TEM NOITES QUE NÃO CONSIGO DORMIR

   Acordei num deserto, deitado no pó como se dele tivesse nascido.Não me lembrava quem era, minha origem era desconhecida, pois não tinha memórias, a perdera em algum momento da minha existência.

   Ergui-me e comecei a caminhar a esmo. O sol era quente, o vazio do deserto, o silêncio, a monotonia da paisagem imutável, eram desconfortáveis. A claridade ofuscava meus olhos, o calor minava minhas forças e depois de algum tempo, naquela jornada sem destino, perdi a consciência.

   Despertei com a cabeça dolorida. Estava num lugar completamente diferente, confortável. Cores e formatos, texturas, o catre, os lençóis, os parcos móveis, as paredes de madeira roliças, lisas, ásperas, a claridade do lado de fora. A cama macia e um travesseiro. A porta se abriu e alguém apareceu, uma mulher usando roupas de cores cinzentas. A medida em que eu via as coisas como que pela primeira vez, o reconhecimento se instalava e preenchia o vazio de minha mente. Tudo aquilo eu conhecia, sabia o que eram, mas era como se visse pela primeira vez, o nome de cada coisa demorava a emergir do vazio da minha mente.

- Não! Não se levante. – disse a mulher. – Você ainda está fraco.

   O tempo começava a marcar os anos no rosto dela. Rugas, irmãs das memórias anciãs, marcas de sabedoria. Eu queria obedecer, mas não havia necessidade. As forças retornaram, como se nunca tivessem partido.

- Estou bem, não se preocupe. –respondi e fiquei surpreso com a própria voz.

- O que fazia no deserto? Se perdeu? Ainda bem que eu o encontrei. Costumo ir lá, buscar sal. Meu nome é Dione. E você, como se chama?

   Eu não lembrava do meu nome, do meu passado. Fiz um gesto com o dedo para a cabeça. – Não me lembro de nada! – respondi, desolado. A mulher ficou em silencio por um momento, com uma tigela de sopa fumegando nas mãos. Esboçou um sorriso, compreensiva e deu-me a sopa.

- Tome esse caldo, você vai recuperar as forças. Não se preocupe, tudo vai ficar bem.

   Sacudi a cabeça, aceitando o argumento e peguei a sopa porque estava com muita fome e sede. Dione sentou-se num mochinho ao lado.

- Você precisa ter um nome!

- Não sei se tenho.

- Com certeza tem, mas se você não lembra, vou te chamar de Adão.

- Adão? Meu nome? Gostei.

- Adão foi o primeiro homem que Deus criou. Está na bíblia.

   Dione foi até uma prateleira e pegou um livro de capa grossa, com as bordas desgastadas. Manuseou com cuidado, abrindo uma página. Ela leu o Gênese para mim, explicando o sentido das frases. Permaneci calado, ouvindo a história da criação do mundo.
 

   Dione me acordou logo de manhã cedo, para ir à floresta examinar as armadilhas que ela armou para pegar pequenos animais. Saí da cabana, aspirando o ar fresco da manhã. Senti o cheiro da seiva das folhagens, do humo no chão coalhado de folhas mortas. Remexi o solo, descobrindo os minúsculos seres que viviam sob aquele tapete amarronzado. Ergui-me, estreitando os olhos quando os raios do sol, atravessando as copas, bateu em meu rosto. Aproximei-me do tronco de uma árvore, passando a mão pela casca áspera, cheia de ranhuras, sentindo sua textura. As folhas sedosas, algumas de cheiro forte, acre, outras com odores suaves, doce.

   Para mim, aquilo tudo parecia novo, mas era uma redescoberta, um reencontro com minhas lembranças. Chegando a um riacho, vi minha imagem refletida no remanso das águas. Vi meus cabelos brancos, os olhos, as pestanas, os pelos, a pele, tudo branco. Eu era branco como o sal.

- Minha pele é diferente da sua. – eu disse para Dione, enquanto caminhávamos pela floresta.

- Você é um albino. Dizem que os albinos são protegidos pelas fadas, espíritos bons da floresta. Nada tema.

   Aquela explicação me deixou tranquilo. Dione me ensinou a fazer armadilhas e naquele dia, pegamos um coelho. Tivemos um bom almoço.

   De vez em quando uma mulher vinha à cabana e nessa hora, Dione mandava eu sair, dizendo que homens não podiam ouvir conversas entre mulheres. O assunto era só delas. Fiquei curioso e em certo momento perguntei o que elas queriam.

- São mulheres da vila. – respondeu ela, preparando um ensopado de cogumelos. - Elas vêm em busca de ajuda para resolver problemas do corpo e da alma. Na vila não tem médico e como conheço o poder das plantas medicinais, receito as ervas indicadas para cada caso, inclusive para uma gravidez indesejada.
 

   Certa tarde eu estava na floresta, examinando as armadilhas, quando ouvi gritos na cabana. Imediatamente corri para lá e quando cheguei, encontrei um grupo de homens, cada um com uma tocha na mão. Eles gritavam exaltados, chamando Dione de bruxa. Dois deles a seguravam pelos braços.

- Vamos queimá-la numa fogueira. - gritou alguém.

- Isso! Vamos matar essa bruxa e colocar fogo na cabana! – disse outro. Corri para Dione, tentando protege-la daqueles sujeitos rudes e ignorantes.

- Parem! Ela não fez nada!

- Olha só! – exclamou o homem que parecia liderar o grupo. – Um albino!

   Ele me rodeou, examinando-me dos pés à cabeça. – Dizem que eles conseguem enxergar o ouro debaixo da terra com esses olhos esquisitos.

- É um gênio da floresta? – indagou um dos homens que segurava Dione. Ele olhava para mim com os olhos arregalados, parecendo me temer.

- É mais ou menos isso. – respondeu o chefe. – Vamos acabar com a velha e depois cuidaremos dele.

   Compreendi logo queeles estavam dispostos a colocar Dione numa fogueira. Me atirei aos dois homens, segurei um pelo braço e o puxei. Mas, o chefe não perdeu tempo, deu um passo para frente e me golpeou com a tocha. Senti a pancada da madeira na minha cabeça e pensei que iria morrer. Fagulhas queimaram meu rosto. Fiquei tonto e acabei caindo.

   O que se passou em seguida foi confuso. Ouvi gritos de agonia, vultos trêmulos passaram diante dos meus olhos embaçados, iam de um lado para outro, saltavam e voavam e depois, houve um momento de escuridão e tudo ficou em silencio. Quando recuperei a consciência, estava de bruços no chão. Me levantei ainda meio tonto e vi os corpos espalhados ao redor. Os homens estavam mortos, com o rosto e braços arranhados, a garganta estraçalhada.

   Não vi Dione. Achei que ela estava na cabana. Entrei, procurei por todo canto, mas não a encontrei.Voltei a olhar os corpos, tentando entender o que havia acontecido. Alguma coisa, uma fera talvez, os atacou. Na confusão, Dione fugiu.
 

   Naquela noite quase não dormi, assustado com aquela matança, preocupado com o sumiço de Dione. Achei até, que a fera a tinha levado. Na manhã seguinte, peguei uma pá e enterrei os corpos. Depois, decidi procurar Dione. Andei pela floresta em todas as direções, sem encontrar nenhuma pista. Acabei chegando na vila. As pessoas me olhavam com desconfiança, algumas sussurravam entre si. Já passava do meio dia e eu estava com fome e sede.

   Andei pelas ruas estreitas da vila, olhando tudo com curiosidade. Havia tendas com mercadorias, frutas, temperos e ervas. Pedi uma maçã ao homem, mas ele me empurrou. Cai para trás sobre os tabuleiros de outra tenda. Os produtos foram espalhados pelo chão. O dono ficou furioso, começou a me dar pontapés. Ergui-me meio tonto e logo todos estavam atirando pedras e me enxotando da vila. Fui escorraçado como um cão sarnento.

   Uma das pedras havia me atingido a testa. O sangue escorria pelo meu rosto. Limpei-o com a manga da camisa e continuei andando. O corpo doía em várias partes por causa das pedradas, mais ainda do lado esquerdo. Era como se uma costela tivesse sido quebrada. Doía quando eu respirava. Continuei caminhando até o escurecer. Atravessei um campo e cheguei a uma casa na orla de um milharal. Corvos crocitavam ao pôr-do-sol.

   Olhando pela janela, vi uma cozinha, um fogão de pedra, onde uma panela fumegava. Sobre a mesa havia comida, toucinho, pão e queijo. Fiquei com receio de bater na porta e ser enxotado, por isso, como não vi ninguém, pulei a janela e me aproximei da mesa. Comi um pedaço de queijo, coloquei toucinho no bolso. Estava partindo o pão em um pedaço pequeno, quando surgiu alguém. Assustado, procurei fugir, mas havia uma cadeira no caminho, me enredei nela e acabei caindo. A dor do lado direito foi instantânea.

- Quem está aí? Papai?

   Olhei para a mulher e vi que era uma menina de uns 12 anos. Tinha cabelos pretos, compridos e lisos, o rosto era o de um anjo. Fiquei estarrecido ao ver seus olhos. Olhos brancos, como um campo nevado, sem vida. A menina era cega, privada da visão e das maravilhosas cores e formas do mundo.

- Não se assuste, moça! Não vou lhe fazer mal. Só entrei aqui para pegar comida, pois não como há dois dias.

- E porque não pediu, bom senhor? Eu lhe teria dado com prazer, não somos egoístas. Mas, pegue, pegue a comida e saia antes que meu pai volte. Ele não gosta de ver gente estranha em nossa casa

   Ergui-me, soltando um gemido.

- O que aconteceu? Se machucou?

- Sim. Cai numa vala e acho que me machuquei por dentro. Mas, eu vou embora, sim.

- Tem alguém para ajudá-lo?

- Não, não tenho ninguém. Estou sozinho na minha jornada.

- Então é melhor não viajar agora. Precisa tratar o ferimento. Fique no celeiro que logo mais levarei comida e remédio para o senhor. Como se chama?

- Adão.

- O meu é Leda. Meu pai se chama Hermes. Ele é um homem bom, mas tem medo que alguém me faça mal, por isso, estranhos não são bem-vindo aqui em casa.
 

   O celeiro era grande e alto. As grossas traves formavam uma estrutura imponente, robusta. Me deitei sobre umas palhas de milho num canto, atrás de alguns fardos de feno. A janela estava aberta e por ela eu via o céu estrelado. A lua ainda não havia surgido. A dor do lado havia diminuído e acabei pegando no sono. Acordei com o rangido da porta. Era Leda, ela trazia um lampião aceso, não para ela, que não precisava, mas para mim. Fiquei a imaginar as dificuldades que aquela menina passava. As mãos eram seus olhos, através do tato se locomovia pela casa. Cada coisa devia estar em seu lugar, para que ela reconhecesse o seu caminho e soubesse por onde andava. Por isso, havia aquela corda, com uma ponta presa na varanda da casa e a outra na entrada do celeiro.

- Adão?

- Estou aqui. – levantei-me para ajudá-la.

- Papai está dormindo. Como está cansado, vai dormir até amanhã ao nascer do dia, quando o galo cantar.

   Ela tirou um pote e uma tira de pano do cesto que carregava.

- Passe esse unguento no machucado e enfaixe o peito. Eu também trouxe um pedaço de frango assado, pão e um odre com água.

- Obrigado. Você mora sozinha com seu pai?

- Sim. Minha mãe morreu quando eu era pequena. Meu pai disse que, um dia ela foi lavar roupas no rio e desapareceu. Ele acha que ela caiu no rio e morreu afogada. Foi o que meu pai me disse, mas alguns dias depois, quando ele estava na roça, uma mulher apareceu aqui e sem dizer nada, me abraçou, me beijou e foi embora. Sei que era minha mãe, reconheci seu cheiro, mas papai disse depois, que era o espírito dela.

- Talvez tivesse sido mesmo. Minha amiga Dione me ensinou muita coisa. Disse que temos um espírito imortal, que viaja pelo mundo todo sem se cansar.

- Meu pai disse que espíritos bons e maus moram na floresta. Que eu não devo entrar lá.

- Seu pai tem razão em protegê-la.

   Leda ficou em silêncio por um momento, enquanto eu acabava de enfaixar o peito.

- Está pronto. Acho melhor você ir para casa, antes que teu pai acorde.

- Você ainda tem mãe, Adão?

- Não, acho que já morreu. Eu saí de casa muito cedo. Fugi quando tinha uns 12 anos. Meu pai me odiava.

- Por que?

- Por causa da cor da minha pele. Nasci todo branco, cabelos, pele, pestanas, tudo branco. Meu pai dizia que eu dava azar, por isso ele nunca conseguiu progredir. Trabalhou a vida toda como carvoeiro.Ele era muito violento, batia na minha mãe, batia em mim e eu o odiava por isso. Resolvi fugir. Meu avô me encontrou na rua e se condoendo da minha penúria, me adotou.

- Não consigo imaginar como são as cores!

- Infelizmente, existem coisas que você não pode perceber.

   Leda fez uma expressão triste.

- Meu pai disse que a cegueira é como uma prisão.

- Eu também, de certa forma, me sinto preso a esse corpo e dele não posso sair. Mas, já é tarde. É melhor você se recolher.

- Está bem. Até manhã, Adão!

- Partirei amanhã cedo.

- Gostei de conversar com você, Adão. Venha me visitar algum dia.

- Sim, virei.

   A menina começou a se afastar, tateando a parede em direção da porta.

   Fiquei imaginando o quanto era difícil viver em seu mundo, onde a escuridão era perpétua. De repente senti um cheiro forte de animal e percebi alguma coisa às minhas costas. Voltei-me e fiquei estarrecido diante da aparição assustadora, sobre a janela. Seu perfil lupino se destacava diante da serena face da Lua. Uma fera selvagem vinda das profundezas da floresta, ou talvez uma criatura das regiões infernais. O lobo monstruoso saltou no chão e com um rugido foi em direção de Leda.

   Movido por um impulso instintivo, procurei proteger a menina, interpondo-me no caminho. Mas, a criatura, com um simples movimento de braço, jogou-me longe. Cai sobre o feno, batendo com o pé no lampião, que caiu no chão, derramando o óleo inflamado. Logo, as chamas se alastraram sobre as palhas secas. Não me preocupei com o incêndio, estava interessado na segurança de Leda. Achei que a fera a estraçalharia como uma boneca de pano, mas o que fez foi agarrá-la e coloca-la sobre os ombros. Segurando-a com um braço, pulou a janela e saiu trotando, sumindo nas sombras.

   Imediatamente procurei seguir seus rastros. Com a lua clara, deu para encontrar as pegadas na areia perto do curral. Logo depois, perdi o rastro na floresta. Continuei caminhando, prestando atenção aos ruídos noturnos. Parava, escutava. Andava mais um pouco e parava. Uma coruja piou. Grilos cantavam. Sapos coaxavam, distante.

   Súbito, ouvi um grito. Avancei o mais rápido que podia, com os galhos baixos açoitando meu corpo. A dor do lado voltou.  Corri naquela direção e depois de alguns metros, cheguei a uma clareira onde havia uma cabana. Reconheci o lugar, era a casa de Dione. A porta estava aberta, mas havia escuridão lá dentro. E silêncio. Fui até o depósito de lenha e encontrando a pederneira, acendi uma tocha. Com ela na mão direita, entrei na casa. A luz da tocha revelou uma cena terrível. A criatura infernal estava sobre Leda. Ela permanecia prensada no assoalho, tentando empurrar o monstro. Ele me ignorou, estava mais interessado na garota, nos olhos brancos dela. O dedo esticado, com a unha estendida, parecia querer dar luz àqueles olhos. A baba caia sobre o peito da menina.

   Olhei ao redor, tentando encontrar algo para golpear o monstro. Foi então, que vi o forcado, encostado na parede ao lado da lareira. Nesse instante, um movimento na porta me chamou a atenção. No umbral surgiu um homem troncudo, alto, empunhando um machado.

- Monstro maldito! –gritou ele, avançando e brandindo o machado nas costas da criatura. Mas, a fera se esquivou no mesmo instante em que a lâmina cortava o ar e com um som seco, entrou no peito da menina. Leda não emitiu nenhum som, morreu na hora.

   O grito de Hermes, pois era ele, o pai de Leda, soltou um grito medonho de dor e mágoa. Ele voltou-se para a criatura e os dois se atracaram numa luta mortal. Larguei a tocha e peguei o forcado. A fera derrubou Hermes e começou a rasgar seu pescoço com os dentes, enquanto cravava as unhas no peito do homem indefeso. Quando enfiei as três lâminas nas costas peludas da criatura, foi tarde demais, Hermes já estava morto.

   A fera urrou de dor, cambaleando, saiu para fora, com o forcado ainda preso às costas. Corri para Leda, mas não havia mais nada a fazer, ela estava morta. Morto também estava seu pai. A chama da tocha jogada no chão, pegou numa cortina e o fogo subiu para as paredes. Cansado e abalado por aqueles acontecimentos, deixei a casa. No pátio estava um corpo caído de bruços, nu, ferido mortalmente nas costas pelo forcado. Era Dione. Nesse instante, acordei.

   Acordei banhado em suor. Que pesadelo! Parecia real! Ergui-me da cama e fui ao banheiro, molhar o rosto com água fria. Ao me dirigir para a cozinha, me lembrei que era domingo. Podia voltar para a cama e tentar dormir mais um pouco, mas fiquei com receio de ter outro pesadelo. Resolvi sair aquela noite para espairecer um pouco, mas ao olhar para o calendário, vi que seria uma noite de lua cheia. Nas noites de lua cheia, me dava uma tremenda dor de cabeça! ...

FIM
 
Temas
Sonhos-Prisioneiros- Em Família
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