OS ESTRANHOS DA NOITE
Conto de Terror e Ficção Científica Steampunk
Parte 1 de 2
   Abril de 1889.

  Estava com medo! Não conseguia afastar os olhos esbugalhados de uma das frestas da cortina a cobrir a janela frontal de sua morada. Alois, o marido, um bem-sucedido guarda de alfândegas, não se encontrava em casa, mas tivera o bom senso de não deixá-la desprotegida. Através da influência de seu posto, conseguira confiscar um dos autômatos humanoides vindos da Inglaterra para fortalecer o exército do Império.
   A criatura cilíndrica metálica, que mais parecia um enorme pepino com braços e pernas, se locomovia feito gente, ocultando nas suas laterais armas de fogo retráteis de poder devastador. Apesar da forte oposição que fizera contra a ideia de se manter aquela coisa como cão de guarda da casa, dava graças a Deus, naquela noite, à arrogância e à teimosia do marido.
   Os quatro estranhos lá fora queriam a criança que estava no seu ventre!
  O vento forte dentro da noite açoitava a pequena lâmpada dependurada na frente do sobrado fazendo-a balançar para todos os lados, o que imprimia efeitos grotescos de luz às fisionomias indiferentes dos quatro homens. A ventania castigava as árvores, assoviava alto, levantava as folhas secas do chão em miúdos redemoinhos, penetrando às frestas das portas e janelas. Dava-lhe a impressão de que o vento impetuoso queria trazer a morte para dentro de casa!
   — Raduk. Vá até ao quarto dos fundos e veja se as crianças estão dormindo. – Ordenou ao autômato, pela primeira vez, em tom urgente.
   O robô atendeu a ordem. A situação era preocupante. Não havia mais ninguém ali além dela, das duas crianças e aquele protótipo gigante de legume mecanizado. Sempre se preocupara com o fato da casa ficar afastada da vila. Achava que não era certo, indecente até, uma mulher passar as noites sozinha com os pequenos, ainda mais por sua delicada situação: grávida de oito meses!
   O bebê, agitado naquela noite inamistosa, parecia brigar contra suas entranhas. As fisgadas de dor no baixo ventre aumentavam a cada minuto. Por mais que tentasse acalmar-se, não conseguia afastar do pensamento o perigo emanado dos forasteiros plantados no jardim. Eles portavam espadas longas, brilhantes. As armas deixaram-na nervosa, no entanto, o que lhe causou arrepios de medo pelo corpo inteiro foi o momento exato ao observar os olhos deles. Os olhos dos estranhos estavam esbranquiçados, conferindo-lhes a espantosa impressão de não terem vida!
  Depois de alguns segundos preciosos, atenta, tomou um novo assombro, o que a fez levar as duas mãos à boca para lhe refrear o grito de horror. “Meu Senhor Bom Jesus, aquele é Gustav Decker, o açougueiro da vila!”  Mas lá fora, não! Não era ele! Assim como, decerto, os outros também não eram. “Eles estão possuídos”, determinou para si!
   Sendo uma “sensitiva”, sem sabê-lo de fato, estava convencida dos estranhos estarem ali para levar a criança antes de nascer. Sentiu horror ao pensar nisso. Às vezes, tinha pena de si mesma porque, apesar de jovem, era uma mulher muito sofrida, de poucas alegrias na vida. Casara-se com um homem insensível 23 anos mais velho e com ele já tivera 3 filhos. Todos mortos! Não tivera, portanto, a boa sorte de ver nenhum deles crescer o suficiente para brincar sozinho no quintal. E agora aquilo!
   A despeito do medo, do nervosismo, das dores que lhe poderiam induzir às contrações de um parto prematuro, pensou em fugir com os enteados pela porta dos fundos. Já estava prestes a dar início ao plano de fuga, afastando-se da janela, quando um farfalhar de passos urgentes redobrou-lhe o sentido de alerta: um elemento novo se apresentava em cena!
   Mal pôde acreditar no que via; em meio à revoada das folhas das árvores, saído das brenhas da floresta, um quinto homem atirou-se a correr para tomar posição no meio do quintal em atitude de confronto contra as quatro ameaças ao seu lar. O impressionante guerreiro, também de espada em punho, destoava dos outros por trajar um vistoso sobretudo preto. Tratava-se de mais um completo desconhecido para ela, porém, aquele inspirava segurança!
   “O senhor ouviu as minhas preces”, pensou! “É um anjo vindo das alturas neste momento de desespero!”
 A intuição poucas vezes abandonara-lhe em julgamentos importantes para dirimir os caminhos de sua vida. Deus ouvira seus apelos no sentido de não causar-lhe mais infortúnios. E, ao pensar assim, não teve dúvidas: o guerreiro de sobretudo estava ali para ajudar.
   Apesar da postura aguerrida de um lutador experiente, ela teve a incômoda certeza de que o Sobretudo Negro não poderia suportar o ataque dos quatros invasores ao mesmo tempo. Precisava ajudá-lo de alguma forma! Antes de chamar por seu nome, o autômato, em meios aos barulhos típicos das engrenagens valvuladas por falta de óleo, que sempre a incomodavam, apareceu no centro da sala, vindo do quarto dos fundos.
   — Crianças estar bem, senhora. – Informou o pepino mecanizado, utilizando os seus parcos recursos de expressão vocabular numa voz aguda, metálica.
  — Raduk.  Venha aqui. Rápido! Rápido! – Intimou se ao dirigir-se para o hall de entrada tão depressa quanto a sua condição de gravidez permitia.
  O robô, encaminhou-se à entrada principal da casa em quatro passadas largas, desengonçadas e barulhentas. Ela abriu a porta decidida, recebendo as primeiras lufadas de vento frio, enquanto as folhas secas e outros detritos oriundos da floresta invadiam a sala. Olhou esperançosa para o autômato e apontou o dedo indicador para fora.
  — Raduk, observe atentamente os cincos homens no jardim! Identifique o mais alto deles, aquele de cabelos compridos, vestido com um sobretudo preto.
   O robô levou uns poucos segundos para analisar a informação. Duas pequenas esferas prateadas, os olhos rastreadores da máquina, localizados quase na extremidade superior do tampo arredondado do cilindro, lampejaram de modo intermitente, emitindo dezenas de cliques num espaço reduzido de tempo como se estivessem a registrar uma porção de imagens.
   — Identificado, senhora.
  — Proteja a vida do homem identificado. Proteja-o de seus inimigos. Vá, agora! De pressa! Anda! Anda!
   O robô deu um largo passo para afastar-se do hall de entrada com o intuito de avaliar a altura do umbral da porta que, naquele momento, era menor do que a sua provisória estatura. Então, quedou o corpo cilíndrico à frente, dobrando os membros inferiores e escorou toda a sua estrutura em linha horizontal nos membros superiores também. O robô, como um quadrúpede, imprimiu trotes rápidos e saiu de casa para cumprir a ordem determinada.
   Ela empurrou a porta contra a ventania, trancando-a, para depois correr à janela. Sem a cautela de antes, colou o rosto na vidraça, esforçando-se ao máximo para acompanhar a movimentação dos elementos misteriosos no campo penumbroso mais remoto do jardim, onde a fraca luz da lamparina minguava-se diante das forças ocultas que preferiam a escuridão da noite e o isolamento tácito para confrontar-se.
  A penumbra durou pouco. Dois fachos de uma luz intensa, provenientes dos holofotes laterais do autômato, cortaram a noite e chocaram-se contra os guerreiros. A luz alta de Raduk, antes de surpreendê-los, como seria de se esperar, muito pelo contrário, acendeu instantaneamente o estopim da refrega.
   O primeiro estranho ao levantar a espada para lograr o primeiro golpe contra o Sobretudo Negro não chegou a desferí-lo porque foi acometido de tremores convulsivos violentos, acompanhados por pequenas explosões de inúmeras e minúsculas lascas de carne e ossos, banhados em sangue, à medida que os projéteis em rápida sucessão, lançados da arma de alta rotação do robô, varavam-lhe o corpo. 
  Afogueada pela visão da chacina, ensurdecida pelo matraquear barulhento da metralhadora, ela pulou para trás quase indo ao chão. O coração disparou. Uma dor excruciante partiu do baixo ventre e sentiu a água descer em grande quantidade por suas pernas trêmulas.  “Ele vai nascer! Ele vai nascer, e vai ser hoje!”, pensou preocupada.

Continua...

 
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Este conto foi publicado em 2009 no meu antigo
site de literatura CONTOS FANTÁSTICOS, e na época
havia uma onda forte de
Ficção Científica Steampunk
que agitou o mercado de livros.
Affonso Luiz Pereira
Enviado por Affonso Luiz Pereira em 05/01/2021
Reeditado em 06/09/2021
Código do texto: T7152852
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