O SERVIÇAL DO INFERNO - DTRL 26 - Duplas

Em uma noite anônima de 1979

O casal observava o homem completamente nu, amarrado junto ao solo, no centro do que parecia ser um enorme pentagrama.

— Já não devia ter acordado?

— Sei lá, a dose de Rivotril que coloquei na bebida deste desgraçado foi para derrubar mesmo. – Respondeu a mulher com determinação.

Desde que ela finalmente lhe convenceu a participar daquele ato tanto insano quanto macabro, o que ele mais temia era ter que encarar o olhar do amigo na hora da morte. Não era assim que ele tinha pensado, sabia que assim não conseguiria. Estava inseguro, bem diferente da postura da mulher, que abriu um sorriso em êxtase ao ver que a vítima finalmente tinha acordado.

— Você não tem que fazer isso, não ouça esta mulher ou será sua perdição. Somos amigos, não faça isso... Não vou pedir outra vez. – Disse o homem amarrado, aparentando uma calma improvável para sua condição.

Vendo o companheiro paralisado pela dúvida, a mulher entrou em ação.

— Deixe que eu cuido disso. – Disse ela, pegando a faca com firmeza e indo em direção ao homem indefeso.

O outro estava deitado de barriga para cima, com braços e pernas estendidos e as extremidades dos membros amarrados ao que pareciam ser grandes hastes de metal cravadas no solo. Estavam numa espécie de sótão, não havia janelas, as paredes eram de pedras, a umidade visível em todo lugar e uma única lâmpada lutava bravamente para abrandar as trevas sem muito sucesso. A vítima conhecia aquele ambiente, sabia que não adiantaria gritar.

Os olhos dela acenderam-se e as feições doces se transformaram, dando-lhe um aspecto monstruoso. Soltou um risinho que mais parecia um ganido, estava realizada brincando com a faca pelo corpo nu, fazendo pequenos cortes em alguns pontos onde não conseguia conter-se.

— Você não precisa mais disso aqui! – disse ela ao agarrar com uma mão seu pênis e a bolsa escrotal. O corte não saiu perfeito, o membro foi todo decepado, mas um dos testículos permaneceu pendurado junto ao corpo. O suor do infeliz escorria frio quando o sangue jorrou quente e abundante, ambos misturando-se com a urina, tudo percorrendo suas coxas e empapando as costas e nádegas. Quando a faca retornou, agora com corte firme para extirpar o que sobrara do seu sexo, a lâmina afundou na carne com maestria, seus dentes travaram, os nós dos dedos ficaram brancos, tamanha era a força que agarrava as hastes numa tentativa inútil de se libertar. Um urro animalesco brotou forte de sua garganta denunciando toda sua agonia enquanto a mulher concluía a bizarra castração.

Mesmo com a dor inclemente, parecendo semiconsciente, o homem não deu mais um grito sequer. Agora balbuciava frases desconexas em um tom tão baixo que era impossível saber se estava rezando, proferindo ameaças, pedindo piedade ou simplesmente desejando uma morte rápida. Ela ficou observando ele sangrar por um bom tempo, até cansar de brincar.

— Eu quero matá-lo com minhas próprias mãos! Segure a cabeça dele.

O cúmplice se agachou próximo à cabeça do amigo, tomando o cuidado para ficar numa posição que seus olhares não se cruzassem.

— Pegue pelos cabelos e puxe a cabeça dele para trás. – Ordenou a mulher sentando sobre o peito daquilo que já fora um homem.

Duas mãos ensanguentadas fecharam-se sobre sua garganta, o homem continuou a recitar suas lamúrias desconexas e a proferir palavras inaudíveis, ela aumentou a pressão, seus olhos ficaram injetados de sangue, o pulmão clamava por ar, os músculos tremiam descontroladamente e próximo ao último espasmo da vítima, ela disse: – Seu filho da puta!!! Agora entrego tua alma ao diabo em troca da minha felicidade! – por entre a gosma que escorria farta de seus lábios, ele respondeu algo, segundos antes de sua língua sair grotescamente da boca e finalmente expirar pela última vez.

***

Brasília – Distrito Federal – 2002

— Puta merda! Não posso mais assobiar?

Sua reação não deixou de surpreender Dr. César, chefe da equipe médica que havia acompanhado Otávio desde sua transferência para o Hospital das Clínicas.

César liderava, além de uma equipe multidisciplinar de médicos experimentados, um grupo de residentes. Discutiram à exaustão aquele caso que era considerado de alta complexidade já que Otávio sofreu ferimentos múltiplos em praticamente todo o corpo. Todas essas lesões foram se curando, restando aparentemente uma única sequela: a de ter perdido definitivamente o freio labial superior. Isso, de alguma maneira, terminou por impedi-lo de assobiar, dado que sua técnica inconsciente não era capaz de lidar com essa alteração morfológica.

A insólita exclamação de Otávio acerca desta condição acabou causando um certo aborrecimento em César, já que, após mais de quarenta e cinco dias desacordado e quase que totalmente convalescido, Otávio, ao ouvir aquilo que aquele médico considerava como boas novas, simplesmente deu de ombros, “um belo foda-se para a equipe médica” – como confidenciou a um interno – que não conseguiu salvar a sua prega bucal, matando seu assobio.

Nesse contexto é que César sentiu um certo prazer em informar para Otávio que apenas havia lhe dado ciência da evolução dos traumas sofridos por parte de seu corpo, mas que, por outro lado, não tinha qualquer ideia sobre eventuais danos sofridos pelo cérebro e sistema neurológico.

É verdade que, a despeito de Otávio ainda estar sonolento e meio tonto, sentia-se relativamente bem.

Egresso do Núcleo de Preparação de Oficiais da Reserva – NPOR – cuja rusticidade do curso, lhe acrescentou ao físico, já naturalmente robusto, uma certa rudeza que propiciou quebrar com o próprio peito, em muitos pedaços, o volante do Opala SS que dirigia em estado de total embriaguez pela Via L2 Norte.

Um dia após sua consciência dar as caras rapidamente à equipe médica, logo pela manhã, foi acordado por um beijo leve em sua testa. Abriu os olhos e ali estava Priscila Swartz, uma loira alta de sorriso largo, dentes muito brancos e quadris de sonho, de quem Otávio insistia em dizer para os amigos que estava comendo, enquanto na prática encontrava-se completamente apaixonado por ela.

Ela era enfermeira do Hospital Naval, filha de um Capitão de Fragata que possuía bom trânsito nos corredores do poder.

— Que susto você nos deu! — disse ela sorrindo ao tempo em que ajeitava umas flores do campo em uma mesinha ovalada mais ao canto do quarto.

Priscila puxou uma cadeira, sentou-se ao lado de Otávio e, tomando-lhe a mão, disse que ele seria liberado para terminar sua recuperação em casa. Otávio não havia se concentrado em absolutamente nada desde o momento em que havia acordado com aquele beijo. Apenas lhe passava de relance pela mente, enquanto encarava os olhos claros de Priscila, a imagem de sua pele desnuda, cuja brancura se quebrava eventualmente por tons rosáceos magistralmente insculpidos estrategicamente onde, tanto ele quanto ela, se deleitavam ao deterem-se por lapsos imponderáveis de tempo; quando as dimensões da física, admitidas ou supostas, eram substituídas pela supremacia dos sentidos e era possível sentir o gosto da cor, o cheiro do tato, a lisura da palavra, ouvir o calor e sentir que se iria morrer de tanto viver.

Essa ternura durou o mesmo tempo no qual Priscila segurou sua mão. Quando ela lhe soltou e se levantou, estava convicto de duas coisas: não houve qualquer dano à sua virilidade e não havia nenhum objeto colorido naquele quarto.

Percebeu isso ao prestar atenção nas flores, lindas, que ela lhe trouxera. Poderia ser um buquê de legumes, com couves, brócolis e alcachofras que não faria diferença: aqueles pretos, brancos e cinzas embotavam completamente sua capacidade de identificar afinal de contas de que flores era feito aquele buquê.

Por causa disso recordou-se de César e de sua conversa sobre a saúde de seu cérebro.

— Será que essa porra é por causa da porrada? – pensou alto.

— Não se preocupe, estou aqui e vou te levar pra casa. – Sacramentou a loirisse em pessoa, Priscila Swartz. – Vou cuidar de você.

***

Dia 1

Bem, não sei ao certo como começar com isso. Acho bobeira do Dr. César quase me obrigar a fazer essas gravações. Mas sua justificativa é bem plausível se eu for pensar bem. Ele diz que posso vir a passar por lapsos de memória, ou mesmo que eu tenha perdido irremediavelmente uma parte delas. Sinceramente? Quem me dera. Eu lembro de tanta coisa... e se há tantas memórias ruins e quase me faltam as boas, não se trata de eu tê-las perdido... talvez seja por que eu nunca cheguei a possuí-las.

Enfim, não recebi um manual sobre como fazer isso. Dr. César mencionou que há memórias de curto e longo prazo e que eu não precisaria me ater a uma cronologia exata. Eu deveria gravar tudo que lembrasse e que seria bom de qualquer forma, para identificar uma sequela pós-traumática ou para lidar com os meus monstros interiores.

Antes de tudo quero lembrar o quanto aquela loira é linda e como ela tem sido tão importante neste momento de minha vida. Lembro também que o André me recebeu em sua casa de uma forma tão generosa que nem sei se serei capaz de lhe retribuir algum dia. Quero lembrar dessas duas coisas em primeiro lugar. Se um dia eu esquecê-las e tiver que ouvir essa gravação, são as primeiras coisas que gostaria de rememorar. Otávio, lembre-se.

Não tem como eu começar sem falar do meu pai. Afinal de contas, me lembro bem, enchi a cara e quase morro ao bater com o carro em alta velocidade logo após saber que ele se suicidou.

Eu saí de casa com 17 anos e desde então, passados cinco anos, não tínhamos mais nos visto. Não sei porque me surpreendi com a notícia, talvez por tê-la achado tardia, achei que subir no velho balanço, prender uma corrente a ele, depois no próprio pescoço e lançar-se ao chão, para nunca o encontrar, seria algo que eu terminaria testemunhando quando ainda morava em casa. Mas não, ele definitivamente me surpreendeu. Apenas uma semana após eu retornar para esta cidade, ele se matou.

Dia 2

Por que estou gravando isso? Chega a ser quase engraçado. Não, retiro o que eu disse. Dizem que a comédia flerta com a loucura, então, é engraçado mesmo. Meu pai costumava ser um bom homem, apesar de ser um acadêmico na área de antropologia, até construiu, ele mesmo, uma casa na árvore para mim quando eu ainda era bem pequeno, mesmo com todo o restante do exército de adultos dizendo que aquilo era uma irresponsabilidade, que eu poderia cair lá de cima e morrer, sem falar nos demais presságios de mau agouro que viviam proferindo, mas nunca se confirmaram. Eu adorava aquela casa na árvore, e amava ainda mais o tempo que eu e meu pai passávamos nela juntos, fazendo todo aquele tipo de coisas legais que os filhos fazem com pais que curtem estar com a cria. Foi um tempo muito bom, infelizmente não durou muito.

Lembro muito bem do primeiro dia que meu pai começou a mudar. Morávamos próximo a um projeto de praça e sempre íamos lá, naquele final de tarde nós dois jogávamos bola, era um dia normal como tantos outros e lembro-me de estar feliz. Quando a noite chegou voltamos para casa, meu pai se manteve calado e pensativo durante todo tempo que caminhávamos, achei estranho, mas já tinha idade para saber que as vezes os adultos ficavam assim e confesso que não dei muita bola.

Comemos uma janta comum que mamãe preparou e depois de fazer meu dever de casa fui para meu quarto deitar, tinha começado uma garoa fina, daquelas que parecem uma canção de ninar. Acordei de sobressalto no meio da madrugada, a chuva tímida tinha se transformado numa tempestade feroz. O vento uivava e açoitava forte a janela, a energia tinha caído, a única luz que afastava a escuridão por poucos segundos eram dos raios que caiam com um estrondo que fazia todo quarto tremer. Já estava assustado e entrei em pânico quando notei que tinha algo comigo no quarto, meus olhos lutavam para se adaptar à escuridão. Não conseguia vê-lo, mas sabia que estava ali pela sua respiração alta e sincopada, um cheiro forte e nauseante invadiu minhas narinas, queria correr, mas o medo me paralisou quando meus instintos denunciaram que aquela coisa se movia sorrateira no meu quarto, bem em frente à porta, espreitando... bloqueando a única saída possível. Um primeiro clarão: o vulto parecia um homem, mas se movia de forma estranha. Silêncio. Pânico. Escuridão. Segundo clarão: a coisa vinha em minha direção. Desespero. Vai me pegar... Escuridão. Gritei pelo meu pai com todas as minhas forças.

— Papai está aqui, e veio brincar com você! — Da escuridão, sussurrou a coisa de forma zombeteira com uma voz que de certa forma me era familiar.

Mais um clarão: a poucos centímetros de mim, vi com perfeição uma face dantesca, olhos vermelhos e esbugalhados, narinas desproporcionalmente abertas a me farejar, uma boca arreganhada, com dentes podres e uma saliva amarelada escorrendo pelas extremidades. Vomitei. Não sei se pelo pavor, pelo cheiro insuportável ou simplesmente por ter reconhecido meu pai por trás daquela máscara aterradora que seu rosto tinha se transformado.

Aquela noite foi a mais longa da minha vida, com aquilo me torturando com ameaças por horas e horas até amanhecer.

— Este é o nosso pequeno segredo e, um dia, vou te levar comigo de volta para o inferno!

Fiquei paralisado. Não consegui reagir. Eu tinha oito anos, e aquela foi a primeira de muitas vezes que o demônio possuiu meu pai.

Dia 3

Não poderia dizer que minha infância foi tumultuada. Com exceção daqueles momentos que agora me parecem fatos isolados, basicamente todos referentes à minha saudosa casa na árvore, poderia dizer mesmo que não tive infância. Por outro lado, ao contrário de fatos que se isolaram para marcar as poucas imagens dos vestígios de homem que foi meu pai, são abundantes e predominantes as lembranças de medo, dor, nojo e desespero.

Poucos dias após eu tê-lo visto com outro rosto, outra voz e definitivamente possuído por um demônio que queria me ver morto, minha irmã simplesmente desapareceu. Bianca era cinco anos mais velha do que eu e fiquei muito confuso com aquele fato. Imaginei o que ele poderia ter feito a ela, talvez algo muito pior do que fez a mim. Ele diariamente dizia, à vista das lágrimas da minha mãe, que ela tinha sido levada por causa do pecado. Quando eu ouvia isso, uma visão aterradora se apossava de mim, ao imaginar as aflições que ela teve de suportar junto daquele homem, ou daquele ser no qual ele se transformou. E o pior de tudo era engolir sua versão de que foi ela quem havia cometido algum pecado.

Nos dias que se seguiram ao desaparecimento — ou fuga — de Bia, minha vida se tornou um inferno. Fiquei com muito medo do fato de que agora eu era o objeto único de sua sanha. Uma certa noite, eu já com onze anos, durante um dos poucos intervalos em que o sono vencia o temor, senti um cheiro forte, muito esquisito, mas já familiar, que foi me trazendo aos poucos de volta à insônia e quando abri meus olhos... Oh deus! ... ... ... Hm mm... Uhmmm... Desculpe, Otávio, se choro... estava ele novamente com o rosto completamente deformado, as órbitas de seus olhos pareciam querer se esconder ao girar lentamente em sentidos desiguais, sua voz não era a mesma, ele babava e, ao sobrepor a mão em minha boca e nariz, chegou muito perto e disse, quase lambendo meu ouvido: “Eu sei... ninguém mais sabe, mas eu sei...”. Eu devia estar roxo, me debatendo, sei que ele ainda me dizia alguma coisa quando perdi os sentidos. Não ficou escuro, nem claro, não ouvi nem vi nada. Apenas um instante e abri os olhos já pela manhã. A casa estava muito calma. Tudo em seu lugar, a não ser pelo fato de que minha mãe já não estava dentro dela. Encontrei-o na casa da árvore, da qual eu já havia esquecido. Calado, diferente do dia anterior, vislumbrava o horizonte com um olhar perdido. Como ela pôde? Ou terá sido ele? Pensei nisso tudo, mas o enredo macabro se repetiu da mesma forma que no sumiço da minha irmã. A polícia novamente investigou, dessa vez de forma ainda mais rigorosa. Interrogaram a mim, a meu pai e a muitas outras pessoas por diversas vezes, mas, no final, restaram muitas perguntas e nenhuma resposta. Não havia corpos, não havia vestígios de crime, tampouco paradeiro. Não havia nada para incriminar ninguém. Restou o vazio e o pânico de agora estar realmente sozinho, tendo apenas meu pai e o demônio como companhia.

Dia 4

Pode ser impressão minha, mas acho que minha visão esta piorando. Otávio, apesar de sua infância e adolescência terem sido algo tão insano, como que inspiradas em uma tela de Salvador Dali, o fato de você não enxergar mais as cores e nem conseguir assobiar foram sequelas do seu acidente de carro e não uma herança da sua bela vida com sua família. Espero sinceramente que não precise ouvir isso, que tudo seja um zelo exagerado do Dr. César e que não tenha nenhum dano permanente, lapsos de memória ou coisas deste tipo.

Agora, voltando para minha vida de merda... cheguei aos meus 14 anos e nunca me senti tão sozinho. Sem mãe nem irmã e com o relacionamento com meu pai completamente deteriorado. Vivíamos a maior parte do tempo como robôs, cada um de nós imersos em seus próprios pensamentos e interagindo o mínimo possível. Havia sempre uma tensão no ar de ambas as partes, algo como aquele sentido de alerta quando caminhamos tarde da noite em uma rua escura e deserta. Algumas madrugadas eu acordava com ele no meu quarto, possuído pelo demônio que continuava a me atormentar com todo tipo de ameaças e aquele cheiro insuportável que ele exalava. Durante o dia era o contrário, papai ficava introspectivo e me evitava ao máximo, parecia até que tinha medo de mim, ou vergonha, culpa, sei lá... mas confesso que eu sentia prazer em vê-lo sofrer. Era uma relação doentia, para dizer o mínimo.

A infância roubada teve um preço, me tornei um adolescente fechado e raramente interagia com outras pessoas. Foi nesta época que conheci um anjo.

Eu estava sentado na calçada em frente à minha casa sob a sombra de uma árvore que dava início a uma área destinada a uma praça, mas que só tinha um ou dois brinquedos e um campinho para peladas improvisadas, tendo se tornado na verdade um pequeno bosque. Minha rua não era muito movimentada, mas eu gostava de olhar as pessoas passando. Lembro que era um dia quente de verão e eu já me preparava para entrar quando apareceu aquela garota alta, loira, praticamente da minha idade, usando uma camiseta verde e saia branca. Ela me cumprimentou com um sorriso nos lábios e puxou conversa como se já me conhecesse há anos, eu respondia monossilábico, como era meu estilo. Mas tinha algo diferente nela, foi a primeira vez desde que eu era criança que me soltei com alguém. Priscila me contou que tinha se mudado aquela semana para minha rua, não tinha mãe, vivia com o pai, oficial da Marinha e queria ser enfermeira. O pai viajava muito e ela era meio sozinha como eu, salvo as proporções, é claro.

Ficamos amigos, nos víamos todos os dias e ela foi para mim como um oásis no meio do deserto, literalmente mudou minha vida. Antes de lhe conhecer confesso que suicídio era uma opção que eu ponderava todos os dias, depois dela, nunca mais tive esses pensamentos.

Foi numa tarde chuvosa na casa da árvore quando trocamos o primeiro beijo, começamos um namoro escondido por causa do seu pai e, com o passar do tempo e da nossa idade, os beijos se transformaram em carícias mais ousadas até que consumamos nossa relação como adultos em uma noite na casa dela, quando seu pai estava viajando.

Conversávamos muito sobre minha relação com papai e todo o drama que eu tinha passado com minha família, mas nunca tive coragem de contar para Priscila sobre o demônio e nunca deixei ela vir na minha casa à noite. Para ela, eu era um filho que sofria nas mãos de um pai indiferente e problemático que não ligava para mim. Foi por influência de Priscila que, com 17 anos, finalmente decidi sair de casa para tentar a carreira militar e terminou que passamos alguns anos sem nos ver.

Otávio, quero te dizer uma coisa muito séria: Priscila é a mulher da sua vida, você a ama, sempre amou, mesmo que nunca tenha admitido. Nunca se esqueça disso e lembre-se que entre nós não há mentiras.

Não tenho muito mais o que falar da minha vida, e por falar em Priscila, ela está tentando me convencer que devo voltar para casa agora que meu pai morreu. Não sei se estou pronto para isso, mas enfim, depois dessas gravações estou me sentindo um pouco mais capaz de encerrar este capítulo em minha vida. Além disso, não quero ficar dando trabalho para André, ficando aqui na casa dele mais do que o necessário. No fim acho que ela tem razão, está na hora de retornar para casa.

***

Umas duas semanas se foram enquanto Otávio inclinava-se em direção às suas memórias, seus sentimentos atuais e suas aspirações. Tinha certeza de uma coisa: Priscila definitivamente estava em seus planos. Talvez por isso mesmo ele tenha concordado que deveria ir pra casa. Nem que fosse para virar-lhe as costas logo depois. Não era obrigado a morar ali. Mas era preciso se desligar.

Foi um dia belíssimo o domingo que chegou. Haviam combinado em ir logo pela manhã, pois Priscila queria fazer um passeio no parque ou no lago depois que deixassem a casa, já que sabia que não iria ser fácil para Otávio. Ela também queria conversar com ele; precisava que ele tomasse posições a respeito de suas vidas, seus futuros, se era à vera, ela já não podia voltar atrás.

Pegaram pouco trânsito e logo já viravam no começo da rua de calçamento em paralelepípedos. Otávio sentia uma sensação desagradável entre as costelas ou no estômago ou no peito, enquanto perdia-se um pouco em pensamentos esparsos. Foi assim que nem percebeu que pararam em frente à sua antiga morada.

Desceu do carro, vento fresco e agradável, ele fechou os olhos por um instante e ao abri-los em direção ao sol imponente, que reinava sozinho em um céu sem nuvens, ficou um pouco ofuscado, sendo que não importava para onde olhasse restava em sua retina aquela bola branca. Piscou uma, duas, três vezes para passar aquele efeito até que entre uma e outra piscada viu o velho balanço que ficava em frente à casa, no espaço que nunca chegou a ser uma praça. Viu, como naqueles filmes em stop motion, um homem de costas a observar seu pai subir pela lateral do brinquedo, depois já em cima — vacilante — e só então já pendurado e imóvel.

Tudo na velocidade de três piscadelas, mas imagens que implantaram o medo em Otávio.

— Vamos amor. Ficará tudo bem. — Disse Priscila já na porta da casa.

Era uma casa que foi sendo deteriorada ao longo do tempo pela falta de manutenção. Assim que Otávio entrou confirmou para si mesmo a expectativa de que jamais voltaria a morar ali.

Era de dois pavimentos, piso de tabuado, que eventualmente rangia durante o caminhar e muito húmida. Em muitos locais a infiltração deixava evidentes marcas da degradação. Para Otávio lhe pareceu que a própria casa era um retrato de sua história ali vivida. Foi tomado momentaneamente por um sentimento de ódio que lhe fez pensar em atear fogo em tudo e nunca mais regressar. Esse pensamento foi interrompido após ser novamente interpelado por Priscila.

— Está tranquilo?

— Sim, tudo bem. Olha, eu vou subir para os quartos e gostaria que você ficasse aqui. É algo que quero e devo enfrentar sozinho.

— Está bem.

Priscila lhe deu um beijo carinhoso e permaneceu na sala, não se atrevendo a sentar-se em qualquer lugar dada a imundície de todos os móveis.

Subiu ele então para o segundo pavimento da casa. Lugar onde ficavam um banheiro e três quartos, sendo um deles aquele onde experimentou um verdadeiro inferno que queria agora esquecer.

Mas ele não foi para lá. Em algum momento, desde que tomara a decisão de ir, percebeu que para ficar em paz deveria exercitar o perdão e era no quarto do pai que ele esperava encontrar essa redenção.

Assim que entrou, percebeu que os móveis não se encontravam dispostos nos mesmos locais. Ele não saberia explicar porque fez isso, mas algo o impeliu a girar e em seguida pressionar uma antiga estatueta do pai afixada sobre uma base de madeira maciça, que na verdade desde novo lhe intrigava. Ouviu um “clic” seco e uma pequena porta escondida na parede se abriu revelando uma passagem secreta. Como ele nunca soube disso? Não pôde, nem poderia, conter o interesse por aquela situação. Entrou sem pensar.

Lá dentro havia um corredor que não tinha muito espaço, o teto era baixo, apesar de não ser necessário se curvar ao andar. No lado esquerdo havia prateleiras do chão ao teto com muitos livros sem título e que pareciam todos iguais. Três passos à frente, o espaço alargava-se e era quase vazio. Paredes de pedra, o teto se tornava inclinado, numa linha descendente que ao final do espaço quase encontrava-se com o nível do chão. Entrava luz por uma espécie de pequeno solário no teto. No canto onde o pé direito era mais alto ele viu uma peça coberta em tecido, onde se encontravam um livro e uma espécie de adaga. Ao lado desse móvel, havia um baú de relativo porte.

Pegou o livro que estava aberto e deu uma olhada em sua capa onde havia o desenho de uma cruz invertida e no meio deste desenho um acróstico composto pelo nome GRIMÓRIUM na vertical e VERUM na horizontal, cruzando-se na interseção da cruz pela letra “R”.

Passou a folhear o livro e, antes de poder saber do que seu texto tratava, vendo uma sequência de figuras que lhes eram até então estranhas, sentiu novamente a mesma sensação que há pouco lhe acometera ao olhar para o balanço. Só que agora não enxergava a mesma cena, pois encontrava-se estranhamente no lugar aonde anteriormente enxergou o homem de costas. E rapidamente percebeu que era ele mesmo quem estava diante do pai mesmo antes de ter começado sua subida para a morte.

— Eu sabia que você voltaria, que não iria me deixar em paz.

— Para alguns a morte é um alivio. Para aqueles que se arrependem, que se entregam e se deixam levar pelos mais ferozes sacrifícios, ao contrário do que erroneamente te ensinaram, morrer não os redimirá. Sua maior tortura é saber que não importa o quanto sua penitência seja severa, não haverá perdão pelo mal causado. Não no meu mundo. Sua morte foi lenta e agonizante, como eu queria que fosse. Estou aqui apenas porque não resta mais um homem aí, e então devo somente fazê-lo cumprir o destino que sua covardia não permitiu que você mesmo o fizesse.

Otávio passou a experimentar uma profusão de imagens soltas em sua mente, seu mundo em preto e branco foi tomado por lembranças cheias de cores. Muitos sentimentos inundam seu corpo, sua mente... Confusão mental... De súbito percebe que, apesar de continuar no mesmo espaço, já não está sozinho. Sua visão parece embaçada, como se assistisse uma TV faltando sintonia, mas ainda assim vendo e ouvindo tudo, sem, no entanto, ser notado. Há uma mulher e dois homens. Um deles encontra-se deitado no chão, parece desmaiado enquanto os dois que se encontram de pé conversam. Ele nervosamente.

— Bernardo, este é o homem que arruinou a minha vida. Destruiu minhas expectativas. Me abandonou para viajar pelo mundo fazendo o que? Com essas porras desses livros, com essa paranoia de culto disso, pacto daquilo. Se não fosse por você, pelo nosso amor, eu não suportaria. Mas agora ele volta e quer tomar o que já não é dele, quer se apossar do que já lhe escapou.

— Eu não tenho nada contra ele, somos amigos lembra? O nosso amor aconteceu, mas ele não pode ter culpa nisso...

— Às vezes acho que você é idiota mesmo! Se esquece que ele te humilha na universidade? Que se ele retornar você nunca conseguirá ser ninguém? Porque ele é catedrático e sua sombra sempre estará sobre você. Mas nada disso importa mais do que o fato dele desconfiar seriamente que Bianca não é filha dele. Como será que ele vai reagir quando souber que seu grande amigo... o grandessíssimo filho da puta é pai de sua única filha? E o filho dele que cresce a cada dia dentro de mim? Esta tudo errado, Bernardo, um filho homem, imagine o que ele não faria com esta criança com suas crenças satânicas? Não, você será o pai do meu filho e não ele!

As cenas que se seguem fazem Otávio buscar um grito, se mover, impedir. Mas quem poderia? Quer chorar, mas nada acontece.

Apenas assiste aquele homem ser morto, mas em seus momentos finais Otávio ouviu umas batidas rápidas que pareciam mais um sopro. Ao mesmo tempo viu o homem que morria colocar as mãos na barriga da mulher que, estando sobre ele, lhe esganava impiedosamente. A barriga proeminente denunciando o nível avançado de sua gravidez.

Ocorre que, ao contrário da mulher que nada ouvia em seu furor, Otávio ouviu muito bem as palavras do homem:

“Imperador LÚCIFER, mestre de todos os espíritos rebeldes, lhe suplico para que me seja favorável na adjuração que dirigirei ao seu poderoso ministro, LUCIFUGE ROFOCALE, pois desejo fazer um pacto com ele. Eu rogo a você também, oh Príncipe BELZEBUTH, para que me proteja neste meu acordo. Oh Conde ASTAROTH, me seja propício e conceda que nesta noite o grande LUCIFUGE ROFOCALE possa aparecer a mim sob uma forma humana, livre de qualquer odor maligno, e que ele possa concordar comigo, em virtude do pacto que me proponho a entrar. Oh grande LUCIFUGE, eu lhe suplico para que deixe sua morada, onde quer que se encontre, e que venha aqui para falar comigo; caso contrário, vou compelir você pelo poder do forte Deus vivente, seu amado Filho e o Espírito Santo. Obedeça-me prontamente, ou será atormentado eternamente pelo poder das potentes palavras da grande Clavícula de Salomão, com as quais ele se servia para compelir os espíritos rebeldes a receber seu pacto. Então apareça imediatamente e tome este espírito para si, e que não descanses enquanto todos os frutos do pecado estiverem com suas almas condenadas e que o último inocente pereça em proveito de seu pagamento, do contrário vou persistentemente torturá-lo pelas virtudes destas grandes palavras das Clavículas:

Aglon, Tetragram, vaycheon stimulamaton y ezphares Tetragrammaton olyaram irion esytion existion eryona onera orasim mozm messias soter Emmanuel, Sabaoth, Adonai, te adoro e te invoco. Amém.”

Após dizer isso, que pareceu aos dois assassinos apenas murmúrios, Otávio viu o homem calar-se enfim e morrer. Ele foi colocado em um baú e eles jogaram em cima dele o conteúdo de alguns sacos que antes estava dentro de umas caixas com a inscrição “Salitre do Chile”.

Aquele vendaval mental sumiu como chegou e Otávio se encontrou novamente sozinho naquele cômodo escondido. Olhou para o lado e foi direto para o baú. Mas não teve mais qualquer surpresa quando terminou sua abertura. Ali estavam três corpos ressecados e em cujas feições de múmias hereges, como aquelas de um museu mexicano, restavam os resquícios do terror pelo qual passaram até finalmente repousarem ali dentro.

Otávio deu um sorriso com o canto da boca. Sua íris tinha então se tornado negra e ele já não sentia qualquer desconforto. Puxou o gravador do bolso e, com muita calma, apertou o REC.

***

Último dia

Sim, eu sinto que agora somos um. Eu me lembro, Dr. César, de quem eu sou. Sou o espírito chamado, o obreiro de Lúcifer, Belzebuth e Astaroth. Vim para consumir o pecado e colher a alma que me foi prometida.

Como me lembro. Esta Bianca, lhe arrastei pelos cabelos enquanto tentava, em vão, gritar, sufoquei-lhe a voz e com devotada paciência retirei toda a pele de sua face, que era a estampa de sua descendência pecaminosa.

Otávio, lembre-se! Sempre fomos dois, que glória, e agora somente um. Quanto prazer eu tive em preparar aquele porrete, atravessando-os com os pregos enferrujados que retirei das tábuas soltas do quintal.

Sim, Bernardo era na verdade seu padrasto e descobriu sobre nós dois. Desculpe-me as noites que ele lhe atormentou, encorajado pela bebida e completamente embriagado procurando me provocar, sei que você teve muito medo e peço perdão por isso. Mas enquanto ele não lhe fizesse algum mal eu não poderia me manifestar. Aguardei com ansiedade o dia em que o covarde respirasse apenas por um momento os ares de alguma virtude que pudesse lhe ter sobrado. E veio este dia! Ele fez o menino desmaiar em sua cama, mas despertou a mim, despertou o serviçal primaz dos reinos sombrios e não foi diferente do que planejei.

Esfacelei sua breve coragem com apenas um olhar e lhe obriguei a me acompanhar até a cozinha onde lá estava ela. A mulher que pariu um menino odiado, mas que a odiaria mil vezes mais, porque aqui eu estive desde aquele dia, para cumprir o pacto. E assim não a machuquei enquanto a guiava até o nosso recinto, este onde aqui estamos, em que anos atrás esta descrente simulou um dos nossos rituais sagrados apenas para desrespeitar de forma derradeira seu verdadeiro pai, este sim, um estudioso e fiel discípulo. Teve o que mereceu, quando peguei o objeto que preparei e lhe enfiei por entre as pernas; e os pregos lhe foram rasgando desde a entrada suas entranhas, mas não mais do que quando os puxei de volta. E, ao contrário de sua filha, não a calei. Deixei que gritasse porque o parvo estava ali. E ela gritou, porque aquela clava entrou e saiu por tantas vezes quantas foram necessárias para lhe impingir o mesmo mal que causou. E, ao mesmo tempo que seu útero veio agarrado aos ferros, ela deixou este mundo com os olhos e boca abertos.

***

Aquele ser de olhos negros ouviu um leve marulho, um bater de asas. Era o fim do pacto, um coração inocente batia tão próximo...

Abandonou o gravador e pegou a adaga, descendo firme e a um passo constante e lento. Priscila, que o aguardava lá embaixo, ao ouvir seus passos rangerem o chão de madeira, disse:

— Já? Não ficou nem cinco minutos... Mas eu entendo, não quero forçar a barra. Outro dia voltamos.

Quando terminou de falar já estava ele frente a frente com ela. Seus olhinhos claros se dilataram e mostraram o pavor que sentia ao ver que aquele homem não era Otávio.

Não teve tempo de perguntar porque aqueles olhos se escureceram, pois, rápida, a lâmina passou em seu ventre e de lá foi tirado um ser ainda amorfo. Com a ponta da adaga ele rasgou o peito do que haveria de ser uma criança e arrancou-lhe o coração que ainda soprava em baixa frequência.

Logo ele cortou a garganta dela, e a menina loira revelou uma agonia quase eterna. Nessas circunstâncias um segundo abarca um tempo onde misturam-se os pensamentos, os sabores, as dores, afloram-se os arrependimentos, e Priscila experimentou a despedida solitária daqueles e daquelas que não voltaria a ver jamais. Enquanto sua vida se esvaía, ainda sentiu a soma do tempo que ela viveu e daquele que ainda pretendia viver, com a suas incontáveis possibilidades engendradas pela inata esperança de que, dos múltiplos futuros possíveis, o melhor se cumpriria. E assim, algumas frações ínfimas de tempo podem significar uma agonia insondável e seguramente atroz, perpetuando tudo em um tempo fora desta dimensão em que a dor é infinita, ainda que seja por apenas um segundo.

Por fim, como se ainda restasse algo daquele menino que tinha medo do demônio, ele envolveu as mãos de Priscila que ainda procuravam no ventre a sua cria e pôs a adaga entre as mesmas, só que a lança estava virada para o seu peito. Com as quatro mãos entrelaçadas ele lentamente foi deslizando seu corpo em direção ao dela enquanto a lâmina entrava em seu coração misturando-se o sangue negro de todos, que caíram praticamente ao mesmo tempo ao chão.

Daí, restou o silêncio sobre a casa, a rua e sobre a copa das árvores daquele pequeno bosque, podendo se ouvir, vindo não se sabe de onde, um assobio surdo que parecia querer entoar uma melodia de desalento.

FIM

TEMA: POSSESSÃO

Maddox e André Rocha Gonçalves
Enviado por Maddox em 25/02/2016
Código do texto: T5555268
Classificação de conteúdo: seguro
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