O Portal - CLTS 15

“Os monstros são reais e os fantasmas também.

Vivem dentro de nós e às vezes vencem”.

— Stephen King.

"Eu podia ouvir vozes, e não eram apenas em minha mente, pois meu avô também as ouvia".

Durante muitos anos eu sonhei com aquele local; uma casinha na beira do lago. Eu sempre brincava lá, toda vez que visitávamos minha avó Manoela. O que eu não sabia é que aquele recinto de madeira simples, cheio de objetos encantadores, que lembravam até mesmo alguns contos infantis, poderia esconder tamanho horror. Na verdade, algo muito estranho e apavorante estendeu-se, além disso.

O enorme lago, situado à direita dessa casinha, era cercado de estórias - lendas que o povo contava aos quatro ventos. Eu cresci ouvindo meu pai e avô falarem a respeito de estranhas criaturas rondando aquelas matas, e sinceramente: sempre achei tudo uma grande besteira.

Cheguei a me questionar, diversas vezes, por qual motivo meu avô comprara aquela mansão. — Será que ele sabia o que se passava ali? — Então, por fim, eu achava as estórias uma grande palhaçada, um desrespeito à minha inteligência, e me dava por convencido; talvez, tentando calar um profundo terror que crescia em meu subconsciente. Em verdade vos digo: eu ainda precisava aprender muito!

Nenhuma escola ensina a verdade. É preciso aprender com a vida. Nenhuma escola te ensina a lidar com seus mais profundos medos e traumas, além do palpável; nenhuma escola te ensina a enfrentar seus monstros. A lição da realidade é cruel e não existe ponto extra ou recuperação para te ajudar.

Tudo começou em um final de semana, no qual, eu e minha família viajamos para visitar meus avôs. Lembro que eles moravam em uma verdadeira mansão com tudo que o dinheiro podia comprar.

No entanto a enorme morada, apesar de ter sua imponência, também passava um ar de vazio e solidão. Meus avôs se davam muito bem, mas devido a alguns problemas de saúde da ‘vó’, precisávamos ajudá-los sempre. Por isso meu pai fazia questão de ir lá, várias vezes no mês.

Eu amava visitá-los e quanto mais eu ficava íntimo daquele lugar, mais eu desejava explorar tudo e criar novas aventuras – eu não ligava muito para as lendas mesmo, então me sentia à vontade para tal.

A cada visita eu descobria novos caminhos e passagens secretas. Desafiava-me a explorar mais a fundo cada corredor e canto, inéditos. Até que um dia, eu fui longe demais — assim acredito.

Atravessei um caminho cercado por árvores muito altas e que formavam um imenso corredor, seguindo vozes que vinham de lugar nenhum. Eu fui seguindo o emaranhados de palavras confusas, além de minha tão limitada compreensão. Vi uma pequena porta de madeira entreaberta e resolvi passar por ela — hoje me arrependo de ter feito isso.

Algumas portas deveriam ter avisos, por exemplo: não seja tolo o suficiente para cometer tamanha burrada; mas não tem.

Então, olhei o que havia do outro lado; um lindo lago e uma casinha simples de madeira. A noite estava muito escura, contrastando com a luz prata da lua. Tudo estava bem, até o momento em que todos os meus medos pareceram se unir e se materializar. A ‘nevoa’ — consigo sentir o mesmo pavor ainda hoje — surgiu vagarosa e bailava, sendo delineada pelo luar que se fazia presente de forma vívida. A escuridão assustadora daquela noite era amenizada pela massa branca que se formava tal qual um fantasma.

Não caro leitor, não se tratava de uma crise de pânico ou um medo irracional; aquele lugar tinha algo de misterioso e eu estava tentando descobrir o quê.

O sinistro nevoeiro começou a crescer, intensificando assim a minha angústia. Neste momento — tenho de admitir — passei a me borrar do que poderia ocorrer, mas, mesmo assim, prossegui. — Não é disso que dizem ser feita a coragem? — Aproximei-me da casinha e ouvi o piar de uma coruja, a qual parecia alertar a respeito da tolice que estava cometendo.

Não escutei meu medo, tão pouco a coruja; entrei. A velha portinha de madeira rangeu, ouvi sons de dobradiças velhas e desgastadas pelo tempo. O vento que soprou pareceu congelar minha alma, mesmo assim, fui em frente.

Lá dentro não havia nada demais; móveis antigos e objetos estranhos, brinquedos que eu nunca tinha visto. Contudo, algo me chamou a atenção: um livro.

Estava no fundo da sala, em cima de uma estante de madeira, repousando sobre uma base própria. No início me pareceu ser uma bíblia ou algo do tipo, no entanto minha curiosidade convencia-me de que não era isso. O aspecto do livro apresentava algo de tenebroso e arrepiava até mesmo os pelos de minha nuca. Sem contar o pavor que eu sentia por estar naquele local, sozinho. Minhas mãos tremiam e eu não sabia se era o frio ou o mais puro medo.

Fui me aproximando do tal livro; conforme eu o fazia, mais tinha a sensação de ser observado por algo do lado de fora da casa. A névoa tornava-se mais densa a cada segundo, impedindo que eu pudesse observar com clareza por entre a única janelinha do local. Contudo, a inquietude de meus sentidos era maior que o pavor que rondava, e finalmente pude ver o que tinha nas páginas à minha frente. Era um pouco confuso; notei uma figura estranha na página esquerda, enquanto um texto estava disposto na próxima página.

Percebi serem escritos muito antigos e por mim, completamente indecifráveis. A coruja piava alucinadamente agora, como se algo estivesse a ameaçando. — O que seria aquele livro? — Virei a página; vários símbolos se apresentaram, mas eu não fazia a menor ideia do que se tratava também.

O vento assoviava mais forte agora e ao olhar a pequena janela, tive a impressão de ver a coruja voar em círculos, de forma incrivelmente rápida; aquela noite era anormal e até hoje eu sei disso. Convenci-me de que deveria voltar. Já havia visto o suficiente.

No momento em que sai da casinha, algo começou a chamar pelo meu nome; era uma voz que parecia vir do fundo do lago. A névoa havia mudado para tons de um cinza escuro. Comecei a apertar o passo; a imagem da figura sinistra que eu havia visto no livro, agora me assustava em pensamento, também.

Foi neste momento que algo puxou pelo meu braço e eu estremeci de pavor; era meu avô – com uma expressão nada amigável – que me levou de volta para a mansão.

Enquanto eu era levado, ele me pedia para não olhar para trás, mas olhei. Ao fazer isso, pude observar algo de mais sinistro e confuso saindo do lago de maneira vagarosa e bizarra. Era uma espécie de monstro e possuía braços alongados, semelhantes a tentáculos.

A criatura tinha rosto, mas não havia expressão alguma, tal qual um boneco de cera. Os braços e pernas (se assim posso descrever tamanha bizarrice) estavam arqueados, como se retorcidos de alguma forma. Aquela figura me apavorava e comecei a gritar, pois foi quando meu avô calou minha boca com a mão:

— Cala-te moleque burro. Assim vai chamar a atenção da criatura. – Nitidamente ele estava muitíssimo preocupado com o que eu acabara de presenciar.

Assim que saímos do local e nos livramos de qualquer perigo, meu avô me olhou de forma nada amigável e apesar de saber que me amava, senti medo dele também.

— Escute aqui! — ele disse, em tom de voz firme e embargado. — Nunca mais! Está me ouvindo? Jamais volte àquele local, entendeu? — A este ponto o pavor me deixava confuso de tal maneira, que não entendia nem mesmo o que acabara de vivenciar.

Minha família fez de tudo para impedir meu acesso àquela parte da mansão e meu avô mandou fechar de todas as formas a pequena entrada que eu havia descoberto. Por muito tempo, até conseguiram. Contudo, vocês sabem como eu sou... Minha inquietude, ou irresponsabilidade, é maior que o meu medo. Foi isso que me fez descobrir o lago naquele dia e hoje, mais de trinta anos depois, cá estou eu novamente.

Passei longos anos tendo pesadelos com aquele lugar e ouvindo as vozes bizarras, falando algo que eu não tinha como compreender. Em meus sonhos, criaturas horrendas apareciam, porém era difícil descrever a cena. Durante todo esse tempo, isso me moveu e sempre tive a certeza que um dia eu enfrentaria esse medo mais uma vez. Hoje a mansão se encontra fechada, depois que meus avôs faleceram. Faz 10 anos que se foram, porém a casinha e o lago permanecem. No passado estava entreaberta, mas hoje eu possuo todas as chaves.

Novamente, cruzei o limite.

Ao atravessar a pequena porta de madeira de novo, vi a casa e o lago. Olhei em meu relógio e marcava dez horas da noite, o mesmo horário de minha visita anterior, quando criança. A escuridão estava maior desta vez, porém não me deixei afetar por isso.

Aproximei-me da casinha de madeira e entrei. Lá estavam as roupas, brinquedos e o livro – o mesmo livro que eu folheara há trinta anos.

Aquele cenário, mais uma vez, me deu arrepios e náuseas. Meus avôs e meus pais, com certeza, souberam manter tudo ali intacto.

Eu não entendi muito bem, mas um pensamento de uma possível realidade paralela me ocorreu por alguns segundos. Minha mente fértil e especulativa buscava explicações para aquele ambiente tenebroso e hostil. A escuridão crescia e o medo também.

Continuei a explorar o livro de onde eu havia parado há mais de trinta anos, mais figuras estranhas e escritos desconhecidos eu via. Passei a ouvir vozes e escutei um lobo uivar. A sensação era de que aquele recinto era vivo e reagia de acordo com o objeto que eu estava manuseando. Talvez fosse melhor reconsiderar o conselho de meu avô e me afastar de tudo, mas como eu nunca fui de obedecer a regras, peguei o livro por impulso e sai da casinha de madeira. O motivo de querer roubar o livro, nem eu mesmo sei responder; como sempre, eu gostava de ir além.

Ao fitar o lago novamente, percebi que havia escurecido de tal forma que parecia lama pura e eu mal conseguia separar a água da noite tenebrosa. A sensação era de estar em um pântano. Em seguida, criaturas medonhas começaram a surgir, emergindo do que antes era um lindo lago. Apavorei-me!

— Você roubou o portal da casa protegida e nós o desejamos! — Disse uma das criaturas.

— Portal? — Questionei. — Quer dizer que este livro é um portal, mas, que tipo de portal?

Cada vez mais assustado, procurei desesperadamente correr em direção à porta pequena de madeira a fim de sair com o livro e minha vida, intactos. Cheguei a pensar em devolver o livro para a casinha, porém a mesma havia sumido. Ai é que as coisas fizeram menos sentido ainda.

— Nos dê o portal agora! — Esbravejou outra criatura coberta de lama, exigindo que eu entregasse o livro.

Corri ainda mais na busca pela saída, mas para meu desespero e surpresa maior, parecia que ela também havia desaparecido. Se eu estava em alguma espécie de realidade paralela, eu já não sabia como sair dela.

O pavor da situação fez meu medo se intensificar e parecia que isso tornava a escuridão do local ainda maior. Senti minhas pernas ficarem fracas, até perder totalmente as forças e tropeçar em um galho de árvore. Agora era o fim, pois eu havia batido com a cabeça na queda. Percebi as medonhas criaturas se aproximando, enquanto eu estava ali no chão, sem nada que pudesse a fazer. Tudo escureceu.

Ao abrir meus olhos, não sei precisar quanto tempo depois, uma forte luz se fez presente. Demorou um ou dois minutos para eu conseguir me adaptar à claridade. Percebi que estava em um leito de hospital, vivo e aparentemente bem. Acho que sobrevivi, ou terá sido um pesadelo? Como vim parar neste hospital? Será que eu estava em coma, sonhando tudo isso? — Eram inúmeras perguntas, que surgiam em minha mente.

Uma enfermeira veio até onde eu estava trazendo com ela uma encomenda:

— Alguém deixou para o senhor este pacote. – disse.

— Gratidão! Quem foi?

— Preferiu não se apresentar — ela prosseguiu —, mas disse que era o responsável por você estar aqui.

De início eu naturalmente estranhei, porém tratei de pegar o pacote e agradecer a moça. Quando eu abri, meu pavor não poderia ser maior, pois era o livro que eu havia roubado da casinha de madeira. Havia um bilhete junto:

“Você como sempre, um moleque burro e teimoso. Porém há algo que sempre admirei no teu ser: tua coragem! Por causa dela, hoje você possui um livro, cujo segredo, esconde a chave da vida e da morte. Sabendo das estórias, comprei aquela mansão. Eu tentei chegar até onde você pisou, porém eu nunca fui tão corajoso assim. Hoje você é guardião desse portal e, portanto, tome muito cuidado. Esta é a última vez que te ajudei e caso se perca novamente nos planos, terá que se virar sozinho com sua mais nova responsabilidade e poder”.

Ao terminar de ler o bilhete, chorei de nervoso e emoção. A letra e mensagem eram de meu avô.

Tema: Medo do escuro / Sedução Mortal

Bruno Tavares
Enviado por Bruno Tavares em 18/05/2021
Reeditado em 19/05/2021
Código do texto: T7258774
Classificação de conteúdo: seguro
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