Perfume Cadavérico 3º Capítulo

As convicções são inimigas
mais perigosas da verdade
do que as mentiras.

Friedrich Nietzsche
.

     E os que dançavam foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música.
     Atribuem este aforismo a Nietzsche, mas não há registros que o confirmem: em algum momento lhe creditaram o mérito e, como a uma mentira que não pode ser confirmada ou refutada, o levaram adiante numa espécie de obscura inverdade. Admito que sua origem seja irrelevante, mesmo assim foi necessário citá-la por que, de certa forma, ela se encaixa perfeitamente com o que tenho a dizer, afinal nem tudo é o que pensamos ser — e que pontos de vista podem ser alterados, dependendo do modo como as informações são transmitidas e absorvidas.
     Estou no interior da sala de necropsia do Instituto Médico Legal do Butantã, Robin Gibb conferindo ao lugar uma profundidade taciturna com sua interpretação de I Started A Joke, enquanto, sentado à minha mesa, procuro ordenar os pensamentos e avaliar a melhor maneira de começar o que tenho a dizer; porém, isso não é fácil, sabia?
     Sabia.
     É como se eu estivesse falando com alguém, ao invés de sozinho nessa sala fria repleta de cadáveres acondicionados em suas gavetas refrigeradas — um total de trinta e seis, que forram as paredes de cima a baixo, à direita e à esquerda, aguardando serem necropsiados e trazido à luz da verdade a brutalidade de suas mortes.
     Muitos têm pavor à menção da palavra necrotério, e até mesmo quem trabalha no Instituto evita descer a este piso às altas horas da noite, mas não vejo problema algum nisso, afinal convivo com cadáveres desde os nove anos e posso garantir que mortos nada fazem e que todo o horror advém da prática dos vivos. O que é mais chocante, falecimento por causas naturais ou homicídio? Não é difícil responder, basta imaginar um corpo jazendo sereno e outro completamente esfacelado a marretadas. Marretas não agem sozinhas, compreende?
     Desculpe, — e novamente estou agindo como se tivesse um ouvinte, embora saiba que em algum momento alguém me ouvirá devo estar divagando e admito ser proposital, porque receio contradizer o que afirmei há pouco: que mortos nada fazem e que não devemos temê-los. Bem, não diria que os temo, mas a todo instante olho para a Unidade Oito: a intensidade do perfume daquele cadáver é perturbadora!
     Estou tentando manter a calma, porém só eu sei os níveis de aflição que me amordaçam o peito. É como se houvesse uma mão ossuda, retorcida pelo peso de muitas décadas, envolvendo-me o coração e o espremendo sistematicamente. Pode ser uma analogia fantasiosa, mas é tão vívida que se fechar os olhos posso ver suas unhas negras deformadas e códices estranhos grafados ao longo de cada um dos dedos.
     (silêncio)
     (e suavemente Lady In Red de Chris de Burgh começou a resvalar dos alto-falantes)
     Ouve isso, essa canção? Por mil diabos, ela me arrepiou até a alma!
     Recentemente li que um laboratório da Universidade de Macquarie, em Sidney, Austrália, confirmou ser comum a música trazer lembranças de lugares, momentos, pessoas e, inclusive, sentimentos, pois ao longo da vida nosso cérebro é exposto a inúmeras melodias, padrões musicais e letras que o acondicionam a criar vínculos entre eles. À primeira vista, parece demasiado técnico, não é?, mas acabo de experimentar  isso na prática, porque desde março, quase seis meses atrás, todas as vezes que ouço Lady In Red a associo a um indivíduo chamado Brenno Marques. E por que minha mente faz tal assimilação? Eu explico.
     Brenno era um jovem como qualquer outro: comum, atendente de necrotério e tremendamente simpático que trabalhava no período noturno. Não há por que mentir: ele era muito respeitoso e agradável, do tipo que se você precisasse de uma mãozinha se disporia a dar as duas; se o convidassem para beber, beberia e alegraria a noitada; se o chamassem para encher uma laje, levaria mais três amigos para concluir o serviço. Fazia uns quatro anos que estava aqui e, se houvesse alguém que não gostasse dele, seria por antipatia à sua amabilidade de que por quaisquer outras razões.
     Tudo começou numa terça-feira pela manhã, após Brenno não comparecer ao seu plantão na noite anterior e já tendo folgado o fim de semana inteiro. Num português bem claro, há funcionários que nem fedem nem cheiram, mas ele era bastante querido e ainda no decorrer do seu turno foram feitas várias tentativas infrutíferas de contato telefônico. Havia algo errado e todos sabiam disso.

     Por volta das seis horas uma viatura foi enviada ao seu endereço na zona sul — e qual não foi a surpresa constatarem que o lugar estava abandonado e que as características de Brenno coincidiam com as de um rapaz que havia cometido suicídio, após matar toda a família, pelo menos cinco anos antes.
Quando a notícia chegou ao Instituto, foi um verdadeiro choque e pode se dizer que alguns quase surtaram ao recordar que Brenno sempre se prontificou a servir, mas nunca se mostrou receptivo à ajuda ou a assuntos familiares. Quatro anos de trabalho e os colegas nada sabiam sobre ele, dá para acreditar?
     Parece um tanto absurdo pensar em algo assim, mas se considerarmos o caso do austríaco Joseph Fritzl, que manteve a própria filha trancafiada vinte e quatro anos no porão de casa como uma espécie de escrava sexual, inclusive tendo vários filhos com ela, o fato ganha contornos quase normais.
     No fundo, as pessoas convivem lado a lado a maior parte de suas vidas sem realmente conhecer uns aos outros. Aquele seu colega de faculdade, que sempre te cumprimenta com um sorriso e aperto de demãos, pode sentir prazer em banhar-se em fezes e chegar ao êxtase ao recordar que você nem se dá conta disso. Ou aquela mulher linda, que por onde anda arranca olhares de inveja e admiração, não passe de uma sádica que ao chegar em casa alivia suas frustrações imaginárias queimando as pontas dos dedos dos pais idosos ou judiando dos irmãos menores.
     Entretanto, este não é o caso de Brenno e alguns até levantaram a hipótese dele ser uma fantasmagoria que assombrava o necrotério — e não me admira se você tiver pensado nisso, afinal as circunstâncias se mostraram bastante tétricas a princípio; porém, asseguro que não é nada disso e ressalvo que quanto mais se aprofunda no esgoto, mais ele fede.
     Não é de agora a precariedade em certos setores do Instituto e quando iniciaram uma investigação interna descobriram, entre diversas outras mazelas, que grande parte das câmeras de vigilância não funcionava ou tinha péssima qualidade de imagem, como também que a segurança na área de entrada e saída de cadáveres do necrotério era praticamente inexistente. É lamentável, mas em mais de uma situação registrou-se vultos de cachorros entrando pelo estacionamento lateral, vagando pelos corredores e saindo calmamente abocanhando sacos de lixo, sabe-se lá Deus contendo o quê.
     E numa dessas filmagens Brenno foi capturado fazendo algo inusitado: ele empurrava uma maca para o Veículo de Transporte de Cadáveres, o rabecão, se preferir. Havia um corpo sobre ela e poderia ser um caso comum de remoção de cadáver para outra unidade a fim de realizar exames específicos ou algo do gênero, mas o que despertou a atenção foi Brenno direcionar o veículo para uma área pouco iluminada do pátio e, minutos depois, estacionar o próprio carro na vaga ao lado, discretamente deslizando para trás deles e demorando tempo suficiente para levantar uma mórbida suspeita.
     No decorrer da semana, fizeram pente fino nas gravações e nada encontraram devido aos aparelhos defasados manterem as filmagens por sete ou oito dias e a qualidade de imagem ser péssima — ainda que detalhes da rotina obscura de médicos-legistas, auxiliares de necropsia e outros profissionais tenham vindo à tona e causado uma extensa reformulação no quadro de funcionários do Instituto.
          Como legista-chefe tive acesso ao conteúdo das câmeras e posso dizer que a imagem granulada de uma funcionária saindo apressada desta sala, abrindo o jaleco em pleno corredor e enfiando a mão entre as próprias pernas para depois levar à boca numa expessão de prazer é uma das cenas mais leves que foram registradas. Ela chegara ao orgasmo assistindo a um exame necroscópico, acredita?
       Enfim.

     O paradeiro de Brenno Marques foi obtido apenas na semana seguinte, por acaso, quando o proprietário de um imóvel alugado em Perdizes passou no local para receber o aluguel e o inquilino, sempre amistoso e pontual, não o atendeu. Conversando com vizinhos, comentou-se sobre a estranha inatividade no lugar nos últimos dias e, mesmo em posse das chaves, o locador preferiu alertar a polícia.
     Quatro policiais atenderam a ocorrência, ficando dois de campana à frente da casa, enquanto os outros entravam para averiguar, sendo acompanhados pelo olhar dos curiosos que se juntaram atraídos pela presença das viaturas. E eles saíram minutos depois, pálidos e tampando as bocas com as mãos — um deles entrou no banco traseiro da viatura e chegou a vomitar a ponto de perder as forças.
     Mesmo questionados , não deram maiores detalhes devido à horribilidade e caos que encontraram, apenas lacraram a residência e comunicaram seus superiores; horas mais tarde, o Superintendente da Polícia Civil contatou a chefia do Instituto de Criminalística, frisando a importância dos fatos serem mantidos no mais absoluto sigilo.
     E foram, tanto que sou um dos poucos que conhece os pormenores do caso, afinal, num desdobramento avesso às formalidades do Instituto, fui designado a ir ao local durante a madrugada para confirmar certas indiscrições que ali foram encontradas.
     Tudo o que contei até aqui foi narrado e discutido numa reunião posterior feita às pressas entre os envolvidos e batizado como o "Caso Lady In Red", que foi tão eficiente em ser ocultada que nem mesmo a mídia carniceira tomou conhecimento dos fatos.
     O que direi a seguir não é nada agradável, mas peço que aguarde alguns instantes para que eu troque o lado da fita antes de continuar.
 
O Marceneiro
Enviado por O Marceneiro em 31/10/2020
Reeditado em 31/03/2021
Código do texto: T7100312
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.