouviu um rosnar: GRRUMM... ficou imóvel por alguns segundos enquanto sentia mais de um animal rondá-la dando alguns trancos em seu corpo... os animais pareciam prestes a atacar, mas por algum motivo não o fizeram... Um puxão firma da mão de Kevin a colocou de pé novamente.

- Confie em mim – falou a voz de Kevin.

Retomaram a marcha, aos poucos Jane notou que a neve estava menos densa... apesar do cansaço estava mais fácil caminhar... logo em seguida já caminhava normalmente... a neve havia sumido... começou a sentir seus pés pisando sobre gravetos que estalavam a cada passo que dava... a voz novamente: “NÃO JANE... NÃO SÃO GRAVETOS... SÃO OSSOS... OSSOS DE PESSOAS QUE NÃO SEGUIRAM MINHAS ORDENS... ABRA OS OLHOS... ABRA OS OLHOS OU TERMINARÁ COMO ELES...” – Meu Deus, estou pisando em corpos – pensou Jane. Agora cada estalido que ouvia era como se adagas penetrassem em seu coração, mas Jane continuou.

Alcançaram um terreno pantanoso, com relva alta... - “VOU LHE APRESENTAR ALGUMAS DE MINHAS AMIGAS”. – De imediato ela começou a sentir várias patas peludas subirem por suas pernas, muitas, dezenas de aranhas de todos os tamanhos escalando seu corpo... subindo pela suas costas... seu pescoço... seus cabelos e até no seu rosto... – “BASTA UMA PICADA JANE... UMA PICADA DE ALGUMA DELAS E VOCÊ TERÁ UMA MORTE HORRÍVEL... ABRA OS OLHOS E ELAS NÃO LHE FARÃO MAL”... – As aranhas estavam por todo o seu corpo, ela se debatia, não conseguia se livrar... tinha que apertar os lábios, pois tentavam entrar em sua boca... Jane tinha fobia de aranhas e estava entrando em desespero quando ouviu a voz de Kevin em seu ouvido: - Corra um pouco comigo, meu amor. – E correram, e aos poucos ela se lembrou de como adorava correr... e em seguida as aranhas ficaram para trás e não passavam de uma lembrança ruim.

Diminuíram gradativamente o ritmo até que estavam caminhando novamente. Jane realmente estava começando a ter esperança, com Kev ao seu lado ela seria capaz de tudo. Foi quando ele parou e disse ao seu ouvido:

- Não fale comigo... vou lhe fazer algumas perguntas, se a resposta for “sim” aperte uma vez a minha mão. Esta sentindo as pequenas pedras sobre seus pés?

Ela apertou uma vez.

- Preste muita atenção. A largura deste caminho de pedras tem em torno de um metro. Do seu lado esquerdo tem asfalto, do seu lado direito tem grama. Se pisar em um ou em outro, não continue. Mantenha-se nas pedras. Entendeu?

Ela hesitou... uma lágrima escorria pela sua face. Ele tornou a perguntar: - Jan, você entendeu?

Ela apertou uma vez novamente.

- Caminhe devagar para manter-se sempre em frente, ou você pode perder o senso de direção e acabar voltando pelo caminho oposto. Mantenha os olhos fechados até que sinta o calor do sol ou que o caminho de pedras acabe e não abra os olhos enquanto ouvir qualquer som fora do normal. Você entendeu?

Com um gemido baixinho e as lágrimas caindo em abundancia pelo seu rosto, ela apertou debilmente sua mão uma vez.

- E Jan, a última coisa... falta muito pouco, mas daqui em diante você terá que seguir sem mim... não confie nem na minha voz, não falarei com você novamente. Eu sinto muito meu amor, mas é o único jeito... – depois de um longo silêncio – Você entendeu? Vai fazer o que eu disse?

Ela apertou duas vezes sua mão. Não tinham combinado este código, mas ambos sabiam que era uma negativa.

Ainda segurando sua mão, ele a tomou em seus braços e deu-lhe um longo beijo, depois sussurrou baixinho em seu ouvido: - Meu Amor... Confie em mim!

E Jane apertou uma vez a mão de Kevin, ao que ele respondeu soltando levemente sua mão antes de apoiá-la em suas costas dando a direção para que ela iniciasse a caminhada.

Jane progredia muito devagar, atenta ao som das pedras sob seus pés para manter-se no caminho correto. Já fazia um bom tempo que ela estava caminhando e não ouvia nada de estranho ou algo que a assustasse. Foi quando ouviu leves passos logo atrás de si... em seguida sentiu que pegaram sua mão... puxou o braço com força tentando se desvencilhar, quando ouviu a voz de Kevin:

- Calma Jan, sou eu, Kevin. Agora vai ficar tudo bem, estou aqui com você novamente.

Ela parou... em dúvida sobre o que fazer... quando Kevin, da mesma forma que diversas vezes antes... ainda segurando sua mão... passou a sua frente e começou a guiá-la... Ela começou a segui-lo, mas com receio, muito devagar, tendo o cuidado de não perder o senso de direção...

- Venha meu amor, não tenha medo, estamos quase chegando... temos que ser rápidos.

Jane notou que ele começou a tentar ir muito rápido, se ela acompanhasse seu ritmo iria perder o senso de direção... em pânico, parou bruscamente e desvencilhou sua mão esperando uma reação agressiva. Ele não se abalou, nem sequer tentou pegar de imediato sua mão novamente... Meu Deus pensou Jane, será que é realmente Kevin? E se for ele e eu abandoná-lo? Enquanto estava perdida em seus pensamentos, Kevin falou calmamente enquanto pegava carinhosamente sua mão:

- Jan, Meu Amor... Eu sei que você esta com medo... Eu também estou... Mas eu consegui estar com você de novo... Eu descobri que a única forma de sairmos daqui é juntos... Como sempre foi. Eu e você para toda vida... Juntos vencemos qualquer desafio... Por favor... CONFIE EM MIM !

Meu Deus... É ele... É ele mesmo... É o meu Kev... e tomada de alegria, como forma de brincadeira apertou uma vez sua mão. Ele não reagiu. Esperou mais um pouco e apertou levemente uma vez sua mão novamente... Até que ele falou calmamente: - E então Jane... me responda... você confia em mim?

Foi estranho, mas Jane não sentiu medo... foi tomada por uma tristeza arrasadora... puxou sua mão e localizando-se rapidamente virou as costas ao demônio e seguiu seu caminho cantarolando mentalmente uma canção enquanto ele ao ver que tinha sido descoberto bradava enlouquecido: “SUA VAGABUNDA... ACHA QUE VOCÊ E SEU MARIDINHO PODEM ME ENGANAR??? NINGUEM ESCAPA DOS MEUS DOMÍNIOS... VOCÊS VÃO ARDER NO INFERNO... AINDA VAMOS NOS ENCONTRAR NOVAMENTE... EU AINDA VOU PEGAR VOCÊS DOIS”.

Quanto mais Jane se afastava, mais a voz ia sumindo gradativamente e mais alegre ia ficando ao lembrar suas últimas palavras: “eu ainda vou pegar vocês dois...”, em seu raciocínio isso queria dizer que onde quer que esteja Kev também tinha escapado.

Cerca de quinze minutos depois, Jane sentiu o sol escaldante em seu corpo... abriu os olhos lentamente e viu os primeiros raios de sol sobre as montanhas... uma beleza indescritível... a estrada também estava normal, com o dia ensolarado e carros passando com suas famílias.

Ao olhar mais ao longe, notou um congestionamento de veículo e vários carros da polícia estacionados próximos a uma curva... Também havia uma grande aglomeração de pessoas... Ao chegar ao local, perguntou a um policial o que tinha acontecido... e ele consternado falou:

- Foi um acidente terrível minha senhora, o ônibus que vinha de Aspen ontem a noite não venceu a curva e caiu numa ribanceira de mais de cinqüenta metros. Uma fatalidade, não sobrou ninguém vivo. Ainda se refazendo do susto, Jane chegou próximo a um patamar panorâmico e visualizou o ônibus em que estava completamente destruído acondicionado no ventre das montanhas.

Denver estava próximo e não foi difícil conseguir uma carona com uma família. Chegando à cidade, foi direto até o hotel onde Kevin disse que estaria hospedado. Ao chegar à recepção, foi atendida pelo recepcionista:

- Bom dia, em que posso ajudá-la?

Tentando controlar a ansiedade na voz, Jane respondeu:

- Eu gostaria de falar com o Sr. Kevin Smith que esta hospedado neste hotel.

- Ah... Entendo. A senhora é parente dele?

- Sim, sou sua esposa. Por quê? Algum problema?

- Bem, acho melhor à senhora falar com o nosso gerente. Por gentileza, só um minuto que vou chamá-lo.

O recepcionista afastou-se rapidamente, Jane já imaginava a notícia que iria receber, tentou agir naturalmente por pura esperança tola.

Enquanto esperava viu um jornal da região sobre o balcão cuja notícia de capa dizia: “GRAVE ACIDENTE AÉREO EM DENVER”. Folheando as páginas nervosamente encontrou a matéria:

“Duas pessoas morreram ontem à noite em grave acidente no aeroporto de Denver entre um Boing da American Airlines e um Learjet 60 da empresa de taxi aéreo Free Air. As causas ainda necessitam ser investigadas, mas o fato é que o Boing da Airlines saiu da pista durante a aterrissagem atingindo em cheio o Learjet que estava taxiando. O acidente ocorreu em torno das 22 horas, horário local e os dois ocupantes do Learjet, o piloto Kevin Smith e o passageiro Mark Velasco morreram na hora. Os quarenta passageiros do Boing foram levados para o Hospital Público de Denver, mas ninguém ficou gravemente ferido. A aterrissagem aconteceu em meio a uma forte nevasca e antes de atingir o avião da Free Air, o Boing partiu uma cerca de proteção que rodeia o aeroporto”.

Jane caminhou um pouco sem direção pelo saguão do hotel, até que sentou-se aleatoriamente num local mais reservado procurando organizar seus pensamentos e lidar com aquele terrível sentimento de perda. Sem reação e sem saber o que fazer com as mãos enfiou-as nos bolsos do casaco... sentiu um papel roçar-lhe a mão direita, ao retirá-lo do bolso seu coração quase saltou pela boca quando reconheceu a caligrafia de Kevin:

...eu vou estar ao seu lado. Meu Amor, algumas coisas só entendemos quando partimos. Quis o destino que eu partisse pouco antes de você. Mas quis meu amor que eu não te deixasse partir se houvesse algo que eu pudesse fazer. Existem regras e só existe uma forma de escapar da morte: alguém do outro lado deve nos guiar através do Mundo dos Demônios, mas para isso é necessário muita confiança e amor inabalável, pois ambos podem perecer na jornada e serem condenados a uma eternidade de horrores indescritíveis. Além disso, o vivo, cerceado de praticamente todos os seus sentidos deve fazer a jornada as cegas através dos olhos do seu guia. Sua única proteção e salvo conduto é não testemunhar este mundo amaldiçoado e não falar com os mortos em seus domínios... nem mesmo com seu guia. Basta uma palavra, um olhar de relance, e os dois são condenados pela eternidade. Além disso, parte da jornada devem fazer sozinhos pois as saídas são diferentes e permitidas somente para os daquele nível, os vivos passam pelo “Vale das Almas” e os que partiram passam pelo “Vale da Ascensão”, mas ali também não estávamos realmente sozinhos pois havia um ser de luz iluminando nosso caminho. Quanto aos passageiros, não se preocupe com eles nem com a menininha Meu Amor, pois eles estão comigo em um lugar de paz, luz e amor. Eles estavam dormindo porque é a forma dos justos e inocentes partirem com serenidade e sem sofrimento. Agora tenho que me despedir. Não chore por mim, pois estou em paz. Viva sua vida com plenitude e amor. E saiba que quando chegar a hora da sua partida, eu estarei lhe esperando para iniciarmos nossa última jornada juntos.

Do seu eterno amor, Kev.