As estrelas debocham dos homens
 
“Muitos foram os que desceram pelo abismo do inconsciente sem conseguir voltar. Os manicômios são suas moradias, pois deles é o reino da insensatez. Outros - muitos poucos, apenas os escolhidos - foram capazes de contar o que há por trás da loucura.”
H.P. Lovecraft
 
É mais de meia-noite e ela ainda não dormiu. Tem medo de fechar os olhos. Sente que suas forças para lutar estão acabando e não sabe mais quantas noites pode aguentar. A ideia de sonhar é assustadora. Imagina a criatura lhe perseguindo, rindo.

Você vai cansar de correr! Logo você será minha!

E ela sabe que o monstro não vai desistir. Tudo só vai terminar quando ele colocar as mãos nela. Quando não existir mais nenhum pingo de razão e em sua alma, quando ela ficar como Estela, internada em uma ala psiquiátrica, sem previsão de alta, perdida entre os mundos.

Não quer falar sobre seus tormentos com Daniel, ele já sofre demais. Passaram por uma sucessão de desgraças. Tanta coisa mudou e ele carrega tudo nas costas. Por isso ela precisa vencer sozinha. Provar que é mais forte.

Fecha os olhos e reza pedindo para Deus uma chance. Mas novamente parece que ninguém ouve suas preces.

Lá fora, no céu, as estrelas debocham dos homens.
 
***
 
Depois de seis meses procurando uma residência próxima de seu novo emprego, Daniel e sua família finalmente encontraram um lar. O sobrado ficava em uma rua tranquila, quinze minutos do centro da cidade de Sorocaba. Viu o anúncio em grupo de venda e aluguel de imóveis no Facebook.

A negociação durou cerca de dez dias. O processo de mudança foi rápido e em uma quarta-feira de novembro, a família já estava instalada no Nº719 da rua Aurora. Dias após a chegada, tudo corria nos trilhos da tranquilidade e satisfação.

Foi na terceira semana que algumas coisas estranhas começaram a acontecer.
 
***

O relógio da cozinha marca dez horas da noite, Daniel ainda não chegou do trabalho. Júlia está dormindo no quarto e Estela assiste um programa de auditório na TV da sala. Ri de um jogo de perguntas e participantes idiotas, quando de repente o televisor desliga e um calafrio percorre sua espinha. Procura pelo controle remoto no sofá e então ouve um barulho de vidro se estilhaçando na cozinha. Assustada, levanta e caminha nas pontas dos pés.

“Não há ninguém aqui” e a única mudança no ambiente são os cacos espalhados pelo chão. “Devo ter deixado um copo na beirada da pia” pensa enquanto procura a vassoura. Varre todos os pequenos pedaços de vidro em um canto e depois se agacha para junta-los e é nesse momento que se depara com os pés descalços em sua frente.

Eles estão sujos de terra e sangue.

Cai pra trás e por alguns segundos tem a impressão de ver a coisa, é um homem alto, magro e com um estranho desenho vermelho na barriga. Ela não consegue ver seu rosto. Sente a dor e percebe o pedaço de vidro enfiado na palma da mão. Está sozinha na cozinha.

“É o sono, eu estou exausta” diz pra si mesma enquanto tenta buscar uma explicação para o que acabara de acontecer.

Levanta, faz um curativo e volta a juntar os cacos.

Decide ir para o quarto. Deita na cama, toma seu remédio e pega no sono. Não vê Daniel chegando, jantando e deitando ao seu lado. Não vê a criatura de olhos amarelos parada ao lado do guarda-roupas, observando o casal dormir.
 
***

Dias depois do acontecimento na cozinha, Estela começa a perceber mais coisas estranhas. Torneiras que abrem sozinhas durante a madrugada, passos no corredor, barulhos nos armários, dentro das paredes da casa e um cheiro ruim que sempre surge após as dez horas da noite. Chega a comentar com o marido, pede para ele olhar os encanamentos e verificar se tudo está correto, mas Daniel não arranja tempo, o trabalho na empresa é sua prioridade.

É em um terça-feira que a mulher ouve alguém rindo, o som vem do quarto de sua filha, uma risada horrível, carregada de insânia. Ela corre para o quarto de Julia conferir, abre a porta e se depara com uma velha nua sentada na cama, ela está segurando um espelho e uma escova, penteando seus cabelos, com um sorriso no rosto. A pele da mulher é murcha, ressecada e os olhos brancos.

— O que aconteceu, mamãe? — Pergunta Julia do corredor.

E Estela sai do transe, encara a filha e quando volta a olhar para o quarto, não vê ninguém ali.

— Mãe, você tá bem?

Ela respira fundo e fecha a porta do quarto. Depois pergunta para a menina o que ela está fazendo.

—Brincando com meu amigo.

— Que amigo?

— O João, mãe. Ele é muito legal.

— Quem é João? Cadê ele, filha?

— Ele mora aqui. E eu não sei onde ele tá agora. A gente tá brincando de esconde-esconde, por isso ele sumiu. Essa ai no quarto é a mãe dele. Eu acho, ainda não vi ela, mas ele me contou que ela mora aqui também. Ela tem problemas igual você, mamãe.

— Como assim, Julia? O que você tá falando? – Estela responde com o coração acelerado.

Mas a criança não liga, desce as escadas correndo.
 
***

Naquela mesma noite Estela decide conversar com o marido. Aborda ele na mesa, enquanto Daniel está jantando após um exaustivo dia de serviço.

— Não estou mais me sentindo bem nessa casa.

— Como assim amor? Aqui é perfeito, esses dias mesmo você me disse que estava adorando a casa.

— As coisas mudaram. Você chega cansado e nem percebe.

— O que tá acontecendo? Fala pra mim.

— Sinto que eu tô num daqueles filmes de terror.

— Por que? Vai me dizer que aquela história da corretora abalou você? Poxa, Estela, eu perguntei se você topava antes de decidir comprar a casa. Pessoas morrem em todos os lugares e outra, eles prenderam o cara, não foi isso que a corretora explicou?

— Eu sei, Daniel. Mas as vezes sinto como se tivesse mais alguém aqui. E outra, como você vai sabe que o que ela contou é verdade? Vai que foi outra coisa que ocorreu aqui...

— Você tá com a medicação em dia, Estela?

— Para! Não é isso, não tem nada a ver. Tem algo estranho nessa casa, Daniel. Eu sinto isso.

— Você precisa ficar tranquila. Olha, semana que vem eu vou mudar meu horário, irei trabalhar apenas até as 18 horas. Tudo bem?

 Estela levanta da cadeira e caminha para sala sem dizer nada.

Naquela noite nenhum dos dois ouve Julia chorando.
 
***

Julia recebe o beijo de boa noite de seu pai e se arruma na cama para dormir, mas antes faz o que sua mãe lhe ensinará desde os cinco anos de idade, reza. Reza e pede proteção para ela e toda a sua família.

Depois adormece e só acorda as três horas da madrugada, quando alguma coisa puxa seu cobertor.


— Vamos brincar!

A menina mesmo com sono levanta e desce no chão brincar com João. Ele é um bom menino, apesar da aparência estranha.

Minutos depois a mãe de João chega e diz que é hora de dormir, diz que se eles não forem pra cama, o monstro vai devora-los. A mulher senta nos pés da cama de Julia, a luz da lua que entra pela janela ilumina o rosto da velha. Os olhos dilatados, o rosto magro, a boca aberta sem dentes e o buraco no meio da testa. Julia nunca havia visto a mãe de João.

— Não tenha medo, querida. Eu vou cuidar de você. Ele não vai fazer nenhum mal pra você, minha querida. — Disse a estranha sorrindo.

A menina cobre a cabeça, fecha os olhos e reza. João deita bem ao seu lado, o corpo do menino é extremamente gelado.

— Foi o papai que deixou ela assim, o papai e os amigos dele. — Comenta o garoto. — E ele também fez isso comigo. Tudo por causa daquelas coisas que eles cantavam na sala... Eu sempre tive medo, Julia... Sempre...

Ela sente João pegando sua mão e a levando até a cabeça e colocando o dedo da menina dentro de um buraco bem em sua nuca.

— A coisa fez o papai atirar na gente...

Julia começa a chorar de medo. E a velha aos pés da cama inicia uma canção de ninar:

— Bicho-papão, saia do telhado, deixe meus filhos dormir sossegados...
 
***

Na manhã seguinte a pequena Julia vai com sono para escola, não brinca a tarde e durante a noite diz pra Estela que não quer dormir sozinha. A mãe concorda que é melhor ficarem juntas.

As 23 horas Daniel chega, entra na casa, janta, vê a mulher e a filha dormindo e vai para a sala ver um pouco de TV. Cansado demais, ele acaba apagando. Tem um sonho estranho, uma mistura de cenas que parece não fazer sentido.

Vê ele frente a um espelho, todo sujo de sangue segurando uma arma e atrás de si, um enorme totem de madeira. Depois vê um grupo de pessoas encapuzadas formando um círculo, entoando uma estranha canção e por fim, uma mulher deitada em cima de um símbolo no chão, cercado por velas, bem ali na sua sala, A moça tem um estranho símbolo feito com sangue na sua barriga. Ela olha para Daniel e diz:

— Sou apenas mais uma oferenda. Os Antigos foram, são e serão!

E então ele acorda, acorda com o grito de sua mulher, um grito ensurdecedor. Levanta e sai correndo a caminho do quarto da esposa.
 
***
Julia desperta no meio da noite, está deitada ao lado da mãe. A criança escuta um barulho e quando olha para o lado, vê o garoto João postado ao lado da cama.

“A coisa ruim pegou o meu pai, Julia. Ela deixou ele louco, mora dentro dele. Por isso ele fez aquilo com a mamãe e comigo. Todos nós ficamos loucos, os amigos dele que estavam na casa também ficaram, mas todos nos abandonaram. Vocês precisam fugir antes que a coisa entre na mente de vocês.”

— Não entendo...

“Fuja dele, Julia, por favor...”

O menino desaparece e Julia escuta a porta do quarto abrindo. Nesse momento Estela acorda, olha para filha e pergunta o que está acontecendo.

— Eu tô com medo mãe. — Responde Julia chorando.

— Medo do que?

— Da coisa na porta do quarto. — Sussurra a menina encarando a estranha criatura parada nas sombras.
 
***

Estela não consegue acreditar que aquilo é real. Parece um homem, tem pelo menos 1,80 de altura, o corpo magro e braços desproporcionais que chegam até os joelhos. Ela não consegue ver seu rosto, apenas os olhos amarelos que brilham no escuro.

— Nos deixe em paz! — Grita a mulher e depois acende a luz do abajur ao lado da cama.
Quando o recinto é iluminado a criatura ri. Mãe e filha contemplam a face da besta. Lembra um homem, branco, com a barba rala, extremamente magro. Tem cicatrizes por todo o corpo e em sua cabeça grandes tufos de cabelo preto arrepiados. Na testa um estranho símbolo desenhado na própria pele.

A criatura sorri enquanto caminha na direção das duas. Ambas estão paralisadas. Não conseguem se mexer, não conseguem gritar. O monstro chega até a cama e sussurra:

— Criaturas tão frágeis... — Depois baixa a cabeça e Estela nesse momento vê a grande boca que ele tem em suas costas. Longos dentes e uma enorme língua roxa, que lambe o rosto da mulher e queima sua pele. Impiedosamente a criatura se infiltra nos abismos infinitos do seu sangue e ela grita de dor, enquanto enxerga a eternidade.

Na sala, Daniel acorda assustado.
 
***

Quando entra no quarto ele se surpreende com a cena. Na cama a mãe apertava o pescoço da filha já inconsciente. Daniel agarra a mulher e a derruba no chão.

— O que você tá fazendo, Estela? — Grita o homem enquanto tenta recobrar a consciência da filha.

Estela levanta do chão, seus olhos estão brancos e de sua boca sai uma espuma amarelada. Ela avança em direção a Daniel, pula em cima dele, finca suas unhas na carne do marido. Ele geme de dor.

— Os Antigos foram, são e serão! Os Antigos foram, são e serão! — Berra Estela, mas Daniel sabe que aquilo não pode ser sua mulher.

Nesse momento Julia acorda, ela vê o pai e a mãe brigando na cama, não entende o que está acontecendo.

“Fuja, Julia, fuja antes que seja tarde demais!” diz uma voz em sua cabeça.

Corre em direção a porta, força a fechadura, mas estão trancados ali. Daniel e Estela caem no chão, a mulher morde o pescoço do homem, seu urro é ouvido em toda a vizinhança.

“Fuja, Julia, fuja antes que seja tarde demais!” a voz é seu amigo João.

Ela olha para a janela, aquela parece ser a única saída. Avança, sobe e encara a altura. Nunca havia reparado o quão alto era o segundo andar do sobrado. João aparece ao seu lado.

— Não tenha medo, Julia... Eu pulo com você e quem sabe assim a gente pode até brincar pra sempre.

A garotinha não entende a frase do menino, apenas dá a mão para seu amigo. Eles pulam, a queda é rápida e o impacto extremamente forte.

A coisa que possui Estela grita quando percebe que Julia pulou a janela, e em um descuido seu, Daniel acerta sua cabeça com o abajur. A mulher desmaia e o homem com o rosto todo arranhado e o pescoço sangrando, tenta se recompor. Ele corre até a janela e incrédulo vê o corpo da filha estirado na calçada.

— Juliaaaaaaa!
 
***

A polícia demora cerca de vinte minutos pra chegar ao local. Antes de invadir a residência encontram Julia na calçada, desacordada. Depois, arrombam a porta e se deparam com Daniel descendo as escadas chorando e ferido. As autoridades encaminham a família para o hospital mais próximo e os moradores de toda a rua saem em frente aos seus portões assistir a cena. Para muitos ali, aquilo é um déjà vu.
 
***

Ela presencia tudo: O homem agarra o pescoço do garoto, tira sua roupa e diz que não vai doer nada. Ele não sabe o que aquilo significa, ainda é muito inocente para compreender a perversidade humana. A sua volta um grupo de figuras encapuzadas ajoelhadas, orando. A mãe do garoto observa o ritual da cozinha e Júlia está parada ao seu lado, ela não deveria estar ali.

O homem penetra no garoto e Julia consegue ver o monstro dentro dos olhos do fanático.

— É melhor você correr. — Diz a mãe do garoto para Julia. — Ele tá vindo.

De repente o cenário muda, Julia está sozinha no escuro. E a besta fala com ela:

“Você vai ser minha, doce criança... Só minha... Assim como todos eles.”

A menina começa a correr às cegas, mas não vai muito longe. Sente algo agarrando suas pernas, moendo seus ossos. Grita de dor e o mundo gira...

 
***


Acorda suando, com o coração acelerado.

— Filha, o papai tá aqui! — Diz Daniel entrando no quarto após ouvir o choro da filha. Ela o abraça com força.

— Foi só um pesadelo. Isso vai passar, isso vai passar. – Diz o homem beijando a testa da criança, angustiado e quase sem forças para continuar com sua vida.

— Posso ir dormir com você? — Pergunta tentando limpar as lágrimas.

— É claro, minha linda. — Responde Daniel, enquanto coloca Julia em seus braços.


Ajeita a filha e tira ela do quarto. Por alguns segundos os únicos sons que se ouvem no pequeno apartamento da Rua Renascer, são os soluços do homem e o ranger da velha cadeira de rodas de Julia.

 Lá fora, no céu, as estrelas debocham dos homens.

***

Temas: Em família - Sonhos.
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